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História

A batalha da Abolição

Estudo reconstrói a importância do movimento abolicionista como força social que levou à libertação dos escravos

Missa campal em celebração à abolição dos escravos e ilustração que representa um abolicionista, escravos e o Parlamento

divulgação Missa campal em celebração à abolição dos escravos e ilustração que representa um abolicionista, escravos e o Parlamentodivulgação

A história da Abolição não se restringe apenas às iniciativas legais do governo imperial, nem à conjuntura econômica internacional, tampouco às rebeliões dos escravos. Foram essas as linhas predominantes que guiaram as interpretações acadêmicas sobre o assunto até agora. Um robusto movimento abolicionista, com sua contrapartida escravista, também teve papel histórico central durante os 20 anos (1868-1888) que precederam a Lei Áurea. É dessa perspectiva pouco conhecida que se alimenta o livro Flores, votos e balas, pela editora Companhia das Letras. A autora é a socióloga Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A pesquisa, que incluiu um ano na Universidade Yale (EUA), durou seis anos.

“Por ser socióloga e adotar um ângulo interdisciplinar, prestei atenção na mobilização do espaço público, à qual os historiadores talvez não tenham dado a devida importância”, diz Angela, também autora de Joaquim Nabuco (2007), biografia do político abolicionista pernambucano. “Percebi que, por sua estrutura e características, eu estava diante de um movimento social conforme descreve a teoria sociológica e muito semelhante estruturalmente aos que ocorreram na Inglaterra e nos Estados Unidos.” Não por acaso, um dos pontos que a pesquisadora enfatiza em seu estudo é a conexão de parte do movimento abolicionista brasileiro com ativistas da causa no exterior. “Raramente tivemos um estudo de abrangência tão grande sobre o assunto”, diz a professora Lígia Fonseca Ferreira, do Programa de Graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudiosa do período e biógrafa do advogado, abolicionista e poeta negro Luiz Gama (1830-1882).

Um dos expoentes da vertente internacionalista da militância contra a escravidão foi o educador Abílio Borges (1824-1891), que, apesar de pertencer à elite imperial, mantinha laços estreitos com associações inglesas e francesas que lutavam contra a escravidão no além-mar. Borges, segundo Angela, “apostou no vexame externo” ao promover uma petição emancipacionista assinada por políticos franceses e entregue ao imperador Pedro II por intermédio do Ministério de Assuntos Estrangeiros da França. “O documento embaraçou dom Pedro”, narra Angela. “Arranhava a reputação do Império aparecer como terra escravista.”

Confederação abolicionista em 1888, com José do Patrocínio (em pé, primeiro à esq.) e André Rebouças (sentado, primeiro à esq.)

divulgação Confederação abolicionista em 1888, com José do Patrocínio (em pé, primeiro à esq.) e André Rebouças (sentado, primeiro à esq.)divulgação

Personagens
Borges, que até agora era mais conhecido por ter inspirado Raul Pompeia a criar o personagem do diretor da escola no romance O ateneu, é uma das figuras centrais de Flores, votos e balas, assim como o conhecido abolicionista André Rebouças (1838-1898), engenheiro negro muito requisitado como projetista de obras modernizadoras e interlocutor dos círculos de poder. Do lado dos escravistas, Angela destaca a figura de Paulino Soares de Sousa (1834-1901), fio condutor das táticas e manobras da ala “emperrada” (isto é, inflexível) do Partido Conservador no Parlamento.

O governo (ou o Estado), lembra a socióloga, é o vértice necessário de um triângulo formado pelo movimento abolicionista e seus contramovimentos na sociedade. “Sinal claro desse jogo é que o Estado ora trouxe o abolicionismo para dentro do Parlamento, ora o reprimiu”, diz Angela, referindo-se às sucessivas mudanças de orientação política durante o período estudado, em que se alternaram na chefia do governo, por exemplo, Manuel de Sousa Dantas, abolicionista do Partido Liberal (1884-5), e o Barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley), escravista do Partido Conservador (1885-8).

A indecisão política mostra, segundo a pesquisadora, que não faz sentido a ideia, relativamente difundida, de que a abolição foi um processo consensual ou inelutável. A pesquisa indica que a ideia da emancipação dos escravos encerrava ameaças consideráveis à ordem estabelecida. “O Império era fundado na escravidão, não só na economia”, afirma Angela. “A hierarquia social era baseada na posse de bens que davam poder e prestígio, e os bens mais importantes eram os escravos. A escravidão sustentava também o sistema partidário, porque o eleitorado era definido com base na renda.”

