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USP 70

Terra produtiva

Na série de reportagens sobre os 70 anos da USP, Pesquisa FAPESP mostra a trajetória da centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, que mudou hábitos alimentares dos brasileiros e hoje lidera pesquisas em biotecnologia

São européias as raízes da centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP) que se tornou a principal referência em ensino de Ciências Agrárias no país. O conceito acadêmico, com prédios de arquitetura refinada entremeados por campos experimentais, foi inspirado nas escolas agrícolas de Grignon, na França, e de Zurique, na Suíça, freqüentadas na segunda metade do século 19 por Luiz de Queiroz (1849-1898), riquíssimo herdeiro paulista. De volta ao Brasil formado em Agronomia, ele decidiu fundar uma escola seguindo os moldes europeus. Comprou uma fazenda para erguê-la, nos arredores do município de Constituição, hoje Piracicaba, e pediu ajuda ao governo republicano para construir os prédios. A subvenção, porém, foi negada. Para não deixar a idéia morrer, Luiz de Queiroz decidiu doar a fazenda ao governo com a condição de que a escola, pública, surgisse ali. Ela seria fundada como escola prática de nível médio, em1901, já depois da morte do idealizador, mas respeitou o sonho europeu. Em 1907, a fazenda transformou-se em parque, raro exemplo do estilo inglês de paisagismo no Brasil. Os grandes gramados, alamedas de linhas curvas e maciços de árvores em pontos estratégicos são hoje uma jóia do ambiente urbano de Piracicaba. É assinado pelo belga Arsênio Puttemans, também criador dos jardins do Museu do Ipiranga, em São Paulo.

Transformada em escola superior e integrada à estrutura da USP quando a instituição foi fundada há 70 anos, a Esalq seguiu bebendo da fonte européia. Seu patriarca acadêmico é o geneticista Friedrich Gustav Brieger, judeu alemão que migrou para o Brasil na leva de pesquisadores estrangeiros que fundaram a USP. Pois foi nesse cenário de país temperado que se consolidou um panteão científico da agricultura tropical. Sobretudo nos primeiros 60 anos de atividade, a Esalq liderou pesquisas que mudaram os hábitos alimentares dos brasileiros. Muitas hortaliças, por serem de variedades européias, produziam bem no inverno, mas eram escassas e caras no verão.

O brasileiro passou a comer salada o ano inteiro graças a pesquisas de melhoramento genético de alface, repolho, brócolis, couve-flor, cebola e berinjela feitas na Esalq. A instituição teve papel-chave no desenvolvimento de variedades de milho mais nutritivas e ricas em aminoácidos. E também na pesquisa de propriedades do solo e nutrição de plantas que transformou o cerrado brasileiro, antes imprestável para o plantio, em celeiro de 30% da produção de grãos. Não dá para escapar do clichê: a Esalq muitas vezes foi a salvação da lavoura para os agricultores. Certa vez, no final dos anos 1950, um grupo de produtores do cinturão verde de Mogi das Cruzes, de origem nipônica, levou ao então governador Jânio Quadros um pedido inusitado. Queriam queo governo concedesse o regime de tempo integral – e o respectivo salário maior – ao professor Marcílio de Souza Dias, artífice de pesquisas de melhoramento genético. Figura lendária, Marcílio foi escolhido o Pesquisador do Centenário da Esalq, em 2001. Avesso aos trâmites normais da carreira acadêmica, vivia nos campos, fazendo cruzamentos de plantas e avaliando os resultados. Com produção científica escassa, nem sequer tinha doutoramento. Jânio promoveu o professor.

