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USP 70

Usina de engenhos

Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, mostra as soluções tecnológicas criadas pela Escola Politécnica da USP, celeiro de profissionais que ajudaram a modernizar o país

Os 111 anos de história da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) resumem a trajetória de um país que soube se modernizar a passos velozes. São Paulo ganhou ares cosmopolitas graças, em boa medida, à contribuição de pioneiros como o engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917) ou o construtor de edifícios e palacetes Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), ambos fundadores da Escola Politécnica de São Paulo, em 1893. No final dos anos 1920, quando governar virou sinônimo de construir estradas, a instituição forneceu quadros para riscar um primeiro rascunho da malha rodoviária que, décadas mais tarde, substituiria de vez as ferrovias. Engenheiros politécnicos aventuraram-se até a produzir blindados e granadas quando São Paulo insurgiu-se contra Getúlio Vargas em 1932. A Escola, que se incorporou à Universidade de São Paulo em 1934, logo ganharia fama de celeiro de homens públicos – um punhado de governadores paulistas passaram por ela.

Entre as décadas de 1950 e 1970, aquela fase em que a economia brasileira cresceu a taxas de tigre asiático e carecia de soluções tecnológicas para lastrear o desenvolvimento, o engenheiro politécnico viveu talvez a sua fase de ouro. “A gente ia de ônibus para a faculdade carregando aquela enorme régua T e chamava atenção. Muito futuro engenheiro arrumou namorada assim”, lembra o professor Moacyr Martucci Júnior, presidente da Comissão de Pesquisa da Poli-USP. O advento da informática provocou um terremoto na engenharia, que explodiu em novas especialidades. Da engenharia elétrica, brotou a engenharia de computação. Das engenharias elétrica e mecânica surgiu a mecatrônica. Os computadores levaram a régua T a uma merecida aposentadoria e estabeleceram novas bases para o ensino e a pesquisa da instituição, onde trabalham hoje 495 docentes e estudam 4,3 mil alunos de graduação e 4 mil de pós-graduação.

A Poli-USP metamorfoseou-se para manter seu papel modernizador e continuou criando engenhos capazes de melhorar o bem-estar da sociedade. É possível citar contribuições marcantes de pesquisadores e profissionais formados da instituição em inúmeras áreas. Nos anos 1960, o planejamento na área de transportes no país, que transformou a engenharia de tráfego em ciência e foi aplicado na construção das linhas de metrô, também despontou graças ao trabalho de professores da Poli, como Íon de Freitas e Antonio Galvão Novaes. Entre 1990 e 1994, a Escola Politécnica da USP foi dirigida pelo professor Francisco Romeu Landi, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, que morreu em abril aos 71 anos.

Se o Brasil hoje dispõe de uma indústria de microeletrônica e expertise na área de telecomunicações, deve isso à capacidade da Escola Politécnica em fazer pesquisa e formar mão-de-obra nessas áreas nos últimos 30 anos. A Escola reivindica a criação do primeiro computador brasileiro. Batizado de “Patinho Feio”, foi obra de pesquisadores da área de engenharia elétrica, em 1972. Passados 30 anos, essa semente produziu uma árvore de frutos carregados. Embora o Brasil, como vários outros países, não tenha conseguido desenvolver uma indústria de computadores competitiva como planejado inicialmente, os pesquisadores da área de informática da Poli-USP destacaram-se na criação de softwares e na segurança de redes.

O Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores da Escola é referência mundial em códigos de criptografia. Paulo Barreto, pesquisador da Poli e criptologista-chefe da empresa brasileira Scopus, participou da criação dos algoritmos adotados para assinatura digital da Comunidade Européia e do governo norte-americano, depois de vencer concursos internacionais que definiram os padrões de segurança. O Laboratório também criou ambientes seguros para páginas de diversos bancos na Internet e desenvolveu um sistema de segurança na arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), que acabou com as fraudes praticadas nos computadores do Detran de São Paulo.

