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COOPERAÇÃO

Pecuaristas e ambientalistas juntos

Criação de gado em campo nativo, vegetação típica do sul do país, concilia interesses das duas partes

Em abril, supermercados do Rio Grande do Sul devem receber o primeiro lote de carne de bois criados em campos nativos, um tipo de vegetação típica do sul. É o resultado de 12 anos de negociações, debates e alianças entre ambientalistas e pecuaristas, unidos em torno de uma estratégia até agora bem-sucedida de preservação com aproveitamento econômico de uma vegetação nativa e de sua biodiversidade. A pecuária em campos nativos é um modo de produção que favorece a preservação do ambiente original, que de outro modo poderia ser convertido em agricultura ou pastagens dominadas por gramíneas de espécies exóticas como o capim braquiária.

Ainda que limitada a terras gaúchas e de pequena escala diante da dimensão do rebanho bovino brasileiro, calculado em 212 milhões de cabeças, essa estratégia –esperam os produtores – deve resultar em uma carne de qualidade melhor, com menos gordura e mais sabor, como resultado da dieta variada que os animais poderiam usufruir. Nos campos sulinos já foram identificadas 450 espécies de gramíneas nativas, como o capim-forquilha, grama-tapete, barbas-de-bode e cabelos-de-porco, uma diversidade maior que em outros ambientes. As formas campestres do Cerrado, por exemplo, apresentam cerca de 100 espécies nativas de gramíneas, a maioria de baixo valor nutricional. Até o final de 2015, 50 mil bois e vacas eram criados em 8 mil quilômetros quadrados (km2) de campos preservados de 110 fazendas do Rio Grande do Sul, certificadas pela Alianza del Pastizal (campos nativos, em espanhol), uma associação de produtores criada pelas unidades da organização não governamental BirdLife no Brasil, no Uruguai, na Argentina e no Paraguai. A empresa de alimentos Marfrig fez um acordo com 24 produtores certificados para receber, abater e distribuir inicialmente 250 animais por mês.

“Temos de conservar os campos para assegurar a perenidade do negócio”, disse Mathias Almeida, gerente de sustentabilidade da empresa. Vegetação predominante no Pampa, ecossistema natural que ocupa 176,5 mil km2 no Rio Grande do Sul ou 2% do território brasileiro, os campos nativos estão encolhendo. Sua área passou de 41% do Pampa em 2002 para 36% em 2008, por causa da expansão de monoculturas como a de soja e das pastagens com espécies exóticas de gramíneas, que afugentam a biodiversidade. Os campos abrigam cerca de 500 espécies de aves, como a ema, o joão-de-barro, o veste-amarela, a noivinha-de-rabo-preto, o sabiá-do-campo e a águia-chilena, além de 100 espécies de mamíferos, entre eles o veado-campeiro, ameaçado de extinção, e um roedor só encontrado nessa região, o tuco-tuco.

Identidade gaúcha
“A pecuária sobre campo nativo, com o adequado manejo, é uma excelente oportunidade de ganho econômico com manutenção dos serviços ecossistêmicos dos ambientes campestres”, diz o geógrafo Heinrich Hasenack, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “O grande cuidado que se deve ter é identificar a carga animal adequada para cada tipo de campo, evitando assim a sobrecarga animal.” A Alianza propõe o limite de 0,8 animal por hectare, bem menos que os 3 ou 4 por hectare de pastagens mais adensadas, como forma de preservar a vegetação e a lucratividade.

“Se bem manejado sem sobrecarga animal, a pecuária sobre campo nativo é considerada um elemento-chave na manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos da região, assim como o fogo é importante na manutenção da diversidade em algumas fisionomias do Cerrado”, reitera o biólogo Tiago Gomes, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). “Práticas adicionais simples podem aumentar a riqueza de espécies nas propriedades rurais, como a rotação dos animais em sistemas de potreiros ou piquetes, garantindo que as plantas possam sementar antes de serem pastejadas e oferecendo campos heterogêneos, com diferentes alturas e adensamentos de moitas, aos animais.”