O perfil da escola mudou nas últimas décadas. O ensino, é certo, continua de boa qualidade. Os seis cursos de graduação oferecidos (Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Econômicas, Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos e Gestão Ambiental) são freqüentados por 1.830 alunos. No último Provão, Éverton Yoshiaki Hiraoka, da Esalq, recebeu a nota mais alta entre todos estudantes de Engenharia Agronômica do país. Mas a escola já não é um celeiro isolado de bons profissionais, como chegou a acontecer no passado. Divide o topo da graduação com instituições como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) ou as unidades da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu e Jaboticabal. Aquele tipo de trabalho de campo em que se destacava o professor Marcílio de Souza Dias passou a ser liderado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa (onde, aliás, centenas de ex-alunos da Esalq atuam como pesquisadores). A pesquisa aplicada da Esalq tem espaço agora em áreas emergentes como controle biológico de pragas. A escola desenvolveu uma armadilha natural para capturar mariposas conhecidas como bicho-furão, que na fase de lagarta ataca frutas cítricas. A armadilha revela o grau de infestação dos cítricos e aponta a hora adequada de aplicar inseticidas. Esta pesquisa foi desenvolvida por José Roberto Postali Parra, atual diretor da escola, e José Maurício Simões Bento, em colaboração com a UFV e a Universidade da Califórnia, Davis.

A escola passou a investir fortemente em outra vocação: a pós-graduação, que já conferiu 5.300 títulos de mestrado e doutorado desde 1964, quando foi criada. Seus 16 programas, atualmente freqüentados por 1.117 alunos, foram responsáveis pela formação de 70% dos doutores brasileiros em Ciências Agrárias. No campus de Piracicaba, surgiria nos anos 1960 outra instituição de pesquisa e pós-graduação, o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), também vinculado à USP, mas com administração própria. O resultado dessa nova estratégia na Esalq foi a expansão de laboratórios e o investimento em fronteiras do conhecimento que nem sempre geram aplicações imediatas. O exemplo mais eloqüente é o da área de biotecnologia. “No início dos anos 1990, tivemos a sensibilidade de atrair um grupo de jovens doutores que voltavam do exterior e, com eles, avançamos em biotecnologia”, diz Raul Machado Neto, vice-diretor da Esalq e presidente da Comissão de Pesquisa. Apoiados no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Biologia Celular e Molecular na Agropecuária, os pesquisadores participaram dos projetos Genoma da Xylella, da cana-de-açúcar, da Xanthomonas, do câncer, do café e do eucalipto, entre outros.

Há dez anos, a Esalq foi pioneira na pesquisa de biotecnologia aplicada a animais. Hoje, o Departamento de Zootecnia está integrado a dois grandes projetos de seqüenciamento genético. Um deles é o Genoma Frango, em parceria com a Embrapa Suínos e Aves. O projeto começou há três anos e já identificou diversos genes relacionados ao desenvolvimento muscular do frango. O objetivo é encontrar a raiz genética que leva frangos a acumular mais proteína do que gordura, a fim de melhorar a qualidade da carne. O outro projeto é o Genoma Funcional do Boi, realizado em colaboração com a Unesp de Botucatu, financiado pela FAPESP e a Central Bela Vista Genética Bovina, empresa que comercializa sêmen e embriões bovinos. O projeto está concluindo a fase de seqüenciamento e sairá embusca da identificação de genes relacionados à resistência a parasitas, à eficiência reprodutiva e à qualidade do couro.

O único laboratório de biotecnologia animal a participar da rede que seqüenciou o genoma da Xylella fastidiosa, a praga do amarelinho nos laranjais, foi a Zootecnia da Esalq. “A oportunidade de participar do projeto em parceria com outras instituições nos ajudou a criar competência na área genômica, que agora compartilhamos com outras instituições”, diz Luiz Lehmann Coutinho, professor-associado da Esalq e responsável pelo laboratório, referindo-se a professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação de várias instituições que passam pela Esalq. Lehmann é um dos pesquisadores que chegaram à escola no início dos anos 1990, depois de fazer mestrado e doutorado em Zootecnia na Universidade de Michigan e pós-doutoramento em genética molecular. Nem só de pesquisa básica vive o laboratório. São oferecidos a produtores diversos testes genéticos antes disponíveis apenas no exterior. Suinocultores enviam à Esalq amostras de pêlo ou sangue de seus animais, para pesquisar a incidência de um gene relacionado à má qualidade da carne e outro ligado à capacidade de gerar mais filhotes em cada gestação. O resultado dos testes determina a escolha dos porcos para reprodução. O laboratório também faz exames de DNA em bois. Para quê? Para garantir que um boi é mesmo o filho de animais reconhecidamente superiores, pois isso tem alto valor comercial. O erro no diagnóstico de paternidade chega a 30% nas fazendas de corte.

