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Cooperação

A construção da teia

Tese discute por que não cresce a participação da pesquisa brasileira em redes internacionais

BrazEnquanto várias nações conseguiram ampliar sua produção científica feita em colaboração internacional, os artigos de pesquisadores brasileiros escritos em parceria com estrangeiros estacionaram na casa dos 30% e vêm crescendo, em números absolutos, num ritmo menor do que as colaborações internas, aquelas que resultam do trabalho conjunto de cientistas da mesma nacionalidade. Essa evidência é um dos destaques de uma tese de doutorado sobre as redes de colaboração científica do país, defendida no ano passado por Samile Vanz, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação de Ida Stumpf. Samile analisou 49.046 artigos brasileiros publicados em revistas indexadas na base Web of Science, da empresa Thomson Reuters, entre os anos de 2004 e 2006, e constatou que mais de 95% deles baseavam-se em algum tipo de colaboração. As parcerias dentro do próprio país respondiam por cerca de dois terços dos artigos e registraram estabilidade, com uma ligeira alta: de 69,2% do total em 2004 para 70,1% em 2006. Já o nível de colaborações internacionais apresentou uma pequena oscilação negativa.

A proporção de artigos brasileiros com pelo menos um autor estrangeiro, que era de 30,8% do total em 2004, foi a 30,1% em 2005 e a 30% em 2006. A estabilidade nesse patamar chamou a atenção da pesquisadora, num período em que a produção científica brasileira cresceu a taxas anuais que chegam a 8%, sendo responsável atualmente por 2% da produção mundial e 45% da América Latina, e políticas para ampliar a inserção internacional foram criadas – no início dos anos 2000, a Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes) passou a conceder os conceitos mais elevados (6 e 7) apenas a programas de pós-graduação que mantivessem colaborações internacionais. “O trabalho em colaboração está crescendo no Brasil e é responsável por quase a totalidade da produção científica indexada, mas as parcerias internacionais oscilam sem conseguir avançar”, conclui Samile Vanz.

A quantidade de artigos escritos em coautoria é usada como indicação da colaboração científica entre países, instituições e pesquisadores, ou entre setores (academia, governo e empresas privadas). Embora existam caminhos para ampliar a inserção internacional da pesquisa que não necessariamente resultam na publicação de artigos, como o intercâmbio de alunos de pós-graduação e a participação em congressos e workshops, a importância para a pesquisa brasileira do indicador de coautoria já foi observada em vários estudos. Um deles, publicado em 2006 por Abel Packer e Rogério Meneghini, do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), analisou os artigos brasileiros com mais de 100 citações na base Web of Science entre os anos de 1994 e 2003. Constatou-se que 84,3% deles eram fruto de parcerias com outros países. Outro estudo de Rogério Meneghini publicado em 1996 mostrara que artigos resultantes de colaborações internacionais têm, em média, quatro vezes mais citações do que os trabalhos que envolvem colaborações nacionais, os quais, por sua vez, têm impacto 60% superior aos publicados por um único autor. “O Brasil precisa lutar para que sua pesquisa tenha uma inserção internacional maior, porque isso dará mais visibilidade à sua produção e significará o acesso a recursos e equipamentos que não estão disponíveis quando se faz pesquisa de forma isolada”, afirma a pesquisadora Samile, cujo trabalho teve a colaboração de um grupo especializado em bibliometria da China – ela fez um estágio doutoral de um ano num laboratório da Universidade Tecnológica de Dalian, onde aprendeu técnicas de tratamento e análise de dados utilizados na tese.

A tendência ao trabalho colaborativo é justificada, segundo a literatura, por múltiplos fatores, que vão desde a necessidade de dividir custos de equipamentos e de se relacionar com pesquisadores de outros campos do conhecimento em estudos interdisciplinares até a ampliação do acesso a financiamentos e o desejo de aumentar a bagagem acadêmica, conhecer novas metodologias e desenvolver habilidades por meio do contato com quem tem mais experiência. O advento da internet e das redes sem fio facilitou o acesso de pesquisadores separados por grandes distâncias. As motivações para a colaboração, diz Samile, não são as mesmas em todos os campos do conhecimento. Na matemática, por ser uma disciplina teórica, as parcerias tendem a resultar da necessidade de trocar ideias e debater problemas. Já na física a colaboração é fortemente marcada pela necessidade de compartilhar equipamentos custosos, como aceleradores de partículas.

