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Oceanografia

A preciosa lama do mar

Sedimentos revelam a história climática e evolutiva de ambientes desaparecidos há milhares de anos

Mapa: Carta Náutica

O mar está agitado e o navio balança muito nesta manhã de segunda-feira, 25 de fevereiro. As ondas entram no convés. Quatro homens de capacete branco e cobertos de água salgada puxam o cabo de aço com uma estrutura piramidal que oscila antes de assentar na superfície vermelha do convés. A pirâmide metálica finalmente traz 12 cilindros transparentes com uma amostra generosa da lama a 121 metros de profundidade, ao largo da ilha de São Sebastião, litoral norte paulista. Na tentativa anterior, a 47 metros, os cilindros trouxeram apenas água e areia, sem a desejada lama que 19 pesquisadores do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo buscaram durante nove dias em um cruzeiro no navio de pesquisa oceanográfica Alpha-Crucis.

Cada um por vez, Edilson de Oliveira Faria, Marcelo Rodrigues, Rodolfo Jasão Dias e Gilberto Dias carregam os cilindros e os depositam em uma caixa plástica. A lama que trazem é fina, grudenta, verde-escura, de cheiro desagradável. “É perfeita!”, comemora Till Hanebuth, professor da Universidade de Bremen, Alemanha, sentindo-a entre os dedos. “O que é apenas lama para a maioria das pessoas tem muito significado para nós”, diz Michel Mahiques, diretor do instituto e coordenador científico da primeira parte da expedição, de 20 a 24 de fevereiro, centrada na identificação de lugares para a coleta de sedimentos em diferentes profundidades, realizada nos quatro dias seguintes. “É o sedimento lamoso, como chamamos, que vai fornecer os melhores registros da história climática, ambiental e evolutiva de uma região.” Em estudos anteriores, as análises de sedimentos ajudaram a definir a variação do clima dos últimos 10 mil anos no litoral paulista e dos níveis de poluentes em Santos e em Iguape nos últimos 100 anos.

Por definição, essa massa de modelar que vem do fundo do mar é uma mistura de grãos com diâmetro inferior a 62 micrômetros, menor que o da areia. “Partículas de rochas ou de sal, restos de esqueletos, qualquer material pode formar a lama”, diz Samara Goya, técnica do IO e professora universitária em Santos. “A lama funciona como uma esponja, atraindo elementos químicos ou organismos dispersos na água. A areia tem uma estrutura fixa e não atrai outros materiais.”

O objetivo da viagem é identificar depósitos ou fluxos de lama, cujos elementos devem ajudar a reconstituir o ambiente e o clima regional, as correntes marinhas e a evolução do oceano Atlântico Sudoeste nos últimos 7 mil anos. O cruzeiro faz parte de um dos projetos apoiados pela Pró-Reitoria de Pesquisa por meio do programa Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs) e reúne pesquisadores do IO, do Instituto de Geociências e do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.

Mapa: Carta Náutica com anotações do Comandante José Rezende | Infográfico: Ana Paula Campos“Esta é a nossa primeira expedição de cunho essencialmente geológico que ultrapassa os limites da plataforma continental desta região”, diz Michel, que prefere ser chamado pelo primeiro nome. Até agora, por falta de equipamentos adequados, era possível coletar sedimentos no máximo a 150 metros de profundidade. “O Alpha-Crucis nos permite ir mais longe, mais fundo e com mais conforto que o Besnard”, ele diz, referindo-se ao navio Professor Besnard, desativado desde 2008. No dia 28, depois de percorrer quase 2 mil quilômetros, o Alpha-Crucis atracou em Santos, ao lado do antigo navio, com centenas de amostras de sedimentos de até 1.400 metros de profundidade.

“De onde vêm os sedimentos encontrados ao norte de São Sebastião? Não sabemos”, inquieta-se Michel. Os rios que deságuam nessa região são pequenos e aparentemente incapazes de transportar tanta areia e lama. Ao sul, a situação parece mais clara. Em trabalhos anteriores, Michel e outros pesquisadores do Instituto Oceanográfico concluíram que o rio da Prata, a quase 2 mil quilômetros de distância, deve ser a principal fonte da lama que chega até o sul da ilha de São Sebastião, empurrada pelas correntes marinhas.

