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Neurofisiologia

Efeitos da aversão

Situação que causa repulsa aumenta atenção e percepção visual

REPRODUÇÃO FRANCISCO DE GOYA, PEREGRINAÇÃO A SAN ISIDRO (DETALHE), 1820-23, MUSEU DO PRADO/MADRIUm simples pedaço de linha enovelado no canto da sala salta aos olhos, faz retesar os músculos e bater forte o coração de quem sofre de aracnofobia, o medo excessivo de aranhas. Tão intensa quanto irrefreável, essa sensação invade o corpo sempre que se nota no ambiente algum ser ou objeto que lembre, mesmo muito remotamente, o aracnídeo de pernas longas e comportamento em geral reservado. Não fosse o terror despertado, seria uma reação natural ante uma circunstância que põe em risco a sobrevivência e prepara o corpo para lutar ou fugir. Uma descoberta recente do neurocientista brasileiro Luiz Pessoa ajuda a compreender por que nos casos de fobia ou de outros transtornos associados a altos níveis de ansiedade, a exemplo da ansiedade generalizada ou do estresse pós-traumático, objetos a que deveríamos ser indiferentes funcionam como uma espécie de ímã do qual os olhos não conseguem desgrudar. Nessas situações uma região cerebral profunda em formato de amêndoa – a amígdala, responsável pelo processamento de emoções como o medo ou a aversão – se torna mais ativa e aumenta o nível de funcionamento do córtex visual, onde são decodificadas as imagens. Ou seja, não é a linha enovelada que atrai a atenção da pessoa com aracnofobia, mas a pessoa que se torna mais atenta à procura de qualquer coisa semelhante a uma aranha. “Esse efeito aparentemente desejável [estar atento ao perigo] pode na realidade se transformar em uma tormenta, porque ocupa boa parte do processamento cerebral e impede o indivíduo de focar a atenção em outras atividades”, explica Pessoa, chefe do Laboratório de Cognição e Emoção da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Pessoa e dois pesquisadores de seu laboratório, Seung-Lark Lim e Srikanth Padmala, identificaram esse papel regulador da amígdala em experimentos feitos com 30 indivíduos saudáveis. Em uma série de testes, eles apresentaram a cada participante uma sequência ultrarrápida de fotos, composta por três tipos de imagem: quadrados pretos e brancos embaralhados; um rosto; e uma paisagem (casa ou edifício). Cada bateria durava dois segundos, nos quais as imagens apareciam em ordem variável e por apenas 100 milissegundos. Ao final de cada sequência, quem assistia à exposição tinha de identificar de quem era o rosto (Andy, Bill ou Chad) e qual o tipo de edificação apresentado. Um detalhe: a imagem de uma das três faces sempre aparecia entre 200 e 500 milissegundos antes da foto da paisagem.

Cegueira momentânea
Pessoa e sua equipe em Indiana já sabiam, a partir de trabalhos feitos por outros grupos, que a tendência dos participantes desse tipo de teste é quase sempre identificar a primeira imagem-alvo – no caso, o rosto – e não registrar a segunda. Jane Raymond, Kimron Shapiro e Karen Arnell, pesquisadores canadenses que descreveram esse fenômeno em 1992, deram-lhe o nome de attentional blink, ou piscada atencional, uma espécie de desatenção ou cegueira momentânea – a pessoa vê a imagem, mas não a registra, como se tivesse piscado. Os pesquisadores de Indiana resolveram então sofisticar o teste, a fim de investigar como a emoção influencia o comportamento. Em vez de só apresentar a sequência de imagens, enquanto registravam a atividade cerebral com um aparelho de ressonância nuclear magnética, incluíram uma nova fase: numa etapa inicial de sensibilização, os participantes recebiam um choque elétrico bastante leve, cuja intensidade era controlada pelo próprio voluntário, sempre que aparecia a foto de uma casa ou de um edifício (a segunda imagem–alvo). “Por ser aversivo, o choque adiciona um componente emocional ao experimento”, explica Pessoa. Os participantes que receberam a descarga elétrica associada à imagem da casa durante a sensibilização identificaram-na em 72% das vezes em que foi mostrada, ao passo que viram o edifício em apenas 62% dos casos. Quem levou choque ao ver o edifício passou a identificá-lo com mais frequência do que notava a casa, segundo artigo publicado on-line em setembro nos Proceedings of the National Academy of Sciences(PNAS). Já se sabia que as pessoas têm melhor memória e mais percepção visual de imagens que carregam algum conteúdo emocional. Faltava, porém, descobrir por que isso acontecia. Acompanhando o funcionamento cerebral durante os testes, a equipe de Pessoa verificou que o estímulo emocional aumentou o nível de atividade da amígdala – em especial da amígdala direita – e do córtex visual. “Houve um aumento sutil no funcionamento da amígdala e do córtex visual”, explica o neurocientista brasileiro, que vive há 10 anos nos Estados Unidos. “Mesmo pequeno, esse aumento já foi mensurável e intenso o suficiente para modificar o comportamento.” Indícios de que o processamento de imagens com conteúdo emocional passa primeiro pela amígdala levaram o grupo de Pessoa a concluir que a ativação mais intensa dessa região cerebral em forma de amêndoa amplifica o funcionamento do córtex visual. O córtex visual mais ativo, por sua vez, favorece a identificação de sinais visuais de perigo no ambiente. Mantido ao longo da evolução de diversas espécies – dos seres humanos inclusive –, esse circuito neuronal deve ter favorecido a sobrevivência em situações adversas, comenta o pesquisador brasileiro. Em alguns casos, porém, esse sistema que funciona como protetor pode se voltar contra quem deveria proteger. “Como a amígdala está mais ativa em pessoas com problemas de ansiedade, como a fobia de aranhas”, comenta Pessoa, “é provável que elas identifiquem mais facilmente no ambiente imagens que passariam despercebidas para outros”.

Artigo científico
LIM, S.L. et al. Segregating the significant from the mundane on a moment-to-moment basis via direct and indirect amygdala contributions. PNAS. no prelo.

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