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Arte

Ruptura sem volta

Exposição no MAM resgata obra de Maria Martins, em ampla mostra intitulada Metamorfoses até 15 de setembro

L’Impossible, 1940 (bronze)

RÔMULO FIALDINIL’Impossible, de 1940 (bronze)RÔMULO FIALDINI

Em 1950, Maria Martins (1894-1973) realizou no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) sua primeira exposição no Brasil. A artista voltava de um longo período de residência no exterior, na qual se deu sua formação e maturação artísticas. Durante os anos 1940 havia se destacado como importante interlocutora dos mestres surrealistas, desenvolvido um trabalho marcado pelo resgate de elementos relativos a mitologias nativas brasileiras e pela deformação crescente e expressiva da figura humana e, ao voltar ao Brasil, rapidamente se engajou no efervescente movimento de criação de instituições como a Bienal de São Paulo. Em poucos anos, sem afinação com as tendências abstrato-geométricas predominantes e com problemas nas mãos que dificultavam a moldagem, ela abandona a escultura pela literatura. A solidez de sua produção e a ampla teia de relações, no entanto, não foram suficientes para garantir-lhe a receptividade que seria natural.

De forma um tanto paradoxal, Maria Martins ocupou um lugar de destaque entre as figuras de primeira grandeza da escultura nacional, sem que estudos mais aprofundados ou mostras mais amplas fossem organizados em torno de sua produção. Tal lacuna, que começou a ser preenchida na última década, ganha agora a contribuição de peso da exposição Maria Martins: metamorfoses, que poderá ser visitada entre os dias 11 de junho e 15 de setembro, também no MAM-SP, museu que tem se dedicado nos últimos tempos a revisitar alguns momentos importantes de sua história.

A mostra reúne 38 esculturas bem como uma grande quantidade de desenhos, cerâmicas e pinturas e se concentra na fase posterior a 1943, momento de corte em sua produção, a partir da qual propõe uma ruptura sem volta e cada vez mais intensa com os modelos de representação direta da forma humana, distorcendo-a e fundindo-a com elementos da natureza. Segundo a curadora da mostra, Veronica Stigger, Maria Martins passa então a criar “formas que não se fixam, que estão em constante transformação”. Daí o título da exposição, Metamorfoses. “A ideia é mostrar como a desfiguração do humano, nesta obra, é sempre já o início da figuração de outra forma, que se aproxima ora do vegetal, ora do animal”, explica.

Glèbe-ailes, 1944 (bronze)

CRISTINA ISIDOROGlèbe-ailes, de 1944 (bronze)CRISTINA ISIDORO

Biografia e curiosidades
A pesquisadora, que se dedica a estudar a obra de Maria Martins desde seu pós-doutorado, desenvolvido entre 2006 e 2009, não se debruça sobre a movimentada e fascinante vida mundana e afetiva da artista, deixando as informações biográficas e curiosidades suplementares a cargo de uma série de novos estudos lançados sobre ela na última década (como a biografia escrita por Ana Arruda Callado, de 2004, a monografia de autoria de Graça Ramos, de 2009, ou o alentado livro Maria, lançado pela Cosac Naify em 2010, e que traz inclusive um texto assinado por Veronica Stigger). Maria Martins, mulher ativa, independente, separou-se ainda nos anos 1920, de um marido conservador, por ter tido um caso com ninguém menos que Benito Mussolini. Com seu segundo marido, o embaixador Carlos Martins, percorreu diversos países (como Japão, Equador e Bélgica, onde aprimorou seus estudos artísticos) e manteve uma relação aberta. Seu caso mais intenso e conhecido foi com Marcel Duchamp, que lhe dedica os trabalhos Le paysage fautif e Etant donnés. Outra passagem fascinante de sua trajetória é o fato de ter compartilhado com Piet Mondrian o espaço da Valentine Gallery em sua segunda individual, de 1942. A mostra dela foi um sucesso comercial enquanto Mondrian praticamente não vendeu. A própria Maria comprou na ocasião uma tela, a Broadway boogie-woogie, que doou posteriormente ao MoMA e que é um dos grandes destaques do museu nova-iorquino.

Maria Martins em seu ateliê, em 1950

ReproduçãoMaria Martins em seu ateliê, em 1950Reprodução

Encanto e estranhamento
Em vez de estruturar a mostra a partir dessa efervescente biografia, Veronica optou por fechar a investigação sobre a produção mais madura da artista, enfocando principalmente seus desdobramentos formais por pouco mais de uma década. A exposição foi organizada em torno de cinco núcleos, que funcionam como chaves de leitura, sem um critério cronológico rígido. O primeiro deles, intitulado “Trópicos”, trata desse olhar de fora, desse desejo de pertencimento, mesclado de encanto e estranhamento, lançado pela artista sobre a natureza do país que havia deixado há mais de 15 anos e que a artista explicita nos títulos de seus trabalhos. Basta lembrar, por exemplo, da peça Não te esqueças que eu venho dos trópicos, de 1945, que estará na exposição. Curiosamente outros artistas importantes, como Vicente do Rego Monteiro, também forjaram no estrangeiro uma relação de resgate intenso do imaginário e da cultura brasileira. Em seguida vem o núcleo das “Lianas”, no qual se nota um acirramento do processo de flexibilização das formas, que se distorcem em estruturas tentaculares que lembram cipós e galhos, numa espécie de emaranhado. A mostra se encerra com os grupos intitulados “Cantos” e “Esqueletos”, reiterando a tendência à abstração, à busca de dar forma ao informe e à redução da escultura a uma estrutura básica, quase inorgânica.

Hasard hagard, de 1947 (bronze)

Vicente de Mello / Editora Cosac NaifyHasard hagard, de 1947 (bronze)Vicente de Mello / Editora Cosac Naify

O terceiro núcleo, “Deusas e monstros”, parece concentrar alguns dos aspectos mais reiteradamente trabalhados por Maria Martins. Esse título nasce de um poema de sua autoria, intitulado Explicação: “Eu sei que minhas deusas e meus monstros irão sempre parecer sensuais e bárbaros”. Essa citação contempla dois aspectos centrais: o caráter onírico, fantasioso, que a aproxima do universo surrealista, e a forte tensão que ela estabelece entre atração e repulsão, erotismo e agressividade, presente com clareza na obra O impossível, um de seus mais notáveis trabalhos. Tensão que remete a um “espírito torturado”, como afirmou Mário Pedrosa (a quem a obra de Maria Martins não agradou por ser cheia de “brechas” e “inconsistências”) ou a um jogo provocante de ambiguidades, como afirma o crítico francês Stéphane Le Follic, ao constatar que “Maria apreende o tema do corpo feminino riva-lizando em leveza com os cipós, fundindo-se ao vegetal ao ponto de não saber distingui-los ou dizer se isso é plenitude ou tortura”.

Com relação ao pertencimento ou não da artista ao movimento surrealista, esta não é uma questão central para Veronica Stigger. Segundo ela, a aproximação de Maria com o grupo não deve ser vista como um alistamento da artista, que detestava os “ismos”, mas como consequência dos profundos laços que estabeleceu, sobretudo em sua estadia norte-americana, com os líderes do movimento, como Max Ernst e André Breton (que escreve vários textos sobre seu trabalho), e da confluência de interesses entre eles. “Me parece que ele (Breton) encontra na obra dela uma relação com a natureza que é cara ao surrealismo”, sintetiza.

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