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Fragmentos móveis

DNA cigano

Trechos do material genético mudam de lugar seguindo padrão não aleatório

Cada vez mais pesquisadores identificam funções importantes desempenhadas por trechos do DNA antes considerados lixo. Entre esses segmentos do material genético estão os chamados elementos de transposição ou transposons. São fragmentos que, a qualquer momento, duplicam-se ou se destacam de onde estão e se instalam em outras partes do DNA, às vezes junto a genes essenciais ou até em meio à estrutura desses genes. Na investigação desses curiosos personagens moleculares, o grupo da bióloga Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), ataca o genoma da cana-de-açúcar em bloco – um enfoque inovador. E mostra que os movimentos desses fragmentos são menos aleatórios do que se imagina e possivelmente têm papel importante na dinâmica do genoma.

Essa análise em ampla escala tornou-se possível graças aos resultados do Projeto Genoma Cana-de-Açúcar (Sucest), encerrado em 2001, que desvendou sequências do genoma funcional dessa planta essencial na economia brasileira e revelou a existência de 276 elementos de transposição ativos – ou expressos, no jargão da biologia. “Em 2005 demoramos dois meses para convencer o editor da Plant Journal de que o resultado era real, e não uma contaminação”, recorda Marie-Anne. Naquela época, estudos genômicos feitos inteiramente por pesquisadores brasileiros eram incomuns e o resultado surpreendia. Mas a revista acabou publicando o artigo, depois de aceitar o indício de que esses trechos do DNA – também conhecidos como transposons – deveriam ter função, embora ainda não se soubesse qual era.

A partir dos resultados do Sucest e do aumento da capacidade de gerar e analisar enormes volumes de dados, o grupo de Marie-Anne se debruçou de 2009 em diante, em colaboração com colegas do estado de São Paulo, no sequenciamento de mil pedaços seletos do genoma da cana-de-açúcar. Sua equipe hoje parece uma linha de produção de conhecimento científico, e de certa maneira é: uma série de artigos deste ano traz avanços importantes sobre o funcionamento dos transposons.

O maior destaque vai para o estudo publicado na BMC Genomics, uma colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista, entre eles Fabio Nogueira, e da Universidade Estadual de Campinas, a exemplo de Renato Vicentini. De abril a julho o artigo foi visto mais de mil vezes no site da revista e ganhou a etiqueta de altamente acessado. “Fomos os primeiros a mostrar molecularmente que os elementos de transposição têm padrões individualizados”, explica Marie-Anne. Isso significa que, quando um desses fragmentos de DNA se destaca de sua localização de origem, seu destino não é tão aleatório como se pensava. Cada família de transposons tem uma tendência maior a se instalar em determinados cromossomos ou regiões cromossômicas. Ao estabelecer esses padrões, Marie-Anne espera caracterizar como essa interação influencia a ação dos genes.

Muitas das famílias de elementos de transposição se diversificaram há muito tempo, antes mesmo de as plantas com flores se separarem em dois principais grupos: o das monocotiledôneas, como o milho, a cana e o arroz, cujas sementes têm um reservatório de energia (cotilédone); e o das dicotiledôneas, a exemplo dos arbustos e das árvores, com sementes dotadas de dois cotilédones. O grupo de Marie-Anne mapeia essa diversificação dos transposons ao longo do tempo em três espécies de monocotiledôneas de interesse comercial (sorgo, cana e arroz) no artigo de revisão em processo de publicação na Topics in Current Genetics.

A cana-de-açúcar é um caso especial, porque parece ter muito mais elementos de transposição ativos do que as outras plantas estudadas. A bióloga da USP explica isso com base na sua origem híbrida a partir da mistura entre duas espécies silvestres: Saccharum officinarum e S. spontaneum. O resultado da hibridização é uma planta que produz muito mais açúcar e é tolerante a doenças. Para Marie-Anne, o processo de fusão das duas espécies causou um desequilíbrio no funcionamento genético que pode ter alterado a movimentação dos fragmentos móveis de DNA. “O organismo precisa recuperar um compasso único.”

A influência desses elementos pode estar por trás da própria identidade da planta. “Cana, sorgo e milho têm em comum 80% de seus genes; o que os torna diferentes pode ser a regulação genômica”, diz Marie-Anne. Para ela, os elementos de transposição podem estar cumprindo essa função de modular o funcionamento dos genes.

Daqui para a frente, os estudos podem ganhar aplicações práticas e contribuir para o melhoramento dessa planta que produz dois terços do açúcar do mundo e cada vez mais ganha espaço como fonte de combustível renovável. Os elementos de transposição podem ajudar a identificar e controlar o funcionamento de genes como os responsáveis pela resistência à seca, contribuindo para a produção de variedades adaptadas a ambientes mais áridos. Mas o interesse econômico nem é o principal para os geneticistas vegetais, que consideram o funcionamento genético da cana-de-açúcar interessante por si só devido à origem híbrida e às duplicações que fazem com que a espécie tenha um genoma múltiplo, com várias cópias de cada gene. Parece fascinante imaginar que pequenos fragmentos de DNA, que se movimentam de um lado para o outro dentro do núcleo da célula, como se fossem ciganos, podem ter contribuído para que a cana-de-açúcar não fosse apenas mais uma espécie entre muitos tipos de capim.

O Projeto
Sugarcane genome sequence: plant transposable elements are active contributors to gene structure variation, regulation and function (nº 08/52074-0); Modalidade Projeto Temático – Bioen; Coordenadora Marie-Anne Van Sluys – IB-USP; Investimento R$ 2.504.444,87

Artigos científicos
DOMINGUES, D. S. et al. Analysis of plant LTR-retrotransposons at the fine-scale family level reveals individual  molecular patterns. BMC Genomics. v. 13, n. 137. 16 abr. 2012.
DE SETTA, N. et al. Noise or symphony: comparative evolutionary analysis of sugarcane transposable elements with other grasses. Topics in Current Genetics. no prelo.

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