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Relações delicadas

Como a pesquisa de universidades paulistas contribui para os estudos de gênero no país

agência brasilManifestação contra o machismo e pelos direitos das mulheres em Brasília, em 2011agência brasil

O espaço conquistado pelas mulheres e a consequente teia de relações que elas se habilitaram a estabelecer foram abordados por pesquisadores do estado de São Paulo cujo trabalho recebeu financiamento da FAPESP ao longo dos 50 anos de trajetória da Fundação. Se a preocupação dos estudos feitos nos anos 1960 e 1970 referiu-se principalmente à condição feminina, materializada nos efeitos da violência doméstica e nas assimetrias do mercado de trabalho, o referencial expandiu-se nas décadas seguintes para abarcar as relações de gênero, os vínculos estabelecidos entre homens e mulheres (e também no interior das duas categorias) em camadas diversas da condição humana.

Em 1963, a socióloga Eva Alterman Blay, pioneira em estudos sobre a mulher no Brasil e referência do movimento feminista, recebeu uma bolsa da FAPESP para fazer seu mestrado sobre a condição da mulher no trabalho doméstico, domiciliar e na indústria. Ela havia se graduado e fora convidada para trabalhar como instrutora voluntária, sem remuneração, no departamento de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. “Eu tinha sido uma boa aluna e os professores me convidaram para trabalhar como professora e pesquisadora. Mas como não havia vaga, o trabalho era sem remuneração”, relembra. Azis Simão e Ruy Coelho, dois de seus professores, sentiam-se desconfortáveis com a situação e sugeriram que ela pedisse uma bolsa para a recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Eva apresentou seu projeto, para realizar estudos sobre a mulher trabalhadora, e foi chamada para conversar com o então diretor científico da FAPESP, o geneticista Warwick Kerr.

“Ele me tratou muito bem, e deve ter gostado do projeto, porque a bolsa foi concedida. Mas parecia ter dificuldade em compreender por que eu queria estudar a condição da mulher. Expliquei que faltavam dados sobre a mulher, que a sociedade era dividida entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, e que cada categoria desperta o interesse da sociologia. Ele fazia perguntas de forma muito bem-humorada e em nenhum momento me senti constrangida. Mas como ninguém fazia esses estudos naquela época, ele, assim como muita gente, tinha dificuldade de compreender a importância desse tema”, recorda-se Eva Blay, que cita a colega Heleieth Saffioti (1934-2010) como outro exemplo de pesquisadora interessada no tema naquela mesma época. “O livro da Simone de Beauvoir havia circulado no Brasil nos anos 1950, mas não teve a repercussão que hoje se diz”, recorda-se a professora, que sentiu um forte impacto sobre o tema depois de ler uma versão em francês do livro da feminista Betty Friedan (1921-2006), La femme mystifiée. “Me lembro de ler o livro enquanto amamentava meu filho em 1964 e concluir que era aquilo que eu queria estudar”, afirma.

A bolsa de mestrado rendeu uma dissertação sobre o Ginásio Industrial Feminino em São Paulo, apresentada em 1969. Mesmo antes de concluí-la, já orientava na pós-graduação. Nessa época,  ofereceu uma disciplina na pós-graduação da sociologia sobre a questão da mulher. “Ninguém se inscreveu”, diz. Ela recebeu outra bolsa da FAPESP para fazer o doutorado, concluído em 1973, sobre o espaço das mulheres na indústria paulista. “Foi uma dificuldade tremenda obter os dados, porque até aquela época o IBGE não distinguia homens e mulheres nos censos industriais. Só queria saber quem era o chefe da família, deduzindo a priori que era o homem, mesmo que não fosse. O tema era ignorado.” Um dos achados de sua pesquisa foi mostrar que as mulheres com trabalho qualificado na indústria paulista eram claramente subaproveitadas. “O salário era pouco maior do que a metade do dos homens. Mesmo sendo formadas em medicina ou em química, recebiam tarefas subalternas na indústria, como traduzir manuais, ou trabalhar em funções de secretariado”, lembra.

josé amarante / agência brasilAtivistas defendem direitos femininos na Constituinte, em 1986josé amarante / agência brasil