Tanque numérico
No campo das telecomunicações, professores da Poli-USP foram contratados no início dos anos 1970 pela Telebrás para ajudar a modernizar as centrais telefônicas brasileiras, que eram analógicas. A digitalização das centrais ampliou o acesso dos brasileiros ao telefone e integrou o território nacional. Esse grupo também desenvolveu, em 1976, o protótipo que propiciou as ligações de discagem direta internacional. Parte desses pesquisadores acabou desgarrando-se da Escola para fundar o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Telebrás (CPqD), um dos principais dínamos da pesquisa brasileira em telecomunicações.

A indústria naval brasileira ganhou consistência a partir de 1956, depois de um estratégico convênio celebrado entre a Marinha e a Poli, que deu origem ao Departamento de Engenharia Naval e Oceânica. O departamento continua ativo, mas encontrou novas vocações. Nos últimos quinze anos, fortaleceu os laços com a Petrobras numa linha de pesquisa que culminou com a criação, em 2001, de um tanque de provas numérico. Trata-se de um simulador, dotado de um cluster de 120 microcomputadores pessoais, capaz de projetar modelos tridimensionais de qualquer coisa: aviões, carros, navios. “Num tanque numérico, o processamento de informações é muito mais rápido e é possível realizar simulações de sistemas bastante complexos”, diz o professor Hélio Mitio Morishita, chefe do departamento. No caso da Petrobras, o principal interesse é o desenvolvimento de sistemas oceânicos, como plataformas de petróleo, complexos demais para serem testados num tanque de provas de verdade.

A Marinha usou os serviços do tanque numérico da Poli-USP antes de fazer as adaptações no porta-aviões São Paulo, que pertencia à França. Havia dúvidas se a enorme embarcação caberia no dique seco do arsenal da Marinha, no Rio, onde seria reformada. Com base em imagens e medidas tiradas do porta-aviões e do dique, o tanque mostrou que era possível, sim, estacionar o porta-aviões lá dentro – tirando uma fina, é verdade. Só depois da simulação é que a reforma começou. Ferramentas derealidade virtual são cada vez mais usadas em escolas de engenharia. O Laboratório de Sistemas Integráveis de Politécnica abriga, desde 2000, a Caverna Digital, um complexo para realidade virtual, que cria um ambiente interativo por meio de projeções de imagens múltiplas. Até seis pessoas podem entrar na caverna ao mesmo tempo e interagir com o mundo simulado por computador. Além das aplicações nos ramos da engenharia, a caverna também pode ser usada na medicina, na astronomia, na produção de jogos interativos.

O elo entre as vocações do passado e as do presente torna-se mais palpável em alguns departamentos da Poli-USP, como o de Engenharia de Energia e Automação Elétricas. Sob o comando do professor José Roberto Cardoso, o Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado segue trabalhando com a pesquisa em tração elétrica de ferrovias e de metrôs. “Como participamos da implantação da primeira linha do metrô de São Paulo, o conhecimento ficou acumulado”, diz Cardoso. Não há muito trabalho a fazer em relação a ferrovias, que cada vez mais perdem importância como meio de transporte. Mas como várias capitais brasileiras estão construindo seus metrôs, o laboratório tem sido convocado a ajudar, fazendo simulações das composições caminhando na linha em várias velocidades, além da quantidade de energia necessária para fazer todo o sistema funcionar.

O laboratório também se dedica à pesquisa sobre interferências eletromagnéticas. Ajudou, por exemplo, fabricantes de eletrodomésticos a controlar as emissões eletromagnéticas de seus produtos nos níveis exigidos internacionalmente. Também auxiliou a Marinha a fazer um estudo de compatibilidade eletromagnética do projeto de submarino de propulsão nuclear que está sendo desenvolvido no complexo de Aramar, no interior paulista. Trata-se de um estudo sofisticadíssimo, dada a profusão de fios e circuitos previstos para o gigantesco protótipo. Mas a vida do laboratório não se resume a dar suporte para quem precisa. A pedido da Petrobras, foi desenvolvido um motor tubular linear para extração de petróleo que vai substituir os equipamentos mecânicos conhecidos como cavalos-de-pau instalados em 9 mil poços terrestres no país. O motor elétrico tem o dom de aumentar a vazão dos poços e sofre um desgaste menor, pois, ao contrário do cavalo-de-pau, não produz atrito com as paredes do poço.

