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Pesquisa Básica

A formação de uma escola

Com início sob condições modestas, grupos atuantes em ciências biomédicas alcançam posição de vanguarda

Coração dilatado: consequência da hipertensão arterial, que em 30% dos casos não cede à terapia com medicamentos

Sheila terry / science photo library Coração dilatado: consequência da hipertensão arterial, que em 30% dos casos não cede à terapia com medicamentosSheila terry / science photo library

O médico Eduardo Moacyr Krieger, 86, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), mostra entusiasmo com os resultados preliminares de um dos estudos recentes dos quais participa: uma análise de cerca de 2 mil pacientes hipertensos de todo o Brasil. O objetivo é verificar qual proporção deles é resistente ao tratamento da pressão alta. Em países desenvolvidos, até 30% dos pacientes caem nessa categoria.

A boa notícia: “É realmente espetacular a resposta dos pacientes brasileiros ao tratamento da hipertensão. A porcentagem dos que têm hipertensão resistente é muito baixa em relação à média internacional, desde que se dê toda a atenção necessária ao doente. É algo comparável aos melhores resultados obtidos em outros países. Isso vai ser muito útil como norma para o SUS [Sistema Único de Saúde]”, diz o pesquisador, que ainda não pode revelar a porcentagem exata por se tratar de um estudo multicêntrico, com 26 instituições participantes.

A trajetória de Krieger e de outros cientistas de sua geração, vários ainda na ativa, ajuda a ilustrar as transformações e os avanços consideráveis pelos quais passou a pesquisa biomédica na maior universidade do país. A partir de inícios modestos, quando os pesquisadores da USP tiveram de enfrentar desafios de infraestrutura e saúde pública ou a perseguição política durante o regime militar, a universidade conseguiu formar grupos que levam a cabo projetos ambiciosos e de impacto científico e social, atuando em áreas de vanguarda como a terapia celular e a medicina personalizada.

Inspiração portenha
Curiosamente em sua origem, vários dos grupos de pesquisa biomédica da USP receberam inspiração e estímulo de pesquisadores argentinos, que já se destacavam como fisiologistas em meados do século passado.

Entre essas figuras está o primeiro argentino – e latino-americano – a receber um Prêmio Nobel por suas realizações como cientista: Bernardo Alberto Houssay (1887-1971), laureado em 1947 graças a seus trabalhos sobre a regulação hormonal dos níveis de açúcar no sangue. Por meio de um programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o pesquisador argentino e seus colaboradores visitaram Porto Alegre em 1954. Foi quando Krieger, então médico recém-formado, conheceu um dos discípulos do vencedor do Nobel, Eduardo Braun Menéndez, e foi convidado para passar alguns meses em Buenos Aires trabalhando com a equipe.

Trypanosoma cruzi ao microscópio: forma proliferativa (círculos menores) no interior de uma célula...

Luciana lima / ICB-uspTrypanosoma cruzi ao microscópio: forma proliferativa (círculos menores) no interior de uma célula…Luciana lima / ICB-usp

O ambiente era improvisado. Por causa de sua oposição ao regime militar argentino, Houssay e seus colaboradores tinham sido expulsos da Universidade de Buenos Aires e forçados a estabelecer o Instituto de Biologia e Medicina Experimental numa casa cedida pela abastada família de Braun Menéndez – cada quarto era um laboratório diferente. Mas a efervescência intelectual desse entorno era tão grande, segundo Krieger, que ele se apaixonou pela pesquisa básica e se aprofundou no conhecimento dos mecanismos fundamentais do sistema cardiovascular.

Tal conexão argentina não terminou aí. Outro membro do grupo de Houssay, Miguel Covian, foi convidado a se juntar à Escola de Medicina de Ribeirão Preto, criada em 1951 pelo médico paulista Zeferino Vaz, com a vocação de ser uma instituição dedicada à pesquisa. Por conhecer Krieger de Buenos Aires, Covian o chamou para Ribeirão Preto, onde o jovem médico se estabeleceu em 1957.