Outro projeto de destaque é o desenvolvimento de eucaliptos modificados geneticamente. Uma equipe do Departamento de Genética da Esalq conseguiu introduzir no eucalipto, matéria-prima da celulose, um gene de ervilha ligado à fotossíntese. O objetivo é melhorar a captação de luz solar, aumentar a biomassa da árvore e produzir mais celulose. A Companhia Suzano de Papel e Celulose, que tem interesse nessa investigação, doou R$ 585 mil para reforma e compra de equipamentos do Laboratório de Genética de Plantas (rebatizado como Max Feffer, pioneiro no uso do eucalipto para produção de celulose e filho do fundador da Suzano, Leon Feffer). “A produtividade do eucalipto pode aumentar em 2% a 3 % e será possível obter mais celulose com menos processos químicos e custo reduzido”, diz Carlos Alberto Labate, professor do Departamento de Genética e coordenador do laboratório.

As primeiras avaliações sobre a eficiência do processo devem despontar em 2005. A Esalq aguarda autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para levar as mudas transgênicas a campos experimentais. O laboratório tem objetivos de longo prazo: buscar genes envolvidos na formação e na qualidade da madeira. Não é novidade o interesse da iniciativa privada na massa crítica gerada pela Esalq. Mas as parcerias, que se concentravam na área de assistência técnica, andam cada vez mais sofisticadas. Na pesquisa do eucalipto, busca-se um produto – a madeira com mais celulose. E, para chegar a ele, desenvolve-se pesquisa básica e aplicada. “As coisas andam juntas”, diz Labate. “Para alcançar a aplicação é preciso fazer pesquisa básica e a empresa que nos patrocina sabe disso. Nossos alunos de iniciação científica e de doutorado enriquecem sua formação nesse ambiente.”

A escola tem outras parcerias célebres. A Bolsa de Mercadorias&Futuros financiou a construção do prédio do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq, com a qual mantém um acordo para produção de indicadores agrícolas. Outro trabalho importante é o monitoramento de microbacias hidrográficas, coordenado pelo professor Walter de Paula Lima, do Departamento de Ciências Florestais, em convênio com o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef). Esse programa teve início em 1987 e já estabeleceu estações em vários estados, a pedido de empresas florestais, como a Votorantim Celulose e Papel, Aracruz, Eucatex e Copebrás. O objetivo é acompanhar o impacto da exploração nas bacias atingidas e obter indicadores para subsidiar o manejo sustentável das florestas. Esse trabalho, que permite às empresas corrigir agressões ao ambiente, também produz conhecimento científico.

Com informações colhidas numa área explorada pela Votorantim Celulose e Papel, os pesquisadores da Esalq e do Ipef concluíram que a falta de cálcio numa área de reflorestamento de eucaliptos podia ser resolvida com uma medida simples: deixando-se a casca das árvores, que é rica em cálcio, no solo, em vez de levar embora as árvores com casca. “Nosso trabalho permite às empresas calibrar seus indicadores ambientais”, diz o professor Walter de Paula Lima.A mudança no perfil da Escola Luiz de Queiroz reflete, de certo modo, a transformação do mercado de trabalho das Ciências Agrárias. Até 20 anos atrás, os agrônomos formados pela escola tinham o clássico perfil do extensionista, aquele que visita propriedades e dá assistência individualizada. Essa formação generalista, hoje, está longe de ser suficiente. De um lado, a proliferação de escolas de agronomia tornou a competição entre os profissionais mais acirrada.

De outro, a agricultura mudou numa velocidade enorme, ganhou produtividade e escala econômica, e se tornou mais dependente de tecnologia. Isso exige do profissional uma especialização muito maior. A Esalq começa a apostar, por exemplo, na agricultura de precisão, conceito que balança alicerces da pesquisa agronômica. A agricultura de precisão pontifica que cada região de uma área de plantio carece de quantidades peculiares de adubos e corretivos. Essa idéia, que já existe há muito tempo, tomou forma na Europa, em especial na Dinamarca, devido a uma limitação legal da aplicação de fertilizantes. Avaliam-se essas necessidades medindo a produtividade de cada pedaço do terreno. Depois, aplica-se mais adubo nas partes que renderam mais (pois elas tiraram mais nutrientes do solo). Colheitadeiras ligadas a um sistema de geoprocessamento por satélite, o GPS, marcam os locais em que a produção é maior e registram esse desempenho num mapa, que servirá de guia para a aplicação do adubo. A agricultura de precisão já produziu economia de até 30% em insumos e vem ganhando espaço nos Estados Unidos e na Europa. Mas desafia, de certo modo, toda a pesquisa agronômica, pois ela tira conclusões partindo do pressuposto de que um terreno contínuo tem necessidades uniformes de nutrientes.

