Imprimir PDF Republicar

Arqueologia

A dieta de Luzio

Homem pré-histórico morava em beira de rio há 10 mil anos, mas quase não comia peixe

Eduardo CesarDentes de Luzio: bem preservados e com poucas cáriesEduardo Cesar

A dieta do habitante pré-histórico mais antigo encontrado em terras do estado de São Paulo reforça a ideia de que existiu no Vale do Ribeira, perto da divisa com o Paraná, um povo com uma cultura intermediária entre o modo de vida do litoral e o do planalto. Luzio, apelido dado ao esqueleto humano de 10 mil anos de idade descoberto em 2000, vivia na bacia do rio Jacupiranga, distante algumas dezenas de quilômetros da costa, mas tinha uma cultura com certos elementos que o conectavam ao mar. No sítio em que foi achado, havia centenas de pontas de flecha de pedra e adornos feitos com dentes de macaco, mas também uns poucos enfeites elaborados com dentes de tubarão e pontas de rabo de arraia. Luzio tinha marcas de remador ou nadador em sua clavícula e fazia cemitérios em que os mortos eram cobertos por uma grossa camada de conchas – um tipo de vestígio arqueológico conhecido como sambaqui, característico das antigas populações do litoral e apenas eventualmente encontrado nas cercanias de rios brasileiros. Apesar desses elementos que o ligavam ao mundo aquático, Luzio comia qual um morador do Brasil central, segundo estudo publicado em 14 de setembro na revista científica Plos One. Seu cardápio do dia a dia era composto de carne de caça, provavelmente de roedores, porcos-do-mato e veados, alguns tubérculos, frutas e – agora vem o dado interessante – quase nenhum peixe ou crustáceo, seja de origem marinha ou mesmo fluvial.

A reconstituição do repasto típico de velho morador do sambaqui de rio foi feita pela bioantropóloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), em parceria com três pesquisadores do exterior. A partir de amostras de uma proteína (colágeno) e de um mineral (apatita) extraídos de ossos de Luzio, a pesquisadora analisou a presença de diferentes formas, os chamados isótopos, de dois elementos químicos, o carbono e o nitrogênio. “Por essa abordagem, conseguimos inferir como foi a alimentação do Luzio nos últimos seis meses de vida”, diz Sabine, especialista em estudar a dieta e as doenças dos povos antigos. “Não dá para dizer que ele nunca comeu peixe, mas, com certeza, esse item não era frequente em seu cardápio.” Os testes com isótopos foram feitos em dois laboratórios distintos e ambos deram o mesmo resultado.

De baixa estatura, com cerca de 1,60 metro, Luzio recebeu esse nome porque seus traços lembravam os de Luzia, o crânio humano mais antigo encontrado no Brasil, pertencente a uma jovem que viveu há 11 mil anos em Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte. Luzio e Luzia tinham, no jargão dos especialistas, traços negroides, semelhantes aos dos atuais aborígenes australianos e africanos. A maioria dos autores acredita que esse tipo físico não deixou descendentes no continente americano. As atuais tribos de ameríndios derivam de antigas populações de traços ditos mongoloides (com os olhos puxados), típicas da Ásia, que, segundo alguns modelos de ocupação das Américas, se estabeleceram aqui posteriormente.

Quando foi resgatado do sítio arqueológico de Capelinha I, no município de Cajati, durante escavações patrocinadas por um projeto temático da FAPESP, Luzio forneceu indícios de que podia ter uma dieta singular (ver reportagem de Pesquisa FAPESP na edição no 112, de junho de 2005). Para algúem que viveu há 10 milênios, seus dentes estavam bem conservados e exibiam somente um leve desgaste horizontal. “Encontramos no Luzio apenas quatro microcáries”, conta Sabine. “Nos habitantes de sambaquis de mar é comum depararmos com arcadas dentárias mal preservadas.” Os povos pré-históricos que viveram na costa brasileira se alimentavam basicamente de peixes e moluscos. Ao ingerir cotidianamente esse cardápio, os dentes desses sambaquieiros entravam em contato com restos de areia e conchas, elementos que contribuíam para seu desgaste.

daniel das nevesLuzio apresentava dentes em bom estado. Era, portanto, esperado que tivesse uma dieta mais próxima da dos antigos habitantes de áreas de planalto, em que o consumo de carne de caça e plantas não castiga tanto os dentes. Mas não se suspeitava que os peixes fossem uma raridade em suas refeições. “Chegamos a pensar que Luzio fosse um ceramista pescador-coletor”, comenta o arqueólogo Levy Figuti, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, coordenador dos trabalhos de escavação no Vale do Ribeira que redundaram na descoberta do crânio de 10 mil anos em Capelinha. “Mas hoje está ficando mais evidente que ele era provavelmente um caçador-coletor.”