“Eu costumo dizer que só virei fisiologista porque trabalhei com um Nobel de fisiologia”, afirma Krieger. “Esse tipo de liderança em pesquisa é fundamental para a carreira de alguém, porque ciência, no fundo, se aprende com quem sabe, não lendo um livro na biblioteca. A formação do cientista ainda é muito artesanal: inicialmente, você se torna um aprendiz. E essas grandes personalidades são as que entusiasmam, que convencem, que criam uma espécie de cadeia genealógica de pesquisadores.” Coincidentemente, no que diz respeito à genealogia propriamente dita – não a metafórica, envolvendo mestres e discípulos, mas a literal, de pai para filho –, o médico gaúcho também inspirou a carreira do filho, José Eduar-do Krieger, que dirige o Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (InCor).

Revolução do DNA
Com efeito, a atmosfera daquela época tanto no interior como na capital envolvia alguns ingredientes comuns. Um dos mais importantes foi o que se pode chamar de primeira fase revolucionária da biologia molecular, explica o parasitologista Erney Plessmann de Camargo, de 79 anos, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que no início dos anos 1970, como consequência de uma adequação à reforma universitária, passou a reunir docentes e pesquisadores de várias cadeiras básicas. Antes distribuídas pelas diferentes faculdades da USP, especialidades como histologia, parasitologia, imunologia e fisiologia, entre outras, hoje com importante produção científica em nível internacional, migraram para o ICB no campus da cidade universitária, no bairro paulistano do Butantã.

... e forma extracelular, com flagelo, no sangue de camundongo infectado

Luciana lima / ICB-usp… e forma extracelular, com flagelo, no sangue de camundongo infectadoLuciana lima / ICB-usp

Camargo, responsável por trabalhos importantes a respeito da biologia do Trypanosoma cruzi, o parasita que causa o mal de Chagas, cita várias das descobertas seminais que, ao longo dos anos 1950 e 1960, pareciam finalmente estar revelando os segredos do funcionamento da vida a partir de suas bases moleculares: a descoberta da célebre estrutura de dupla hélice de DNA; o processo de produção de energia nas mitocôndrias, as “centrais elétricas” das células; como se dava a produção de proteínas nos ribossomos. “Havia circunstâncias muito favoráveis para se interessar pela ciência e grandes professores que mostravam isso para a gente”, resume ele.

Segundo Camargo, outro motivo que o atraiu para trabalhar com parasitologia foi a política: quase todos os pesquisadores envolvidos com a área tinham convicções de esquerda. “Era o departamento vermelho da Faculdade de Medicina”, brinca. Entre os colegas esquerdistas estavam Luiz Hildebrando Pereira da Silva, morto este ano e um pouco mais velho que Camargo, e o catedrático Samuel Pessôa, amigo do militar e líder comunista Luís Carlos Prestes. A associação entre engajamento político e parasitologia, à época instalada na sede da Faculdade de Medicina, no bairro de Pinheiros, era lógica, para muitos desses pesquisadores, quando se considerava a ligação entre pobreza e doenças graves causadas por parasitas. “Samuel dizia que queria resolver o problema do povo brasileiro”, lembra Camargo.

Se essa visão serviu como estímulo para a produção científica do grupo, também colocou seus membros em maus lençóis com o golpe militar de 1964. Vários parasitologistas da USP foram cassados pelo novo regime, entre eles o próprio Camargo. Tanto ele quanto Luiz Hildebrando chegariam a ser presos mais tarde. Camargo só voltaria definitivamente à USP nos anos 1980, num concurso assistido por cerca de 200 pessoas e que funcionou como uma espécie de desagravo da universidade ao pesquisador perseguido.

Para o parasitologista, embora o ambiente universitário de hoje às vezes pareça menos politizado do que o dos anos 1960, as diferenças não são tão grandes quanto se poderia imaginar. “Não acredito que a estrutura intelectual e política da comunidade científica tenha mudado significativamente de lá para cá. O que mudou muito foram as circunstâncias: foi o espectro da Guerra Fria que acabou, foi a opressão física e cultural do regime militar que desmoronou, foi a progressiva, embora lenta, humanização do capitalismo. Tenho quase certeza de que, se algum tipo de opressão retornar, retornará também o não conformismo da comunidade científica, que de novo será chamada de subversiva”, argumenta ele.

Camargo hoje se dedica a tentar entender, de maneira ampla, a história evolutiva do grupo dos tripanossomatídeos, ao qual pertence o causador do mal de Chagas. Uma variedade imensa de vertebrados, de peixes a répteis, é afetada por essas criaturas, transmitidas não apenas pelos insetos conhecidos como barbeiro, mas também por carrapatos e sanguessugas. Estudar essa trajetória evolutiva fascinante é, em parte, uma medida do sucesso da parasitologia, afirma ele.

