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50 anos de FAPESP

Nasce um continente

Laboratório pioneiro ajuda a reconstruir a história geológica da América do Sul, determinando a idade das rochas

Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás

Lalo de Almeida

É difícil imaginar que as fundações rochosas sustentando os continentes não sejam eternas e estáticas. Ao longo da segunda metade do século XX, porém, ficou claro para os geólogos que os continentes se movem lentamente, abrindo e fechando oceanos à sua volta, e que sua estrutura interna é fruto de uma complexa colagem de imensos blocos de rocha que foram crescendo e sendo embaralhados na superfície do planeta ao longo de mais de 4 bilhões de anos.

Impulsionados pelo calor do interior da Terra, esses blocos às vezes se fragmentaram em unidades menores, às vezes se fundiram em supercontinentes, constantemente modificando as feições do mapa-múndi. Essa conturbada dinâmica, explicada pela chamada teoria da tectônica de placas, ergueu várias cordilheiras de montanhas, hoje completamente erodidas, mas que já foram tão altas quanto os atuais Andes e Himalaia. Também criou e destruiu inúmeros oceanos ancestrais, até esculpir o contorno atual dos continentes.

Destrinchar cada passo dessa história é literalmente um quebra-cabeça de proporções globais, cujas peças ainda estão para serem totalmente compreendidas. Funcionando há quase 50 anos, o Centro de Pesquisas Geocronológicas (CPGeo), do Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), foi o pioneiro na América Latina em dominar a arte da geocronologia – a determinação precisa da idade de eventos geológicos gravados nas rochas –, essencial para se reconstruir a evolução dos continentes.

“O que se conhece de geocronologia sobre a América do Sul começou conosco”, lembra Umberto Cordani, um dos fundadores do CPGeo e até hoje um de seus pesquisadores principais. Por meio de suas datações de rochas, os pesquisadores do CPGeo contribuíram para a consolidação da teoria da tectônica de placas, bem como ajudaram a esclarecer a história dos blocos rochosos que se amalgamaram para formar a América do Sul.

O centro nasceu de uma iniciativa do geólogo Viktor Leinz, então professor catedrático da Universidade de São Paulo (USP), em conjunto com o físico John Reynolds, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos. Reynolds foi um dos pioneiros em desenvolver métodos de geocronologia e responsável pela implantação de laboratórios em vários países. Com apoio da National Science Foundation, o físico norte-americano adquiriu os equipamentos necessários, enquanto Leinz obteve junto à FAPESP e o CNPq os recursos para a instalação e manutenção do laboratório na USP.

Fabio ColombiniChapada Diamantina (BA), 1,4 bilhão de anosFabio Colombini

Inaugurado em 1964, o laboratório foi operado inicialmente por Reynolds, pelo físico Koji Kawashita e pelos então recém-formados geólogos Gilberto Amaral e Cordani. Já na primeira datação realizada pelo laboratório, os pesquisadores fizeram uma descoberta importante, publicada em 1966 na revista Geochimica et Cosmochimica Acta: de acordo com suas medidas, as rochas vulcânicas da Formação Serra Geral, na bacia do Paraná, deveriam ter se formado no período Cretáceo Inferior (entre 100 milhões e 150 milhões de anos atrás) – muito tempo depois do que supunham os geólogos da época. A pesquisa desencadeou discussões sobre a evolução da bacia do Paraná, um tema que, segundo Cordani, continua sendo um dos problemas em aberto da geologia brasileira.

Em 1967, a revista Science publicou o artigo científico que Cordani considera a principal contribuição do CPGeo à ciência. Embora a deriva dos continentes já tivesse sido proposta em 1912, pelo geocientista alemão Alfred Wegener, até o início dos anos 1960 predominava entre os geólogos a teoria verticalista – a ideia de que os continentes sempre permaneceram no mesmo lugar, sendo que a estrutura das rochas, suas dobras e falhas podiam ser explicadas exclusivamente pelo afundamento e soerguimento dos blocos rochosos. Entre 1964 e 1968, porém, uma série de artigos científicos foi publicada, exibindo as principais evidências e propondo pela primeira vez quais seriam os mecanismos por trás da teoria da tectônica de placas.

O artigo na Science foi resultado de uma colaboração entre uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), liderada pelo geólogo Patrick Hurley, e os pesquisadores da USP Fernando de Almeida, Geraldo Melcher, Paul Vandoros, Kawashita e Cordani. No trabalho, os pesquisadores compararam as idades de várias formações rochosas do Nordeste brasileiro com formações semelhantes na África Ocidental, contribuindo para demonstrar que os dois continentes formavam um só, antes de o nascimento do oceano Atlântico começar a separá-los, há pouco mais que 100 milhões de anos. “Contribuímos para a mudança de paradigma das geociências”, diz Cordani.