O ineditismo de sua pesquisa e o avanço do feminismo nos Estados Unidos e na Europa chamaram atenção para o tema e geraram uma série de convites para palestras. “A princípio, alguns sindicatos reagiram mal aos resultados de minha pesquisa. Recebi uma carta do sindicato dos químicos dizendo que eu estava ferindo a imagem da categoria. Outros reclamavam da crítica ao salário mais baixo das mulheres. Eu dava exemplos: se a mulher ganha 50 e o homem 70, alguém está ficando com os 20 de diferença. Aí eles entendiam e a resistência diminuiu”, diz Eva Blay, que criou, nos anos 1980, o Núcleo de Estudos da Mulher e das Relações Sociais de Gênero (Nemge) da USP e se tornou uma referência do feminismo – inclusive como senadora da República, entre 1992 e 1994, quando assumiu a vaga de Fernando Henrique Cardoso, nomeado ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Logo depois de Eva Blay, outros pesquisadores envolveram-se com a questão da mulher no mercado de trabalho, caso, por exemplo, da socióloga Cristina Bruschini (1943-2012), que em 1977 concluiu mestrado na USP sobre mulheres em profissões de nível superior, com bolsa da FAPESP, e aprofundaria o tema em diversos artigos e livros, e ao longo de sua carreira de pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.

Se os estudos brasileiros sobre a condição feminina sofreram influência da produção acadêmica norte-americana e europeia, uma de suas vertentes, a pesquisa sobre a violência contra a mulher, desenvolveu-se de forma particular no Brasil – impulsionada por uma realidade trágica. Um dos marcos foi o livro Morte em família (Grall, 1983), da antropóloga Mariza Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre homicídios e tentativas de homicídios cometidos em Campinas entre 1952 e 1972 e as representações jurídicas dos papéis sexuais: a Justiça avaliava mais o papel do homem e da mulher do que o crime em si. “No fundo, o que se julgava era se a vítima era boa esposa ou não ou se o marido assassino era um bom provedor do lar”, diz a antropóloga Guita Grin Debert, professora da Unicamp. Até os anos 1970 era corriqueiro na Justiça brasileira o argumento da “legítima defesa da honra” para absolver maridos que matavam esposas. “Quando cheguei a Campinas, em 1970, ocorria o julgamento de um rumoroso caso do promotor que matou a esposa adúltera e acabou absolvido. ‘Campinas lavou a sua honra’, foi a manchete do jornal”, disse Mariza Corrêa em entrevista ao Jornal da Unicamp, em 2004, referindo-se ao assassinato da mãe da atriz Maitê Proença, morta pelo marido. O assassinato da socialite Ângela Diniz em 1976 pelo namorado Doca Street foi um ponto de inflexão – o assassino foi absolvido num primeiro julgamento, que acabou anulado, mas condenado no segundo. O advento das delegacias da mulher foi uma resposta à mobilização do movimento feminista, mas também pode ser visto como um dos efeitos da pesquisa sobre a violência contra a mulher aplicada a políticas públicas.

Já na segunda metade dos anos 1970, tomou corpo uma mudança no enfoque teórico dos estudos sobre a condição feminina, marcado por uma nova nomenclatura: a pesquisa sobre as relações de gênero. “A partir de certo momento, ficou claro que a condição da mulher não existe de forma isolada como tema de pesquisa: o que existe é uma relação social, uma relação entre homens e mulheres”, explica Eva Blay. “Constatou-se que a ideia de mulher focalizada pela pesquisa até então era restrita. Dizia respeito a mulheres brancas, heterossexuais e em idade reprodutiva. Crianças e mulheres idosas, mulheres negras e homossexuais não se enxergavam nos estudos da mulher”, diz Guita Debert. “A ideia se centra mais em como as diferenças são produzidas, colocando em xeque a universalidade da dominação masculina”, afirma.

victor soares / agência brasilMulher trabalhadora no Ceará: da pesquisa às políticas públicasvictor soares / agência brasil

