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Ano Internacional da Química

Sabores e perfumes

Compostos doces, amargos e cheirosos são protagonistas da história

Mariana ZanettiO perfume enleva os ânimos, seduz e, há quem diga, chega aos deuses. O doce indica energia ao paladar e gera combustíveis que movem boa parte da frota motorizada no Brasil. O amargo causa aversão, mas também dependência, e por isso origina guerras. Numa série de palestras com sotaque carioca, Vitor Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Claudia Rezende e Angelo da Cunha Pinto, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), percorreram a história da química desses sabores e odores no dia 3 de agosto, quinto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química, que celebra o Ano Internacional da Química.

Uma sala de congresso cheia de mulheres suspirando ao aspirar o perfume de Napoleão Bonaparte em pleno século XXI. Não duvide do que leu, trata-se mesmo do imperador francês e o congresso aconteceu quase 200 anos depois de sua morte. Quem relatou a cena foi Claudia Rezende, que estava presente. Mesmo incongruente, a reação ao perfume chama a atenção para o uso de fragrâncias na sedução. Napoleão, contou a pesquisadora, foi um grande estimulador da produção de perfumes e frascos de vidro. A partir da receita encontrada recentemente, a Osmothèque – um museu de perfumes em Versalhes, na França – conseguiu reconstituir a água-de-colônia produzida pelo perfumista Jean-Marie Farina para o monarca, já no final da vida deste.

Mas sedução não é a única finalidade das fragrâncias. Muito antes, substâncias aromáticas já eram usadas na higiene pessoal. “No Egito Antigo se usava uma fragrância para cada parte do corpo”, disse Claudia. Nos registros da Roma Antiga também há frascos e descrições de aromas. Segundo a palestrante, o maior choque dos perfumados romanos diante das invasões bárbaras deve ter sido a visão e o cheiro rançoso dos vikings besuntados de gordura, necessária para amenizar o frio em terras e mares escandinavos. “O uso de aromas foi tão intenso que chegou a causar um desequilíbrio na balança comercial”, ela contou, devido à importação de mirra e olíbano do Oriente.

Mirra e olíbano (incenso), aliás, eram dois dos presentes que os reis magos levaram a Jesus, segundo a Bíblia, o que já denota uma tendência religiosa para o uso de perfumes. “É um material volátil que, acreditava-se, poderia ajudar na comunicação com os deuses”, explicou a química da UFRJ. Esse uso, comum entre assírios, persas e gregos antigos, podia chegar à sofisticação de destinar perfumes específicos, como sândalo ou canela, para cada uma das divindades.

E não se pode deixar de lado as propriedades medicinais dos perfumes, que precedem em muito a aromaterapia em voga neste século. Na Grécia Antiga, já por volta de 330 a.C., Teofrasto estudou o uso de plantas para fins curativos. No século XIV, quando a peste bubônica dizimou a Europa, aqueles com mais recursos procuravam se defender levando extratos de ervas em bolsas junto à boca e ao nariz. Acreditava-se, segundo Claudia, que o odor fétido da doença e da morte (os miasmas) nas ruas era o modo de transmissão.

A partir do Renascimento surgiu uma aristocracia mais abastada, e aromas chegaram à mesa em carnes temperadas com pimenta, canela, cravo, gengibre e açúcar e em sobremesas perfumadas com rosas, flores de laranjeira e cravos.

A tecnologia e o conhecimento para tomar posse dos perfumes naturais também variaram ao longo do tempo. Desde o uso direto das plantas aromáticas até a química mais precisa de hoje, foram usadas as técnicas de extração descritas no livro O perfume – história de um assassino, de Patrick Suskind (e no filme homônimo). “O filme é uma aula de perfumaria”, resume Claudia. Na enfleurage, bastante usada antigamente, as flores (ou mulheres, no caso da aterrorizante obra de ficção) eram envoltas numa gordura inodora que absorvia as substâncias voláteis, depois extraídas com etanol. A destilação também sempre foi parte importante do processo de fabricação de perfumes à base de álcool.

A partir do século XIX tornou-se possível identificar e isolar moléculas aromáticas. Nessa época surgiram perfumes famosos como os de Guerlain, Hermès e Roger Gallet. No Brasil despontavam as boticas, como a Imperial Drogaria e Pharmacia de Granado & Cia, que até hoje produz polvilho antisséptico e sabonetes, entre outros produtos. Outro ícone da perfumaria brasileira são os sabonetes Phebo, feitos a partir de 1924 por portugueses que migraram do Sudeste para o Norte em busca de um aroma semelhante ao encontrado em alguns produtos britânicos. A matéria-prima principal era o pau-rosa, árvore amazônica que também está na base do mítico perfume Chanel nº 5, criado em 1921.

Nessa época, o estudo de moléculas foi o começo do caminho para a produção de fragrâncias em escala industrial. O químico croata Leopold Ruzicka foi um pioneiro, o que lhe valeu o Prêmio Nobel de sua área em 1939. Em 1926, ele tinha elucidado a estrutura da muscona, uma substância extraída do veado-almiscareiro 20 anos antes, muito usada na perfumaria.