De imediato, o mapeamento do fundo do mar realizado nos primeiros quatro dias de viagem forneceu indicações sobre a estabilidade do assoalho marinho, essencial para a extração de petróleo e gás natural, e sobre a possibilidade de escorregamentos de depósitos de sedimentos, que podem gerar tsunamis. Em 2002, uma massa enorme de sedimentos escorregou e empurrou o mar da costa da ilha de Stromboli, na Itália, causando um tsunami e agravando os efeitos de uma erupção vulcânica. Aparentemente, essa possibilidade é remota no litoral paulista.

Com base nas informações sobre o fundo do mar, Michel concluiu que uma hipótese sobre a movimentação de sedimentos da costa para o oceano neste trecho do litoral, que ele havia apresentado em 2004 com base em amostras de superfície, poderia estar mesmo correta. “Agora estamos vendo efetivamente a migração de sedimento da costa para o fundo”, comenta. “Passamos por uma série de vales e canais, alguns com 5 quilômetros de largura e 160 metros de profundidade, que podem ter a função de receber e distribuir sedimentos.” Os gráficos sobre a variação da espessura e da consistência das camadas de areia e lama indicavam que o talude – a região mais profunda além da plataforma continental – tinha a forma de um anfiteatro, com o palco nas regiões mais profundas, como ele havia previsto.

Titãs em alto-mar
A escolha dos pontos de coleta de sedimentos resultou de um trabalho árduo que começou na tarde de quarta, dia 20, logo depois de o navio deixar o porto de Santos, e terminou na madrugada do domingo, dia 24. A equipe da USP se revezou dia e noite para acompanhar e analisar as informações sobre o fundo do mar que chegaram durante 83 horas seguidas nos monitores dos três equipamentos de um dos laboratórios do navio: um batitermógrafo, que registra a variação de salinidade e temperatura por meio de sensores lançados manualmente a cada 18 quilômetros; duas ecossondas, que informam sobre a consistência e os limites das camadas superficiais de sedimentos do fundo do mar por meio da emissão e reflexão de ondas sonoras; e um perfilador sísmico, cujas ondas, em outra frequência, penetram mais nos sedimentos porque funciona com uma frequência de onda menor que as ecossondas. A cada meio segundo o perfilador emitia estalos que ecoavam pelo navio, principalmente no andar inferior, que abrigava os camarotes da tripulação e de parte dos pesquisadores. Dias antes da viagem, em uma reunião de planejamento, Michel alertou que seria “uma viagem barulhenta”.

Foi também movimentada. Seguindo contra o vento, o navio balançou bastante na quinta, 21, primeiro dia de viagem. Mesmo os mais experientes passaram mal, com enjoos e tonturas. “Comparado com o Besnard, este é flat [plano]”, diz Michel com tranquilidade, no café da manhã. O comandante José Rezende, mineiro de Juiz de Fora que mora em Niterói, confirma: “O Besnard era mais caturro”. Ou seja: a proa subia e descia, fazendo o navio balançar no sentido do comprimento e não só dos lados como o Alpha-Crucis. À noite o navio chega ao ponto mais distante da viagem, a 315 quilômetros da costa, e mais profundo, 2 mil metros; lá embaixo, de acordo com um dos equipamentos, a temperatura era de 3 graus Celsius.

Michel, Till, Edilson, Jasão, Marcelo e Gilberto, revezando-se à frente dos monitores, passaram o dia apreensivos, pedindo para o comandante ajustar o rumo porque não estavam captando nada de relevante sobre o fundo do mar. No final do dia o navio aquietou-se e eles começaram a identificar sinais de antigos vales de rios e lagunas, que emergiam como possíveis pontos de coleta de sedimentos na segunda parte da viagem. “Tudo o que estamos fazendo aqui é novo para nós”, comentou Till, o coordenador da equipe diurna que em 2009 percorreu a bacia do rio da Prata, em uma expedição semelhante.