Cronômetros geológicos
A geocronologia se baseia na medida de quantidades ínfimas de certos elementos químicos aprisionados dentro de minerais nas rochas. Chamados de isótopos radioativos, esses elementos se transformam em outros, ao longo de bilhões de anos. No primeiro método desenvolvido no CPGeo, chamado de potássio-argônio, por exemplo, os pesquisadores sabem exatamente quanto tempo demora para uma quantidade do isótopo radioativo potássio-40 se transformar no isótopo argônio-40. Assim, a proporção entre as quantidades de potássio-40 e argônio-40 funciona como uma espécie de cronômetro, marcando o tempo desde que o argônio foi formado e aprisionado no mineral contendo potássio.

Para tanto, os geocronólogos usam instrumentos chamados de espectrômetros de massa, capazes de separar e medir as abundâncias de diferentes isótopos de elementos químicos. Dentro dos espectrômetros de massa, as amostras são aquecidas a altas temperaturas, liberando seus elementos, cujos átomos perdem seus elétrons, se tornando ionizados. Campos magnéticos então separam esses núcleos ionizados de acordo com suas massas e cargas elétricas, os conduzindo até sensores que os contabilizam.

Além do método potássio-argônio, atual-mente os laboratórios do centro realizam quase todas as técnicas de datação de rochas, que foram sendo desenvolvidas ao longo dos anos, à medida que seus pesquisadores realizavam estudos no exterior para aprendê-las ou recebiam pesquisadores visitantes estrangeiros que ajudavam a implantá-las – intercâmbios possíveis graças a bolsas da FAPESP. “Hoje somos um dos centros de geocronologia mais completos do mundo”, afirma Benjamin Bley de Brito Neves, pesquisador do CPGeo. “Cada método tem suas qualidades, defeitos e finalidades”, ele explica.

O método potássio-argônio data dos episódios em que as rochas passaram por mudanças de temperaturas, desde a sua formação. Implantado no começo dos anos 1970, o método rubídio-estrôncio, fornece a idade de movimentações que deformaram as rochas. Já nos anos 1990, com a compra de mais equipamentos, financiada pela FAPESP, foram implantados mais métodos, tais como o samário-neodímio, que determina o momento em que o magma que deu origem à rocha subiu até a crosta terrestre, e o método urânio-chumbo, que diz quando o magma se resfriou e cristalizou em rocha. Há ainda muitos outros métodos (argônio-argônio, chumbo-chumbo, rênio-ósmio, etc.), cada um ideal para determinar a data de certo evento geológico registrado em um certo tipo de rocha.

Cordani explica que os primeiros 30 anos do CPGeo foram dedicados a um extensivo mapeamento das idades das rochas dos principais blocos que formam a crosta continental da América do Sul: os antigos, imensos e estáveis blocos de rochas conhecidos como crátons, formados em sua maioria entre 500 milhões e 4 bilhões de anos atrás, sendo o maior deles o cráton amazônico, contendo 52% do território brasileiro, seguido dos crátons do São Francisco e do rio de La Plata, e fragmentos continentais menores, além do recente cinturão da cordilheira dos Andes, ainda em constante crescimento devido ao embate entre a placa tectônica oceânica de Nazca e a placa continental sul-americana.

Esse esforço de décadas, que contou sempre com apoio da FAPESP, principalmente em sua etapa final, por meio de dois projetos temáticos, coordenados por Cordani – “Evolução Tectônica da América do Sul”, de 1993 a 1996, e “Evolução Crustal da América do Sul”, de 1996 a 2000 –, culminou com a publicação do livro Evolução Tectônica da América do Sul, durante o 31º Congresso Geológico Internacional, na cidade do Rio de Janeiro, em 2000. Escrito em colaboração com dezenas de pesquisadores de várias universidades do Brasil e do exterior, o volume apresentou a síntese mais completa até aquele momento da evolução de cada núcleo rochoso do continente, delineando a história de como cresceram e se juntaram.

CPGEO/USPCristais de zircão, usados para determinar a idade de rochasCPGEO/USP

Um novo patamar
Embora as linhas gerais da história da formação da América do Sul já sejam bem compreendidas, ainda há muitos detalhes importantes a serem desvendados. “A geologia vive de interpretar as informações disponíveis no momento”, explica Miguel Basei, do CPGeo, que coordenou o mais recente projeto temático do centro, “A América do Sul no Contexto dos Supercontinentes”, iniciado em 2005 e concluído em 2011.