No sítio de Capelinha I foram encontradas, além dos artefatos de origem marinha e dos vestígios de construção de sambaquis com conchas terrestres, muitas evidências de que Luzio vivia da caça de animais terrestres. Foram resgatadas pontas de lanças e de flechas feitas de sílex ou quartzo, dentes perfurados de bugios, usados, como os de tubarão, provavelmente em colares ou pulseiras, e uma flauta feita com osso polido de mamíferos terrestres. Em seus trabalhos de campo, a equipe de Figuti estudou 30 sambaquis fluviais do Vale do Ribeira e encontrou cerca de 60 esqueletos de antigos habitantes da região. Só no sítio arqueológico de Moraes, na bacia do rio Juquiá, foram descobertos restos de 40 indivíduos, a maioria tendo vivido há cerca de 5 mil anos. Nenhum deles era tão velho nem exibia os traços físicos de Luzio (todos tinham uma morfologia do tipo asiático), embora elementos de contato com o mar estivessem presentes em alguns desses lugares.

Como Luzio chegou ao Vale do Ribeira? Há duas hipóteses, que não são necessariamente excludentes e podem até ser combinadas. Mais jovem e com traços físicos semelhantes aos de Luzia, o sambaquieiro fluvial pode ser um representante dos descendentes do povo de Lagoa Santa que conseguiu cruzar o interior do Brasil e se estabelecer no Vale do Ribeira. “Olhando o trecho do litoral brasileiro em que há grande ocorrência de sambaquis, entre o Espírito Santo e Santa Catarina, vemos que a serra do Mar representa uma grande barreira para o contato entre os povos do mar e os do interior”, diz a arqueóloga Mercedes Okumura, do MAE-USP. “Mas o Vale do Ribeira pode ter sido uma exceção nesse cenário.”

Eduardo Cesar e laboratório de estudos evolutivos humanos / ib-usp Crânios de Luzio (à esq.) e de Luzia: traços semelhantes aos dos atuais aborígenes australianos e africanosEduardo Cesar e laboratório de estudos evolutivos humanos / ib-usp

Ponte para o mar
Nessa região do sul do território paulista, a transição entre a serra do Mar, onde predominava a mata atlântica, e a área costeira é mais suave, com escarpas menos íngremes. O Ribeira do Iguape é um dos poucos rios de São Paulo que correm do planalto para o leste, a caminho do mar. Corta serras e pequenos vales, criando ambientes que podem ter sido pontes naturais entre o litoral e o planalto. Essas particularidades da geografia da região podem ter facilitado o contato de Luzio com as populações do Atlântico.

Existe outra explicação para a presença de Luzio no extremo sul de São Paulo em tempos tão recuados. Ele pode ter migrado da área costeira para a de planalto. Nesse caso, ele seria representante de um povo que teria abandonado a vida no litoral e decidido desbravar as terras mais altas. Contra essa hipótese há um dado incômodo: até agora não se descobriu nenhum sambaqui litorâneo que seja mais antigo do que o sítio de Capelinha I. A atual cronologia de ocupação da costa atlântica não favorece esse cenário. Mas há um atenuante. Há 10 mil anos, a linha da costa se encontrava algumas dezenas de quilômetros mais distante do que está hoje. É possível que os sambaquis mais antigos estejam hoje cobertos pelas águas e talvez nunca sejam encontrados.

Nos últimos anos, boas notícias animaram os estudiosos dos cemitérios de conchas encontrados na costa atlântica. Novas datações de sítios com sambaquis indicam que a presença humana em trechos do litoral brasileiro é mais antiga do que se pensava. O arqueólogo Flavio Calippo, hoje professor na Universidade Federal do Piauí (UFPI), encontrou no início da decada passada vestígios de ocupação humana de 8 mil anos no sítio semissubmerso de Cambriú Grande, na ilha do Cardoso, também no Vale do Ribeira. A equipe do físico Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), obteve recentemente mais evidências geológicas que confirmam a idade do Sambaqui do Algodão, em Angra dos Reis. O sítio arqueológico tem mesmo 8 mil anos. “Parece que os sambaquis mais antigos estão no trecho do litoral entre Rio e São Paulo”, diz Meigikos. No entanto, nenhuma dessas datações recentes resolve a questão se Luzio veio do mar ou das terras altas antes de se fixar em Capelinha.

Artigo científico
EGGERS, S. et al. Paleoamerican diet, migration and morphology in Brazil: archaeological complexity of the earliest americans. Plos One. Publicado eletronicamente em 14 de setembro de 2011.
Republicar