Limite recomendado é de 0,8 animal por hectare como forma de preservar a vegetação e a lucratividade

Fabio ColombiniLimite recomendado é de 0,8 animal por hectare como forma de preservar a vegetação e a lucratividadeFabio Colombini

Pecuaristas e ambientalistas consideram satisfatórios os resultados obtidos até agora. “Estamos conseguindo preservar não só a biodiversidade e uma vegetação típica do Sul, mas também a identidade gaúcha, muito ligada à pecuária e aos campos nativos”, observou o biólogo Pedro Develey, diretor executivo da organização não governamental SAVE/BirdLife e um dos articuladores da estratégia que incentivou a criação de gado nesse ambiente natural como forma de preservar, principalmente, a diversidade e as populações de aves (ver Pesquisa FAPESP no 156). Em 2004, ao ingressar na SAVE/BirdLife, ele encontrou em gestação o projeto de conservação das aves dos campos nativos, que se estendem pelos três países vizinhos. Para continuá-lo, seu primeiro desafio foi expandir o universo de interlocutores. “Eu conhecia apenas pesquisadores acadêmicos, mas tinha de falar também com os criadores de gado”, disse.

Em uma reunião de pecuaristas em Bagé em 2006, Develey se sentiu finalmente com sorte ao ouvir uma apresentação do agrônomo Fernando Adauto Loureiro de Souza, então à frente da Associação dos Produtores de Carne do Pampa Gaúcho da Campanha Meridional, sobre a criação de um selo de indicação geográfica a ser conferido aos criadores de bois em campos nativos. “O senhor está fazendo exatamente o que queremos fazer”, disse Develey. Souza o ouviu, gostou da proposta e percorreu com ele e outros biólogos as terras dos demais fazendeiros interessados em preservar os campos nativos, ainda que sob o impacto da convivência com o gado, que pisoteia e come a vegetação.

Entrevista: Pedro Develey
00:00 / 14:56

Aves à vista
Aos poucos, ambientalistas e pecuaristas venceram a resistência recíproca, acertaram o que era possível fazer e, em conjunto, prepararam os critérios de certificação ambiental, emitidos pela Alianza aos produtores que preservarem os campos nativos em pelo menos 50% de suas terras. “Sem radicalismos”, ponderou. “Nenhum produtor deixará de ser aceito na Alianza se plantar soja ou eucalipto na metade da propriedade.” Procurando integrar os grupos, ele fez palestras em reuniões de pecuaristas e Souza, em um congresso de ornitologia.

Para fortalecer as propostas de conservação da biodiversidade, os biólogos prepararam guias de identificação de aves e, como resultado, “os pecuaristas começaram a prestar mais atenção nas aves das terras deles”, disse Develey. Em um levantamento publicado na edição de novembro de 2015 da revista Lavras do Sul, Glayson Bencke e outros biólogos do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul identificaram de 85 a 120 espécies de aves em cada uma das sete fazendas examinadas. De acordo com os pesquisadores, a diversidade e as populações de aves parecem estar se mantendo.

“O melhor negócio é produzir com mais rentabilidade, não é produzir mais”, disse Souza. Foi dele a ideia de organizar os leilões de bezerras, novilhas e vacas criadas em campos nativos para serem usadas para formar novos rebanho. Todos os animais dos dois primeiros leilões foram vendidos – 1.115 no primeiro, em 2014, e 1.478 no do ano seguinte –, a um preço pelo menos 10% acima do valor de mercado, com negócios fechados de R$ 1,5 milhão e R$ 2,5 milhões. O terceiro está marcado para 23 de abril na cidade gaúcha de Lavras do Sul.

Nas próximas semanas, quando as embalagens com as carnes dos bois chegarem aos balcões refrigerados dos mercados gaúchos, começará a batalha pela conquista do consumidor. Se os compradores não gostarem do sabor, da consistência e do preço da carne dos animais criados no campo nativo, o engajamento dos pecuaristas e as conexões entre pessoas e instituições poderiam se enfraquecer.

Artigo científico
DEVELEY, P. F. et al. Conservação das aves e da biodiversidade no bioma Pampa aliada a sistemas de produção animal. Revista Brasileira de Ornitologia. v. 16, n. 4, p. 308-15, 2008.

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