Graças à reforma e ampliação do CP-Geo realizados durante o projeto, seus pesquisadores obtiveram um número recorde de dados sobre a idade e a composição química de rochas. Foram milhares de datações realizadas todo ano que permitiram confirmar ou refutar uma série de hipóteses sobre a evolução dos blocos que se fundiram para formar a América do Sul, bem como suas antigas conexões com blocos em outros continentes, especialmente na África.

“O patamar do nosso conhecimento mudou”, afirma Colombo Tassinari, do CPGeo. As novas visões da história geológica foram publicadas em capítulos de livros e duas centenas de artigos científicos. Entre as publicações se destacam as edições especiais de 2011 do International Journal of Earth Science e do Journal of South American Earth Sciences, inteiramente dedicadas às conclusões do projeto.

A maior revolução veio com a instalação do Shrimp – sigla em inglês para Microssonda Iônica de Alta Resolução –, um tipo de espectrômetro de massa projetado para realizar principalmente o método de urânio-chumbo com extremo detalhe. Só existem 16 desses instrumentos em operação no mundo, sendo o da USP o único da América Latina. Fabricado pela Australia Scientific Instruments, foi adquirido em 2005, com financiamento da FAPESP (1,5 milhão de dólares) e da Petrobras (1,5 milhão de dólares). Em 2010 foi inaugurado um novo prédio ao lado do IGc, construído especialmente para abrigar o Shrimp e seus equipamentos periféricos.

Um deles é um microscópio de catodoluminescência, que obtém imagens de cristais de zircão (o mineral que contém o Urânio), cujo tamanho varia de 30 a 300 micrômetros (milésimos de milímetro). As imagens revelam a estrutura interna do zircão, que guarda o registro dos vários crescimentos e modificações a que foi sujeito desde a sua primeira cristalização. Como as várias camadas de uma cebola, cada camada externa do grão corresponde a um episódio que fundiu e depois recristalizou o mineral. “Um único grão de zircão pode às vezes contar a história completa de uma região”, explica Tassinari.

O Shrimp funciona disparando um feixe de íons de oxigênio, capaz de acertar um ponto específico escolhido pelos pesquisadores no grão de zircão, com uma precisão de até cinco micrômetros. O feixe libera os átomos de urânio e chumbo aprisionados no ponto do grão para serem analisados no espectrômetro de massa. Assim, é possível descobrir a idade de cada evento de recristalização.

O interesse da Petrobras em financiar a compra do Shrimp é sua utilidade na busca por petróleo. Por meio das datações detalhadas feitas pelo instrumento, os geólogos descobrem como se formaram as rochas sedimentares de uma certa região e quais foram as mudanças de temperatura que elas sofreram ao longo de sua história – dados importantes para se determinar a possibilidade de elas conterem reservas petrolíferas.

Enquanto cada análise isotópica do Shrimp demora em torno de 15 minutos, os pesquisadores muitas vezes optam por realizar essas medidas com um pouco menos de precisão, mas em 50 segundos e com um custo de operação um terço mais barato, usando o Neptune – um espectrômetro de massa de ablação por laser adquirido em 2009 com verba da Finep e instalado com apoio da FAPESP.

É um dos quatro instrumentos desse tipo funcionando no país. Em vez de um feixe de oxigênio, o Neptune usa um feixe de luz laser para arrancar dos zircões pedaços de 20 a 30 micrômetros a serem analisados pelo espectrômetro. Além disso, os nove coletores de isótopos do Neptune permitem medir a quantidade de vários elementos químicos diferentes ao mesmo tempo. A velocidade do Neptune permite aos geólogos datarem mais de 60 zircões em um dia, um ritmo ideal para estudos preliminares de reconhecimento e para datar rochas sedimentares, formadas dos detritos de outras rochas.

Dentro do projeto temático, o CPGeo adquiriu ainda um terceiro espectrômetro de massa convencional, o Triton. Um aparelho mais simples, mas de última geração, o Triton analisa amostras de minerais dissolvidos após um demorado tratamento químico. O passo lento de sete análises por dia, entretanto, compensa pela alta precisão da medida.

Carlos Goldgrub/Opção Brasil ImagensCânion do Itaimbezinho (RS), uma cicatriz geológica de 130 milhões de anosCarlos Goldgrub/Opção Brasil Imagens

Passado supercontinental
Os pesquisadores do GPGeo estudam todas as eras da Terra. No último projeto temático, entretanto, suas pesquisas se concentraram em um período crítico da história da crosta continental sul-americana, quando muitos de seus pedaços fizeram parte de dois supercontinentes.

