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Memória

A ciência no Brasil Colônia

Corte portuguesa contratou há 214 anos naturalistas para conhecer melhor as riquezas naturais do país

Interior de São Paulo no século XIX retratado no quadro Pirapora do Curuçá (hoje Tietê), 1826, de Zilda Pereira

Museu Paulista/USP

A contratação de cientistas pelo Estado para realizar estudos sobre a natureza e aprimorar tecnologias está longe de ser uma iniciativa recente no Brasil. No final do século XVIII a Corte portuguesa determinou expressamente aos governadores das capitanias brasileiras a admissão de naturalistas com o objetivo de fazer mapas do território, realizar prospecção mineral e desenvolver e disseminar técnicas agrícolas mais eficientes. Tudo para tentar gerar mais divisas e ajudar a equilibrar as periclitantes contas do reino de Portugal.

A ordem para buscar os homens de ciência capazes de pesquisar a natureza brasileira partiu de dom Rodrigo de Sousa Coutinho ao assumir a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinhos, em 1796, e formular uma nova política para a administração do Império colonial português. Para ele, era urgente conhecer a utilidade econômica das espécies nativas e investigar o verdadeiro potencial mineral das terras de além-mar. Aos governadores de cada capitania cabia acompanhar os trabalhos e relatar à Corte os progressos em curso.

Foram contratados naturalistas em Minas Gerais, em Pernambuco, na Bahia e no Ceará. Em São Paulo, o governador Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça admitiu João Manso Pereira, um químico autodidata, versado em idiomas como grego, hebraico e francês e professor de gramática, envolvido em ampla gama de atividades. “Manso é um caso notável de autodidatismo que, sem nunca ter saído do Brasil, procurava estar atualizado com as novidades científicas que circulavam no exterior”, diz o historiador Alex Gonçalves Varela, pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e autor do livro Atividades científicas na “Bela e Bárbara” capitania de São Paulo (1796-1823) (Editora Annablume, 2009). O químico era inventor e publicou diversas memórias científicas, da reforma de alambiques e transporte de aguardente à construção de nitreiras para produzir salitre. Mas fracassou no projeto de instalação de uma fábrica de ferro. “Foi quando seu didatismo mostrou ter limites.”

Em 1803 foi nomeado para seu lugar Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Silva pelo governador Antônio José de Franca e Horta. Irmão de José Bonifácio – que viria a ter papel relevante na história da Independência –, Martim era diferente de João Manso. Tinha uma formação acadêmica sólida, andou pela Europa e estudou na Universidade de Coimbra. Tradutor de obras científicas, fez numerosas viagens pelo território paulista e foi um difusor das ciências mineralógicas na época. “Ele seguia o conjunto de práticas científicas do período, ou seja, descrição, identificação e classificação dos minerais em seu local de ocorrência”, conta Varela. Anos mais tarde, Martim e Bonifácio realizaram juntos uma conhecida exploração pelo interior paulista (ver Pesquisa FAPESP edição 96).

João Manso, Martim e Bonifácio tinham em comum o conhecimento enciclopédico e uma forte ligação com a política do período. Martim chegou a ministro da Fazenda e participou do que ficou conhecido como “gabinete dos Andradas”, convidado pelo irmão, em 1822. De acordo com Varela, o trabalho científico dos três naturalistas foi de extrema relevância para ajudar o governo luso a conhecer de forma detalhada a capitania paulista e seus recursos naturais.

“A ciência e a técnica brasileira não é algo tão recente como se afirmava até meados dos anos 1980 e não passou a ser praticada aqui apenas depois que surgiram os institutos biomédicos no final do século XIX e começo do século XX”, afirma o historiador. “Há numerosos exemplos de homens ilustrados investigando a natureza, trabalhando com uma ciência utilitarista e produzindo conhecimento no período do Brasil Colônia.” Por fim, uma curiosidade: os termos naturalista e filósofo natural ainda são usados pelos historiadores para se referir aos homens de ciência da época porque a palavra cientista não existia até 1833. Naquele ano, ela foi utilizada pela primeira vez pelo polímata William Whewell, que criou o neologismo para se referir às pessoas presentes em uma reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência.

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