“A parasitologia do meu início de carreira tinha terríveis desafios sanitários e político-sociais, ligados à malária, à doença de Chagas, à esquistossomose e às demais verminoses. Era, muito corretamente, uma parasitologia voltada para as doenças humanas. Hoje, esses problemas não têm a dimensão de outros tempos, e com isso a parasitologia se tornou um ramo muito importante da história natural, já que os parasitas constituem o grupo mais numeroso de seres vivos da Terra.”

Da bancada ao leito
Mais ou menos na época em que Krieger se estabelecia em Ribeirão Preto, a dupla formada pelos médicos Maurício Rocha e Silva (falecido em 1983) e Sérgio Henrique Ferreira, hoje com 80 anos, realizava trabalhos que se tornariam a base para algumas das primeiras drogas eficazes para reduzir a hipertensão arterial, analisando, por exemplo, os efeitos de substâncias do veneno da jararaca sobre a bradicinina, molécula produzida naturalmente pelo organismo.

Mais tarde, Ferreira elucidaria o mecanismo de funcionamento contra a dor e contra inflamações de substâncias como a aspirina e a morfina. Hoje, colegas mais novos de Ferreira na USP de Ribeirão Preto, como Fernando de Queiroz Cunha, continuam esse trabalho com o objetivo de enfrentar doenças que envolvem mecanismos inflamatórios, como a sepse (infecção generalizada), a artrite reumatoide e a psoríase.

“O Maurício Rocha e Silva é meu ‘avô’ científico e o Sérgio Ferreira é meu ‘pai’, podemos dizer”, afirma Cunha, voltando a usar a metáfora genealógica – Ferreira, no caso, foi seu orientador de doutorado.

Embora diversos grupos de pesquisa biomédica da USP tenham se preocupado, ao longo das décadas, com a aplicação clínica dos resultados obtidos pela ciência básica, Cunha diz que esse impulso se tornou mais forte nos últimos cinco anos, com uma ênfase crescente na chamada pesquisa translacional.

A vantagem do campus de Ribeirão Preto nesse aspecto, segundo Cunha, é que ali há um bom hospital e uma área de pesquisa básica bem atuante. Além da farmacologia e da imunologia, destacam-se grupos como o chefiado pelo médico Marco Antonio Zago, atual reitor da USP, que investiga doenças hematológicas e o uso de células-tronco para tratar algumas formas de câncer do sangue.

“A questão”, diz Cunha, “é que só agora a indústria farmacêutica brasileira começa a perceber a importância da inovação radical. A fatia do mercado, que é dominada pelas empresas brasileiras da área, é importante e robusta, mas até pouco tempo se preocupava quase exclusivamente com produtos genéricos ou similares.” Graças em parte às agências de fomento, segundo Cunha, vem ocorrendo uma aproximação entre a universidade e o setor produtivo. “Não podemos esperar que a universidade coloque no mercado um novo produto”, diz.

Um exemplo dessa iniciativa que pode se concretizar no futuro é um teste imunobiológico desenvolvido por Cunha e seus colegas para pacientes com artrite reumatoide. A maior parte dos pacientes com essa doença autoimune responde bem ao uso do metrotrexato, um dos principais medicamentos antiartrite. Mas cerca de 30% não respondem, fato que só fica claro de três a seis meses após o início do tratamento. O teste desenvolvido pela equipe de Ribeirão permitiria saber desde o começo que o metrotrexato não funciona para certos pacientes. “Assim não se perderia até seis meses de tratamento”, diz. A equipe já obteve o registro da patente do teste e negocia sua fabricação com empresas nacionais.

O grupo também avançou na compreensão da sepse, infecção generalizada que pode acometer pessoas internados após cirurgias de grande porte e que no país mata em até 50% dos casos. A sepse é um fenômeno complexo. Parte do risco que ela traz à saúde vem do fato de que, em dada fase, a sinalização do sistema imune fica confusa e “cansada”, impedindo o ataque eficaz às bactérias causadoras da sepse. A equipe de Ribeirão acaba de identificar uma molécula que poderia servir como alvo de medicamentos, restaurando essa sinalização.

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