No começo, por volta de 4,5 bilhões de anos, a superfície do planeta era coberta por um mar de lava. “A Terra é uma bomba térmica e é o seu resfriamento que produz as rochas”, explica Bley. Há 4 bilhões de anos, o planeta esfriou o suficiente para que surgissem as primeiras massas de terra firme (as rochas mais antigas conhecidas foram descobertas em 2008, na província de Quebec, no Canadá, com 4,28 bilhões de anos). Entretanto foi só há 2,5 bilhões de anos que as massas continentais atingiram tamanhos consideráveis, embora ainda fossem menores que os continentes atuais, separadas por enormes oceanos.

“Pelo menos seis vezes na história da Terra, essas massas continentais se reuniram supercontinentes e depois se fragmentaram”, diz Bley. O projeto temático focalizou principalmente um período aproximadamente entre 1,3 bilhão e 500 milhões de anos atrás, quando todas as massas do planeta, incluindo terrenos que hoje constituem grande parte do Brasil, se amalgamaram em um supercontinente conhecido como Rodínia. Bley, junto com Reinhardt Fuck, da Universidade de Brasília (UnB), e Carlos Schobbenhaus, do Serviço Geológico Brasileiro, participaram de uma colaboração internacional que publicou, em 2008, na revista Precambrian Research, a reconstituição mais detalhada até agora da formação e desmembramento de Rodínia.

Os principais continentes formados pela fragmentação de Rodínia foram quatro: Báltica, Laurentia, Sibéria e Gond-wana. Este último incluiria o que hoje é boa parte da América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida. Os quatro continentes ancestrais teriam ainda se fundido mais uma vez, formando o famoso Pangea, há 230 milhões de anos, que então se desmembrou dando origem aos continentes atuais.

A reconstituição desse passado remoto é mais que uma curiosidade intelec-tual. A descoberta de jazidas minerais em uma certa região do globo pode sugerir que outras áreas hoje distantes, mas que estavam próximas há milhões de anos, também contenham as mesmas riquezas. Igualmente, a determinação precisa da idade das rochas auxilia a exploração desses minérios. Tassinari cita como exemplo a datação de rochas de uma mina de ouro da região do Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, que revelaram ter 2 bilhões de anos. As companhias de mineração devem agora buscar rochas dessa mesma idade para prospectar possíveis novas jazidas.

Outra conquista importante do projeto foi a descoberta por Bley, Fuck e Elton Dantas, da UnB, das rochas mais antigas da América do Sul, com 3,6 bilhões de anos, encontradas na cidade de Petrolina, em Pernambuco. Com o que ainda falta para ser explorado no Brasil, entretanto, Bley suspeita que o recorde deve ser quebrado em breve. “Como a Terra é muito dinâmica, essas rochas velhas estão muito ocultas, precisa de sorte para encontrá-las”, afirma o geólogo. “Mas acredito que ainda vamos chegar nos 4 bilhões de anos.”

Os projetos
1. Evolução tectônica da América do Sul (nº 1992/03467-9) (1993-1995); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Umberto Giuseppe Cordani – IGC/USP; Investimento R$ 200.000,00 (FAPESP)
2. Evolução crustal da América do Sul (nº 1995/04652-2) (1996-2000); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Umberto Giuseppe Cordani – IGC/USP; Investimento R$ 800.000,00 (FAPESP)
3. A América do Sul no contexto dos supercontinentes (nº 2005/58688-1) (2006-2011); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Miguel Ângelo Stipp Basei – IGC/USP; Investimento R$ 3.611.085,27 (FAPESP)
4. Laboratório de geocronologia com microssonda iônica de alta resolução: suporte para o desenvolvimento de Projetos de Alta Tecnologia em Exploração de Petróleo (nº 2003/09695-0) (2005-2008) Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Coordenador Colombo Celso Gaeta Tassinari – IGC/USP; Investimento US$ 1.500.000,00 (FAPESP) e US$ 1.500.000,00 (Petrobras)

Artigos científicos
AMARAL, G. et al. Potassium-Argon dates of basaltic rocks from Southern Brazil. Geochimica et Cosmochimica Acta. v. 30, p. 159-89, 1966.
HURLEY, P. M. et al. Test of continental drift by means of radiometric ages. Science. v. 144, p. 495-500, 1967.
FUCK, R. A. et al. Rodinia descendants in South America. Precambrian Research. v. 160, p. 108-26, 2008.

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