Os cerca de 30% de colaborações obtidas pelo Brasil nem de longe representam um dado trivial. “A estabilidade desses números mostra que temos uma comunidade científica consolidada, com grupos fortes em várias áreas que conseguem caminhar sozinhos”, diz Jacqueline Leta, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participou da banca da tese de Samile. “Uma explicação possível é que a comunidade científica formal, que é aquela que celebra as parcerias, está relativamente estabilizada. O que vem crescendo não é o número de pesquisadores, mas o de estudantes de pós-graduação, para quem produzir em colaboração é uma tarefa mais difícil”, afirma. Segundo Jacqueline, países pequenos tendem a ter índices de colaboração muito elevados, o que denota dependência de sua comunidade científica. Os 30% do Brasil estão acima dos cerca de 25% obtidos pelos Estados Unidos, responsáveis por mais de um terço de toda a produção científica do planeta. Mas se encontram abaixo de outros países da América Latina, como Chile, Argentina e México. A Europa vem ampliando seus índices de colaboração. Eles chegam a 50% da produção, o dobro de duas décadas atrás, e foram impulsionados por políticas no âmbito da União Europeia de aproximação dos cientistas de seus países membros. O nível europeu é duas vezes maior que o de países como Estados Unidos e Japão, mas o patamar desses países também vem crescendo, num sinal de crescente internacionalização da pesquisa.

BrazLea Velho, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, diz que é difícil avaliar o significado dos 30%. “Ainda não existe uma teoria clara capaz de interpretar dados desse tipo”, diz. Mas afirma que o patamar pode ser útil para refletir sobre os motivos que levam o Brasil a não conseguir elevar esses indicadores. “Faltam estímulos para que a nossa comunidade científica se relacione mais com o exterior”, ela diz. “De um lado, deixamos de mandar alunos de doutorado para o exterior, o que era uma fonte potencial de colaborações no futuro, e passamos a privilegiar os doutorados sanduíche e os pós-doutorados lá fora, que não geram vínculos tão fortes. De outro, dispomos de um sistema de financiamento que vem oferecendo oportunidades cada vez maiores de bolsas e recursos para projetos aqui mesmo no Brasil. É bem diferente do que acontece em outros países, onde a participação em redes internacionais e a disputa por recursos do exterior são cruciais para que o pesquisador possa seguir trabalhando”, afirma. Segundo Lea, nos países da Europa é fundamental que um pesquisador consiga obter recursos dos programas-quadro da União Europeia, baseados em redes. “As universidades europeias chegam a contratar pessoas para formatar a apresentação dos projetos, tal é a sua importância. Aqui no Brasil não há esse tipo de estímulo para as parcerias.”

A internacionalização da pesquisa brasileira é um tópico importante da estratégia da FAPESP, que mantém acordos de cooperação com agências, empresas e/ou instituições científicas da Alemanha, do Canadá, dos Estados Unidos, da França, do México, de Portugal, do Reino Unido e da Suíça. Um exemplo é o acordo de cooperação firmado em 2004 com o Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França, voltado para estimular o intercâmbio de cientistas e a submissão de projetos conjuntos envolvendo pesquisadores de instituições paulistas e colegas franceses, que já geraram quatro chamadas de propostas e contemplaram 27 projetos. Em moldes semelhantes, a FAPESP mantém um convênio com o DFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft), principal agência de fomento à pesquisa da Alemanha. No ano passado, a Fundação estabeleceu uma ponte com a pesquisa britânica, ao firmar acordos de cooperação com os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK, na sigla em inglês) e com o King’s College London, que se tornou a primeira universidade britânica parceira da FAPESP. Tais acordos ainda vão gerar chamadas de propostas. A estratégia de internacionalização da FAPESP inclui também trazer cientistas de fora. Por isso, oportunidades de bolsas de pós-doutorado são oferecidas em anúncios mensais na revista Nature e também no site da fundação, em português e em inglês. Grandes iniciativas da Fundação, como os programas Biota, que estuda a biodiversidade paulista, o Bioen, de pesquisa em bioenergia, e o programa de pesquisa sobre mudanças climáticas globais, vêm promovendo workshops e seminários com a participação de pesquisadores estrangeiros, a fim de estimular a participação dos pesquisadores paulistas em redes internacionais e mantê-los em contato com o estado da arte mundial em seus campos do conhecimento.