Os pesquisadores detectaram vales e canais que podem ter a função de receber e distribuir sedimentos

Mesmo dormindo pouco, Michel estava feliz. Sem internet, telefone e problemas urgentes para resolver, ele pôde deixar de lado as preocupações de diretor do Instituto Oceanográfico e vestir a camiseta de seu Botafogo (ele nasceu no Rio e aos 9 anos se mudou com a família para São Paulo). Seu computador tocava sem parar Titãs, Fábrica do Som, Village People, Elis Regina, como ele diz, “músicas boas e músicas de que eu gosto”. A turma da noite parecia um grupo de velhos amigos. Alto e magro, Marcelo Rodrigues, técnico do instituto desde 1992, viajava pela última vez com eles porque pediu demissão para trabalhar como consultor em geologia.

Edilson é do tipo forte, cabelo rastafári, fala calmamente. Estudou biologia, foi contratado como técnico no IO em 1998 e dois anos depois Marcelo perguntou se ele queria participar de uma viagem à Antártida. Ele sonhava ir desde 1982, quando servia na Escola Naval do Rio e leu sobre os planos da primeira expedição científica para lá. Pouco depois ele viu o navio Barão de Tefé passar rumo sul. “Aquela imagem nunca saiu de minha memória.” Ele foi em dezembro de 2002, ficou um mês e gostou muito. “A impressão que eu tenho é que eu nunca saí de lá.”

Ao deixar a equipe, no domingo, dia 24, em Ubatuba, Michel passou o comando científico para sua colega Silvia Helena de Mello e Souza, que embarcou com seu grupo no início da tarde. Michel lhe entregou um mapa com os 10 pontos de coleta de sedimentos, que ele e Till haviam elaborado naquela manhã, com base no mapeamento dos dias anteriores. No mesmo dia lançaram os equipamentos, que só trouxeram areia do fundo, e à noite religaram os equipamentos de mapeamento das camadas de sedimento do fundo do mar.

“Só neste pedaço da margem continental temos mais 20 anos de trabalho, pelo menos”, diz Michel

O lado sujo da ciência
A lama que os homens do convés trazem nos cilindros ganha donos e identidades à medida que passa para os pesquisadores, organizados em uma linha de produção, cada um com uma tarefa específica. “As amostras deste cruzeiro serão as que vou usar no doutorado”, diz a oceanógrafa Amanda Spera, que corta os blocos de lama em fatias de 1 centímetro de espessura que suas colegas colocam em pratos metálicos. Amanda pretende analisar compostos orgânicos sintetizados por microalgas marinhas e plantas terrestres para reconhecer os padrões de variação de temperatura e clima da região há milhares de anos. Quanto maior a temperatura, menor o número de ligações duplas na cadeia carbônica das alquenonas, um dos grupos de compostos a serem analisados. Desse modo, diz ela, “se as algas viviam em ambiente mais quente, o número de ligações duplas das alquenonas é menor”.

No almoço do dia seguinte, Jasão, oceanógrafo e especialista em mergulho científico, anunciou, referindo-se a uma das coletas da manhã, a 841 metros de profundidade: “Já temos um recorde do Instituto Oceanográfico”. Por meio de um dos equipamentos – um cilindro metálico de 4 metros de comprimento e 450 quilos de peso chamado piston core –, eles coletaram três amostras, de 4,10 metros, 1,68 metro e 2,40 metros de comprimento, mantidas em um tubo plástico branco. Em laboratório cada coluna será cortada em fatias de 2 centímetros. “Eu é que vou datar as colunas”, diz o químico Rubens Figuera, professor do IO que faz uma conta rápida: cada coluna deve render de 300 a 400 fatias, das quais ele examinará o teor de 15 elementos químicos: portanto, 6 mil resultados para cada coluna de lama.