A produção do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, criado na Unicamp em 1986, é exemplar da complexidade desse novo enfoque teórico. Os estudos feitos pelo núcleo abrangem preocupações como a relação entre as características masculinas e femininas e as convenções sobre o corpo, as intervenções médicas como cirurgias plásticas rejuvenescedoras ou operações de mudança de sexo, a produção artística e científica de homens e mulheres, a sociabilidade dos homossexuais que envelhecem, o mercado sexual e a pornografia, entre outros. Um projeto temático financiado pela FAPESP entre 2004 e 2009 ajudou a consolidar vários eixos de pesquisa do grupo. “O projeto foi o mais importante do núcleo, no sentido de costurar e aglutinar interesses e objetos de pesquisa que vinham sendo desenvolvidos desde sua formação”, diz Maria Conceição da Costa, professora do departamento de política científica e tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, atual coordenadora do Núcleo Pagu – seu campo de estudos é a interface entre gênero e ciência.

Guita Debert, que já coordenou o Núcleo Pagu, dedica-se, entre outros tópicos, ao estudo da sexualidade na velhice, com foco nas cirurgias estéticas utilizadas para camuflar os efeitos do envelhecimento. Uma de suas contribuições consistiu em mostrar que as cirurgias estéticas não ampliam as potencialidades do corpo, como imagina o senso comum. “Ao contrário, restringem tais potencialidades porque representam uma aversão às diferenças. As pessoas sabem que não vão se transformar numa Gisele Bündchen, o que querem é apagar características que fogem à normalidade e serem aceitas”, afirma a professora, que é membro da Coordenação de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. No caso das cirurgias usadas para remover marcas da passagem do tempo, a situação é ainda mais complexa. “A gerontologia enfatiza a ideia de que é preciso envelhecer com qualidade de vida, de que sexo não tem idade, mas o que as cirurgias fazem é tentar driblar a natureza. Não existe uma estética da velhice para norteá-la”, afirma a pesquisadora, que atualmente se debruça também sobre um projeto de políticas públicas para idosos envolvendo sexualidade, gênero e violência.

Adriana Piscitelli, pesquisadora e também ex-coordenadora do Núcleo Pagu, estudou a transnacionalização dos mercados do sexo, mergulhando no universo do turismo sexual em Fortaleza. Ela acompanhou as trajetórias de brasileiras que migraram para a Itália, convidadas por turistas estrangeiros, e deixaram o mercado do sexo ao casar com eles, e também de brasileiras que se dirigiram à Espanha para trabalhar, oferecendo serviços sexuais. Os resultados de sua pesquisa questionam as leituras que consideram todos esses deslocamentos como tráfico de mulheres com fins de exploração sexual. A migração de brasileiras para trabalhar na indústria do sexo europeia tem a ver com a busca de oportunidades econômicas e sociais, como é comum em fluxos migratórios. Segundo Adriana, o trabalho na indústria do sexo é, muitas vezes, uma estratégia temporária para viabilizar o projeto migratório, que pode envolver a intenção de casar e formar família.  “Encontrei numerosos casos de mulheres que saíram da indústria do sexo para se casar, permanecendo na Europa. E não são casamentos de fachada”, afirmou. Na Espanha, observou que as brasileiras encaixavam-se num ranking de procura dos empresários da indústria do sexo, que privilegiava as profissionais vindas do Leste Europeu, e diluía as brasileiras na categoria de prostitutas latino-americanas – ainda que fossem mais valorizadas no mercado sexual que outra categoria, as africanas.

Os estudos de gênero no Brasil sofisticaram-se nos últimos anos. Para ter uma ideia da diversidade, entre os projetos atualmente apoiados pela FAPESP há pesquisas sobre os cuidados com a saúde com homens e mulheres residentes na capital paulista (Faculdade de Saúde Pública da USP), o papel social das arquitetas (Universidade Mackenzie), a divisão de tarefas entre homens e mulheres numa cooperativa de catadores de papel (Faculdade de Educação da Unicamp) ou dificuldades de acesso à Justiça para as mulheres (Faculdade de Direito da USP em Ribeirão Preto). “As principais universidades do país têm grupos dedicados às pesquisas de gênero”, diz Eva Blay. “O avanço foi extraordinário: não há legislação sobre saúde, educação, violência que não leve em consideração as relações de gênero. Há um intercâmbio entre o que a universidade produz e a formulação de políticas públicas”, afirma a professora.

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