José Paulo Molin, professor do Departamento de Engenharia Rural, lidera a pesquisa em agricultura de precisão na Esalq, que, com a ajuda de outros departamentos e instituições, busca desenvolver uma tecnologia mais barata e adaptada à realidade nacional. Uma das alternativas é delimitar pedaços do terreno e avaliar a quantidade de nutrientes em cada um deles, sem a necessidade do GPS. Com base nas informações, criam-se mapas para lançar adubo. “A agricultura de precisão teve altos e baixos nos Estados Unidos, devido ao excesso de promessas. Não é uma panacéia, mas não se pode fechar os olhos para ela”, diz Molin, que participa da organização do 1º Congresso Brasileiro de Agricultura de Precisão, programado para maio.

O interesse pela Matemática e Estatística, inaugurado na Esalq pelo geneticista Friedrich Gustav Brieger nos anos 1930 e difundida por Francisco Pimentel Gomes, hoje produz ferramentas na área de Logística. Professores e alunos do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial (Esalq-Log) dedicam-se a criar sistemas de informação e modelos matemáticos que auxiliem na gestão dos agronegócios. Liderado por José Vicente Caixeta Filho, a equipe desenvolveu, em meados dos anos 1990, o pioneiro Sistema de Informações sobre Fretes (Sifreca), disponibilizando os preços de fretes de 50 produtos agrícolas praticados em mais de 5 mil rotas.

Até o advento do Sifreca, os preços de frete no Brasil eram acompanhados por meio de tabelas de sindicatos patronais e de caminhoneiros. Os valores tornaram-se a principal referência em modelos matemáticos para racionalizar roteiros de cargas agrícolas. O levantamento é publicado gratuitamente num pequeno jornal e disponibilizado no site do Esalq-Log, no endereço eletrônico http://log.esalq.usp.br . O grupo trabalha em outras frentes. Um caso exemplar foi o modelo criado para uma empresa produtora de lírios em Holambra, interior paulista. A logística do negócio envolvia a melhor hora de importar os bulbos da Holanda e cultivá-los em estufa em quantidade maior para a demanda atípica das datas comemorativas.

O modelo matemático, com 120 mil variáveis e 400 mil restrições, gerou um mapa diário com ordens de importação e de produção que levou a um aumento de faturamento de 26% na empresa, sem novos investimentos. “Nosso desafio é mostrar aos profissionais de Ciências Agrárias que eles podem gerar ganhos até com modelos matemáticos muito simples”, afirma Caixeta Filho. Aposentado há 20 anos, o professor de Genética Ernesto Paterniani, hoje ouvidor do campus Luiz de Queroz, que congrega a Esalq e o Cena, lembra com certa nostalgia dos tempos em que pesquisa se fazia nos campos experimentais, não nos laboratórios ou na frente de computadores.

“Corríamos um risco maior”, brinca ele. “Quando apresentávamos uma novidade a ser aplicada a um legume ou hortaliça, ela era testada imediatamente por milhares de agricultores e, se estivéssemos errados, as reclamações vinham de todo lado.” Paterniani teme que o futuro da pesquisa agrícola brasileira esteja ameaçado, devido à limitação de recursos da Embrapa e à escalada de restrições legais aos produtos biotecnológicos. Acha que a Esalq deveria calibrar melhor seus esforços de pesquisa para impedir que isso aconteça. “Se a pesquisa no Brasil parasse hoje, isso só seria sentido em alguns anos, quando viesse uma praga nova ou a produtividade de outros países aumentasse”, afirma ele. Caso o cenário se confirme, os agricultores sabem onde procurar ajuda, como os hortelões japoneses que foram bater à porta do governador Jânio Quadros.

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