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SAÚDE

O futuro em uma gota

Teste de sangue permite identificar e tratar precocemente doença genética que leva ao retardo mental

US AIR FORCE/SGT ERIC T. SHELLERO pediatra José Simon Camelo Junior tem agora um argumento forte para tentar convencer as autoridades de saúde do país a incluir na triagem neonatal o popular teste do pezinho, o exame para identificar a galactosemia, doença genética marcada pela incapacidade de metabolizar a galactose, o açúcar típico do leite. A razão não é apenas de saúde. É também econômica. Examinar todos os anos as 600 mil crianças que nascem no estado de São Paulo  e tratar precocemente as doentes – sai 33% mais barato do que lidar com os problemas de saúde que as 17 crianças desse grupo, com galactosemia identificada tardiamente, desenvolverão ao longo da vida, como catarata, danos no fígado e retardo mental.

Foram necessários cinco anos de trabalho para o pediatra da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP) e sua equipe comprovarem que a inclusão do exame para a galactosemia no teste do pezinho é vantajosa também do ponto de vista econômico. Antes, porém, tiveram de conseguir uma informação muito mais básica sobre a enfermidade: o número de casos que surgem a cada ano no estado de São Paulo, dado anteriormente estimado apenas com base em levantamentos feitos no exterior.

Nessa primeira e mais trabalhosa etapa da pesquisa, os grupos de Ribeirão Preto e de outros três centros de triagem neonatal do estado analisaram amostras de sangue de 59.953 crianças nascidas em 2006, o equivalente a 10% dos nascimentos registrados por ano nos municípios paulistas. O levantamento inicial indicou que 158 recém-nascidos possivelmente apresentavam galactosemia. Um exame mais específico, porém, revelou que das 158 crianças apenas três tinham de fato a doença – e necessitavam de tratamento urgente. Essa proporção indica que cerca de um em cada 19 mil bebês paulistas nasce com uma das alterações genéticas associadas à galactosemia, o que corresponderia a quase 30 novos casos por ano no estado de São Paulo. É uma incidência relativamente baixa, mas superior à que se imaginava.

“A incidência dessa enfermidade no estado de São Paulo é muito mais elevada do que a dos Estados Unidos ou a de vários países da Europa e está mais próxima à da África do Sul”, conta Camelo Junior, membro da equipe dos pediatras Lea Zanini Maciel, Maria Inez Fernandes e Salim Jorge, da USP-RP. Nos Estados Unidos um em 30 mil ou um em 40 mil bebês nasce com galactosemia, enquanto na Inglaterra essa taxa é de um em 60 mil e na África do Sul de um em 14 mil.

Quem tem galactosemia apresenta uma das 230 alterações já identificadas nas duas cópias do gene responsável pela produção da enzima galactose-1-fosfato-uridiltransferase (Galt). Essa enzima transforma o principal açúcar do leite, galactose, em outro açúcar, a glicose, usada pelas células como fonte de energia. A produção de enzimas Galt defeituosas ou em baixas quantidades leva ao acúmulo da galactose no sangue e nos tecidos. Em concentrações elevadas, a galactose gera compostos tóxicos que afetam o fígado, causando cirrose, e tornam opaco o cristalino (a lente natural dos olhos), provocando catarata. Surgem ainda consequências mais graves. Como a galactose não é convertida em glicose, os níveis deste açúcar no sangue caem muito. Com menos glicose e sob o efeito de compostos tóxicos, as células do cérebro começam a morrer, levando ao retardo mental.

As consequências indejadas dessa enfermidade, que custam caro ao sistema público de saúde e afetam a qualidade de vida das crianças e de suas famílias, podem facilmente ser evitadas ou reduzidas, desde que a galactosemia seja identificada nos primeiros dias de vida. “Basta substituir o leite materno por leite sem galactose, como o de soja, e evitar o consumo de alimentos que contenham galactose ao longo da vida”, explica a pediatra Gilda Porta, do Instituto da Criança da USP, que há 35 anos acompanha casos da doença.

Diante dessa possibilidade de intervenção simples e relativamente barata – uma lata de leite de soja custa cerca de R$ 30, enquanto o leite usado para crianças com fenilcetonúria sai por quase R$ 300 -, Camelo Junior vem defendendo nos últimos anos a inclusão do exame para galactosemia no teste do pezinho realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente esse exame, oferecido gratuitamente para os recém-nascidos desde 2001, avalia a ocorrência de outras três enfermidades: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito e hemoglobinopatias. Três estados (Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais) realizam também o exame para detectar fibrose cística, enfermidade que reduz a hidratação do muco e de outras secreções, afetando os sistemas digestivo e respiratório.”Nossos dados mostram que em São Paulo a galactosemia é tão frequente quanto a fenilcetonúria, que afeta um em cada 19 mil recém-nascidos”, diz Camelo Junior, comparando seus dados com os da equipe de Lea Zanini Maciel.

Determinada a incidência da galactosemia, o pediatra de Ribeirão decidiu verificar quanto a realização do exame custaria ao estado. Com a ajuda de Jair Santos, da medicina social, e de Alceu Camargo Junior e Cláudia Passador, da Faculdade de Economia e Administração da USP-RP, Camelo Junior pôs na ponta do lápis os gastos relacionados ao teste para galactosemia – valor do kit diagnóstico, do transporte até o centro de testagem, dos contatos telefônicos e do tempo de trabalho perdido pelos pais. Somou ainda as despesas decorrentes da detecção tardia da doença – custos de atendimento ambulatorial e de internação em unidade de terapia intensiva, gastos com cirurgias e medicamentos, além dos dispêndios com estrutura hospitalar -, tomando por base dados coletados ao longo de 20 anos de atendimento em diferentes unidades do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP.

Economia
Somando os gastos, a tes­tagem de 600 mil recém-nascidos sairia por R$ 937,3 mil, descontados os juros anuais. A identificação precoce da doen­ça evitaria que as 17 crianças com a forma de galactosemia que evolui pior tivessem de passar por tratamento crônico e lhes permitiria levar uma vida produtiva. No total, representa uma economia de R$ 1,245 milhão ao sistema público, revelam os pesquisadores em dois artigos – um deles publicado no Journal of Inherited Metabolic Disease. “Detectar a doença nos primeiros sete dias de vida sai 33% mais barato do que tratá-la mais adiante”, afirma Camelo Junior, que atualmente trabalha para mostrar esses dados às autoridades públicas de saúde. “Não vou descansar enquanto não reconhecerem esses dados”.

Esses resultados, segundo o pediatra, representam apenas parte do trabalho que precisa ser feito para se conhecer a frequência com que essa enfermidade ocorre no país. “Outros estados deveriam realizar estudos semelhantes, pois a proporção observada em São Paulo não pode ser extrapolada”, diz. É que os defeitos genéticos associados à galactosemia são mais comuns nas populações de origem africana do que entre os descendentes de europeus. Por essa razão, é provável que sua incidência seja mais elevada, por exemplo, na Bahia do que nos estados do Sul do país.

O projeto
Estudo piloto para a introdução da triagem neonatal da galactosemia no estado de São Paulo (nº 04/08719-5); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador José Simon Camelo Junior – USP-RP; Investimento R$ 118.705,92

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