Um dos objetivos do trabalho de Samile foi atualizar o estudo sobre a coautoria, que já havia sido alvo de pesquisas anteriores. Um exemplo é o artigo publicado em 2006 na revista Scientometrics pelo húngaro Wolfgang Glänzel, a brasileira Jacqueline Leta e o belga Bart Thijs, que traçou um panorama da ciên­cia brasileira na base ISI entre 1999 e 2003, mostrando que o Brasil ostentava o menor percentual de publicações com pelo menos um parceiro internacional quando comparado a países latino-americanos como Argentina, Chile, México e Venezuela. Dez anos antes, Jacqueline Leta e Hernan Chaimovich haviam analisado a produção científica brasileira entre 1981 e 1990 e observaram um aumento no período de 21,6% para 26,7% nas colaborações internacionais. Esse percentual, porém, estabilizou-se a partir de 1993, descolando-se da evolução da produção científica.

Segundo a tese de Samile, as áreas com maior índice de parcerias são de geociências, com mais de 50% de artigos em colaboração internacional, de matemática e de física, com cerca de 40% cada uma. Os Estados Unidos são o parceiro brasileiro mais frequente, com 22% das coautorias. Em seguida, vêm França (8,2%), Alemanha e Grã-Bretanha (7,3%), Itália (4,3%), Canadá (4%), Espanha e Argentina (3,8%). Já a análise relativizada desses dados, que leva em conta a comparação entre os artigos em coautoria com a produção total dos países, mostrou, segundo Samile, que os principais parceiros do Brasil são os Estados Unidos e a Argentina. As colaborações com os Estados Unidos concentram-se em áreas como medicina clínica e experimental, biologia e biociências. No caso da França, as áreas prioritárias são a física e a química. Colaborações com o Chile se destacam em geociências e ciências espaciais (15,7% do total), provavelmente pela participação brasileira em consórcios responsáveis pela construção de grandes telescópios em território chileno.

Apesar da estabilidade no plano internacional, sobram evidências de que o trabalho em rede vem crescendo no país. Os dados da tese mostram que a média de autores nos artigos brasileiros chegou a 6,3, bem além de uma média mundial contabilizada no ano 2000, que foi de 4,16. E a tendência observada é de crescimento: a média foi de 5,9 autores em 2004, de 6,4 em 2005 e de 6,5 em 2006. Segundo Samile, isso pode ser explicado pela adesão da comunidade científica brasileira ao trabalho em cooperação, assim como pode ser uma resposta dos pesquisadores à cobrança para publicar mais – o compartilhamento maior da autoria atenderia a essa demanda.

A análise da teia de colaborações internas das 16 instituições brasileiras com maior produtividade científica revelou a formação de várias redes regionais. As instituições paulistas, como a USP, a mais produtiva de todas, a Unicamp e a Unesp, formam claramente uma rede. A USP, por exemplo, produziu 1.157 artigos em parceria com a Unicamp e 1.291 com a Unesp. Uma exceção é a Unifesp, que se apresenta, segundo a autora, de forma mais isolada, ainda que compartilhe 730 artigos com a USP. Samile atribui o desempenho das instituições paulistas aos investimentos realizados em ciência no estado de São Paulo. Na Região Sul, a UFRGS também tende a isolar-se, enquanto as federais de Santa Catarina (UFSC) e do Paraná (UFPR) formam um grupo que tende a colaborar com a federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista. Outro grupo de parceiros é formado pelas federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No Nordeste, há colaborações frequentes entre as federais do Ceará (UFCE) e de Pernambuco (UFPE). Samile Vanz adverte que é preciso avançar em séries de dados mais extensas para tirar conclusões mais aprofundadas. Ela está engajada nessa tarefa. Seguirá analisando os dados sobre a colaboração na pesquisa brasileira em anos mais recentes.

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