Claudia apresentou também parte da trajetória histórica do mentol, um aromatizante de uso amplo em alimentos e cosméticos. Até a Segunda Guerra Mundial, a produção da menta-japonesa (Mentha arvensis) era controlada pela China e pelo Japão. Diante das dificuldades da guerra, imigrantes começaram a cultivar a planta por aqui, até chegar em 1973 ao ápice de 6.300 toneladas por ano. Nos produtos em que é desejável alguma refrescância, lá está o mentol: balas, chicletes, pastas de dente, sopas, cremes de barbear e até cigarros – neste último caso para aliviar o impacto da fumaça na garganta. Para muitos dos usos foi necessário modificar a estrutura molecular para impedir efeitos colaterais, como ardor prolongado nos olhos quando depois de espalhar loção pós-barba no rosto. “Muito do desenvolvimento químico do mentol veio da indústria do tabaco”, contou a pesquisadora. Hoje parte da substância produzida no mundo é sintética.

Apesar dos avanços na manipulação química, Claudia ainda se sente como o mestre perfumista de Perfume: agitando um lencinho para detectar as substâncias que compõem um aroma. Muito da pesquisa, ela afirma, ainda depende de narizes afiados. “É uma ciência empírica, embora tenha um arsenal científico sofisticado”, resumiu.

Amargura
Também cheia de empirismo é a história do amargo contada por Angelo da Cunha Pinto. O texto médico mais antigo que se conhece são receitas entalhadas em escrita cuneiforme na antiga Suméria, na Ásia, em torno do ano 2.200 a.C.. Desde as poções dos deuses feiticeiros da mitologia, “químicos de produtos naturais com grande perícia de laboratório”, até os produtores de drogas de hoje, as plantas produtoras de substâncias da classe dos alcaloides foram experimentadas de várias maneiras.

Fotos Eduardo CesarVitor Ferreira, Claudia Rezende e Angelo da Cunha PintoFotos Eduardo Cesar

E deram origem a guerras como a do ópio, que opôs China e Inglaterra no século XIX. Na origem da guerra estava a delicada papoula, cultivada na Tailândia, no Laos e em Mianmar, e de cujos frutos se extrai o ópio. A substância era sobretudo um remédio, mas fumá-la se tornou um hábito na China com a proibição do consumo de tabaco. E o fornecedor era o Império Britânico, o que acabou gerando desentendimentos de comércio.

Mas além de guerra e dependência, o ópio é um alcaloide precioso para a medicina. Um de seus derivados é a morfina, medicamento de combate à dor que deu origem à seringa hipodérmica, usada pela primeira vez em 1853 na Guerra da Crimeia. Muitos dos remédios antigos tinham ópio na composição, a exemplo do elixir paregórico, usado contra diarreias até os anos 1970, e dos xaropes à base de codeína.

A cocaína, hoje protagonista na “guerra do Rio”, nas palavras de Cunha Pinto, foi sintetizada em 1857 pelo alemão Albert Niemann e muito usada em chás, elixires, vinhos e até pastilhas para dor de dente. “De vinho e tônico passou às drogas”, lamentou o palestrante.

Além desses exemplos, são muitas as plantas produtoras de alcaloides naturais usados de várias formas por povos do mundo todo e de todos os tempos registrados pela história, como o quinino contra a malária, a mandrágora como fortificante e afrodisíaco, e a bebida ayahuasca, feita com o cipó iagê e as folhas de chacrona, usada em rituais como os do santo daime.

Açúcar
Também partindo da natureza, Vitor Ferreira se embrenhou pela química avançada. Mostrando à plateia no auditório da FAPESP um saquinho de açúcar e outro de adoçante, desses disponíveis em cafés e restaurantes, chamou a atenção para a diferença de tamanho entre os dois. Adoçantes artificiais, explicou, são muito mais doces do que a sacarose natural: 600 vezes mais doce no caso da sucralose. Mas o açúcar faz muito mais do que adoçar a vida.

“Mais doce ainda que a doçura é a potencialidade dos carboidratos para produtos de química fina”, brincou o palestrante. O mesmo açúcar que o corpo busca como fonte de energia também dá origem aos biocombustíveis, aposta em vários países para um equilíbrio entre a necessidade de locomoção e o problema de emissão de poluentes. A produção de biocombustíveis em larga escala e a partir de uma série de substâncias é um avanço real mas, segundo Ferreira, está longe de ser novidade. “O próprio [engenheiro alemão Rudolf] Diesel, quando inventou o motor a diesel, o fazia rodar com óleo de amendoim.”

Agora a fabricação dos diversos produtos – como alimentos e insumos químicos – a partir de açúcares avança no sentido de tornar a síntese mais limpa e sustentável, dando origem à chamada química verde. “Em 2020 a química verde deve gerar US$ 307 bilhões”, afirmou. A matéria-prima não está em falta: 95% da biomassa produzida pela natureza, cerca de 200 bilhões de toneladas por dia, são carboidratos, e o homem usa apenas 5% desse total.

Num verdadeiro desfile de moléculas – como maltose, quitina e celulose –, Ferreira mostrou como blocos de construção à base de açúcar criam uma infinidade de produtos, entre eles fixadores de aroma em refrigerantes, plásticos biodegradáveis e suturas cirúrgicas. “A química da sacarose é tão importante que tem até nome: sucroquímica.” E deve ganhar mais importância à medida que o petróleo se torna mais escasso, desde que haja investimento suficiente em pesquisa. “Precisamos aprender a fazer com essa biomassa tudo o que fazemos com o petróleo”, alertou. Segundo ele, fontes alternativas como solar e eólica podem contribuir para resolver problemas de energia, mas a química fina dependerá dos carboidratos. E na economia dessa química o Brasil deve sobressair.

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