Acompanhar essa movimentação é fascinante. Pode-se ver um pouco das engrenagens da ciência e as coisas que os papers não contam: o trabalho pesado e repetitivo, a tensão causada pelos imprevistos, as hipóteses de trabalho nascendo, o lado literalmente sujo da ciência expresso nos rostos enlameados. Sutilmente, emergem as forças geralmente ocultas da ciência, que se faz não só com boas perguntas, instituições e dinheiro, mas também com amizade, respeito e companheirismo. “Estou aqui para o que precisarem”, lembrou Edilson no domingo à noite, diante do grupo, ao planejarem as coletas.

Carlos Fioravanti O multicore (à esquerda) e os homens trabalhando no convés para trazer um pouco do fundo do marCarlos Fioravanti

No dia seguinte, observando o movimento no convés, Till comentou que 40 pessoas haviam se mobilizado para a coleta de sedimentos, incluindo os marinheiros que pilotavam os guinchos para conduzir os equipamentos de coleta, os cozinheiros que mantinham o ânimo de todos com uma comida deliciosa e os mecânicos da casa de máquinas. Os artigos científicos que resultarem desse trabalho, porém, trarão o nome de apenas uns poucos cientistas.

Os relatos enfatizam resultados positivos que parecem ter surgido como mágica, sem esforço, mas o cansaço expresso na voz rouca, no silêncio e nas olheiras destas pessoas indica que não é bem assim. “Temos de desfazer a mística do Jaques Cousteau, que só mostrava as coisas que davam certo”, lembra Michel. “Em uma das expedições de que participei tudo deu errado. Faz parte. Só não pode perder o élan, o entusiasmo.”

Às 13 horas da terça-feira, dia 26, Rubens entra afobado no laboratório e avisa Silvia e Till: “Perdemos o piston core!”. Por causa de uma falha em um gatilho que controlava a descida do equipamento ou da força da corrente, o cabo de aço se rompeu e o equipamento ficou no fundo. Silêncio pesado no convés. Três horas depois, Silvia Helena chama o grupo e conta que, em consequência do acidente, eles adotariam outra estratégia de coleta,  concentrando-se em uma área que chamaram de cinturão de lama. Ainda calados, fazem uma coleta à noite, a 120 metros de profundidade, apenas com o equipamento em forma de pirâmide, o multicore. Aos poucos o ânimo reaparece. Em uma das noites Till jogou truco com a rapaziada; ensinaram-lhe as regras, em inglês, e ele ganhou duas partidas seguidas.

Carlos Fioravanti Organismos marinhos misturados a restos de sedimentoCarlos Fioravanti

Os Próximos 20 Anos
Na quarta, 27, bateram outro recorde, de 1.400 metros. No meio da tarde, encerradas as coletas, o multicore, sem os cilindros, está amarrado no fundo do convés. Durante três horas, Mônica Petti, bióloga do IO, peneirou lama em busca de poliquetas, moluscos, crustáceos e outros organismos marinhos, que depois serão examinados sob microscópio em laboratório. “Fazia tempo que não coletávamos organismos nessas profundidades”, ela comentou.

“Conhecemos muito pouco da biodiversidade marinha do Brasil”, comenta José Eduardo Marian, biólogo da USP que em 2012 descreveu os mecanismos sofisticados da reprodução em lulas. A estimativa atual do número de espécies do mar brasileiro é 30 mil, mas pode ser muito mais, de acordo com os resultados preliminares de um levantamento nacional coordenado por Antonio Carlos Marques, também da USP. Uma das metas é dobrar o número de registros de ocorrência sobre organismos marinhos catalogados na Ocean Biogeographic Information System (Obis), uma base de acesso livre, acrescentando 100 mil registros até março de 2014.

Os problemas também vêm à tona. Um deles, de difícil solução, é a falta de especialistas em vários grupos de animais marinhos. “Precisamos de mais especialistas para dar conta de nossa diversidade”, alerta Marian. “Só neste pedaço da margem continental temos mais 20 anos de trabalho, pelo menos”, diz Michel.

Projeto
Incremento da capacidade de pesquisa em oceanografia no estado de São Paulo (10/06147-5). Coord. Michel Michaelovitch de Mahiques – IO-USP; Modalidade Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PPMCG); Investimento R$ 15.461.637,78 (FAPESP).

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