A Escola envolve-se em pesquisas de caráter teórico com a mesma disposição com que busca soluções para problemas prosaicos. No Departamento de Engenharia de Transportes, testa-se o emprego de um pavimento composto em que placas de concreto de cimento trabalham de forma aderida ao concreto asfáltico. A técnica, trazida nos Estados Unidos, cria uma superfície mais resistente e ajuda na manutenção de pavimentos com deficiências estruturais. O Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, o de maior produção acadêmica da Escola, desenvolveu um método capaz de reciclar a poeira de minério de ferro que era descartada e poluía o ambiente. Essa poeira, obtida em grande quantidade no processo de degradação do minério, entupia os fornos e era considerada imprestável.

Num trabalho sobre o comportamento térmico de materiais, os pesquisadores da Poli constataram que, ao misturar a poeira de minério de ferro com carvão, produziam-se pelotas ou pequenos tijolos que, após um processo de cura, ficavam duríssimos e podiam ser armazenados. O desperdício e a poluição acabaram. Hoje as pelotas são usadas nos fornos como matéria-prima de aço. “A pesquisa teve grande importância na busca de processos limpos e não poluentes na metalurgia”, diz o professor José Deodoro Trani Capocchi, chefe do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. São 400 trabalhos científicos publicados em revistas indexadas a cada ano. Seus pesquisadores às vezes ajudam a resolver crimes. A pedido da Polícia Científica de São Paulo, fazem pareceres sobre a deformação de projéteis ou o desgaste de outros materiais, capazes de elucidar as circunstâncias de homicídios ou acidentes.

Dentro da Politécnica, também funciona o Centro Internacional de Referência em Reuso da Água (Cirra), vinculado ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária. O grupo de pesquisadores da instituição trabalha em várias frentes, do desenvolvimento de sistemas hidráulicos que economizem água (como uma caixa de descarga para vaso sanitário com apenas 3 litros de água) ao teste de estratégias de reaproveitamento de recursos hídricos, como o uso de água não tratada na agricultura, em sistemas de refrigeração de indústrias ou na irrigação de áreas verdes urbanas. Também ajuda a Agência Nacional de Águas a formular novas políticas contra o desperdício.

No rol das aplicações práticas, um pesquisador do Cirra desenhou um sistema de reaproveitamento de água que servirá ao terceiro terminal no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, a ser construído nos próximos anos. Hoje toda a água usada nos dois terminais do aeroporto, que recebe 14 milhões de passageiros por ano, é retirada de seu subsolo. A construção de um terceiro terminal vai requerer uma nova solução, pois o manancial está à beira do esgotamento e não terá água suficiente. A proposta é submeter a água servida a um tratamento parcial, utilizando-a de novo para lavar a pista e resfriar o sistema de ar condicionado do aeroporto, para citar dois exemplos. “É possível estabelecer um uso mais parcimonioso da água a partir de múltiplas estratégias”, diz o professor Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra.

Como na maioria das carreiras, o campo de conhecimento da engenharia expandiu-se muito nas últimas décadas e a Escola Politécnica esforçou-se em abarcar todos os desdobramentos, criando novos departamentos e especializações. Mas as mudanças e oscilações do mercado de trabalho andam tão abruptas que um ramo da engenharia muito disputado num vestibular pode ter seu interesse reduzido poucos anos mais tarde, quando o estudante estiver se formando. Isso já aconteceu várias vezes. A tradicional engenharia civil, por exemplo, perdeu força nos anos 1980, a década perdida em que o Brasil parou de fazer hidrelétricas e estradas, frustrando uma geração de jovens profissionais. Hoje a procura pela engenharia civil melhorou. Apesar do jejum de grandes obras, abriu-se espaço para os engenheiros, por exemplo, na expansão da construção civil e da infra-estrutura de saneamento. A engenharia de telecomunicações viveu o apogeu e a queda num curtíssimo espaço de tempo. Com as privatizações, em meados dos anos 1990, a concorrência no vestibular explodiu, mas houve uma severa retração em 2000 e 2001, que espantou o interesse dos candidatos. “Nem a euforia nem a ressaca se justificavam”, diz Paul Jean Etienne Jeszensky, professor do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controle. “Hoje caminha-se para um equilíbrio no mercado de trabalho, um cenário que não é tão bom nem tão ruim como já se imaginou”, afirma.

Tais oscilações são naturais e, exceto pela decepção que geram nos recém-formados, não trazem conseqüências profundas. Acontece que o engenheiro politécnico é formado, antes de tudo, para se adaptar a novas situações, para estar pronto a solucionar problemas que sequer podem ser imaginados hoje. “A Escola fornece uma excelente base. A bagagem é do aluno”, diz Jeszensky. “Preparamos profissionais para a tomada de decisões, profissionais que estão sempre prontos a aprender coisas novas”, diz Moacyr Martucci, presidente da Comissão de Pesquisa. Assim como os engenheiros civis frustrados dos anos 1980 fizeram carreiras reluzentes dentro e fora da engenharia – o mercado financeiro, por exemplo, abasteceu-se fartamente desses profissionais -, a turma das telecomunicações será absorvida. Mas também existem cursos que não conhecem crise. O de engenharia de computação oferece duas turmas de 40 alunos a cada vestibular. Uma dessas turmas faz um curso nos moldes tradicionais. A outra tem uma grade curricular diferente, em que teoria e prática têm o mesmo peso. Os módulos se alternam a cada quadrimestre – ora o estudante dedica-se a disciplinas teóricas, ora faz um estágio numa empresa, que a própria Escola se encarrega de arrumar para os alunos. “O engenheiro sai formado com uma base teórica forte e também com uma notável experiência profissional”, diz o professor Wilson Vicente Ruggiero, do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais.

A Escola ensaia uma mudança conceitual na formação de seus alunos. Existe uma demanda do mercado de trabalho por profissionais com uma bagagem mais humanística. O engenheiro de hoje precisa levar em conta variáveis que eram relegadas antigamente. Já vai longe o tempo em que se projetava uma hidrelétrica sem levar em conta o impacto ecológico que a obra causaria. Construída no início dos anos 1980, a usina de Balbina, que abastece Manaus, capital do Amazonas, é um exemplo de belíssima obra de engenharia que perpetrou um crime ecológico, criando um gigantesco lago raso em que espécies de árvores apodrecem até hoje. “A formação excessivamente técnica às vezes faz com que o engenheiro raciocine sem levar em conta que há gente no processo”, diz o professor Hélio Morishita, cujo departamento, o de Engenharia Naval e Oceânica, alterou seu currículo e hoje exige que seus estudantes façam 24 disciplinas optativas em outras unidades da Universidade de São Paulo.

“A escolha dessas disciplinas cabe ao estudante. O melhor é que eles tenham contato com a sociologia, a comunicação, a filosofia. Alguns resistem e vão fazer as disciplinas na Faculdade de Economia e Administração, que tem mais afinidades com a engenharia”, diz Morishita. O Departamento de Engenharia Elétrica promoveu uma alteração semelhante no currículo. A humanização na formação dos alunos é um dos objetivos do Poli 2015, um programa para ajustar a Escola, até o ano de 2015, aos desafios desse início de século. Entre as metas declaradas do Poli 2015, destacam-se “a competência no relacionamento humano e na comunicação, a postura ética e o comprometimento cultural e social com o Brasil”. Sem abrir mão, é claro, da excelência do ensino.

O futuro da Poli-USP também é virtual. A educação a distância já é uma realidade. As aulas de 105 disciplinas são gravadas em vídeo e disponibilizadas na Internet, assim como o material didático utilizado pelo professor. Quem faltou à aula pode assisti-la em casa, na tela do computador. Caso o estudante virtual não entenda a explanação, pode interagir entrando num chat e fazendo perguntas. Se for uma dúvida que outro aluno já teve antes (80% delas são recorrentes), a resposta está armazenada e vem na hora. Senão, o professor responde mais tarde, por e-mail.

Os cursos e seu material didático agora começamaser franqueados a qualquer pessoa que tenha computador em casa. “A idéia é disseminar o conhecimento depositado na Poli para outras faculdades e estudantes de engenharia, é devolver à sociedade, da forma mais ampla possível, o investimento que ela fez nessa escola”, diz o professor Wilson Vicente Ruggiero. Se der certo, a escola que nasceu vinculada à elite – os fundadores Ramos de Azevedo e Paula Souza tiveram de ir à Europa para se formar – terá feito um belo acerto de contas com o passado.

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