O romancista José de Alencar (1829-1877), deputado conservador e um dos porta-vozes mais ativos do antiabolicionismo, diante do quadro que se avizinhava, advertiu em 1867: “Um sopro bastará para […] lançar o Império sobre um vulcão”. Não se tratava, no entanto, de defesa aberta do escravismo, mas de retórica do medo para tentar adiar o processo. É o que Angela chama de “escravismo de circunstância”: setores do Parlamento eram “compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista, sem defender a instituição em si, que, reconheciam, civilização e moral condenavam naquela altura do século”.

Parlamento durante a votação da Lei Áurea em 1888 e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário

divulgação Parlamento durante a votação da Lei Áurea em 1888…divulgação

Cenário mundial
Havia-se chegado a esse tenso estado de coisas mediante o processo sobre o qual Angela se debruçou, composto de duas dinâmicas, uma mundial, outra interna. “No âmbito externo, havia um ciclo de abolições pelo mundo e o Brasil se mantinha escravista, chamando a atenção internacional”, diz Angela. O processo tem o ponto de maior tensão em 1850, quando a Inglaterra impõe o tratado do fim do tráfico de escravos, embora o Brasil demore a efetivá-lo. Contudo, até a década de 1860, o Brasil se encontrava mais ou menos protegido pelo fato de haver no mundo ocidental dois outros exemplos escravistas de grande porte, a Espanha, com suas colônias de Porto Rico e Cuba, e os Estados Unidos.

Mas, à medida que esses países avançam rumo ao fim da escravidão, o Brasil foi ficando isolado no cenário mundial. Isso provocou uma inevitável divisão da elite política. “Não se tratava mais de responder ou não à pressão internacional, mas em que velocidade”, ressalta Angela. O processo culmina quando o Parlamento aprova a tramitação da Lei do Ventre Livre, em 1871, como “um sinal de que o Brasil era civilizado”. Nesse momento, observa Angela, já havia uma mobilização articulada na sociedade. “Ressalto que o processo não começa em 1879, quando Nabuco e José do Patrocínio [1854-1905] partem para a atuação no espaço público, e sim na década anterior”, diz a pesquisadora.

Essa trajetória, que culminará na abolição, é dividida por Angela nas três fases enunciadas no título de seu livro: flores, votos e balas. As flores se referem ao símbolo das manifestações abolicionistas promovidas, entre outros, por Borges e Rebouças, que, além de suas atividades de articulação política, criavam associações e cerimônias públicas. “A abolição começou a ser propagandeada em espaços que não eram genuinamente políticos”, diz a socióloga. Em pouco tempo, os teatros passaram a dar abrigo a essas manifestações, intercaladas com números artísticos. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde os polos de difusão das campanhas abolicionistas civis foram as igrejas quakers, no Brasil o catolicismo era não só credo predominante, mas também religião oficial do Estado. Isso favoreceu a conquista de almas para o abolicionismo entre a elite social e camadas intelectuais, que tinham no teatro sua maior diversão. Os princípios e atividades abolicionistas também se beneficiaram nessa época de avanços que permitiram a impressão e circulação de publicações independentes.

As “conferências-concerto”, como chamavam os ativistas, espalharam-se pelo país. Em 1883, começaram a ser acompanhados por uma adaptação da estratégia norte-americana de organizar rotas de fuga de escravos para territórios livres. A diferença entre o Brasil e os EUA é que aqui não havia territórios oficialmente livres – foram criados pelos abolicionistas, em ruas ou bairros. Aos poucos, os ativistas vão liberando territórios, contando com a aceitação dos proprietários ou recorrendo a campanhas de arrecadação para pagar a alforria dos escravos.

... e a multidão do lado de fora: texto reduzido ao mínimo necessário

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Ativismo jurídico
A estratégia tornou-se campanha nacional e deu certo principalmente no Ceará e no Amazonas, que tinham relativamente poucos escravos e contavam com presidentes de província abolicionistas. No caso do Ceará, a movimentação gerou a abolição da escravidão dentro dos limites da província em 1884 – que passou a ser um destino para escravos fugidos e libertos de todo o país. Também de inspiração estrangeira foi a estratégia de Luiz Gama ao buscar inconsistências na lei para pedir a libertação de escravos nos tribunais. “Gama fazia parte de uma facção do abolicionismo que defendia o ativismo jurídico, divergindo de Nabuco, para quem a reforma deveria ser feita no Parlamento”, diz Lígia Fonseca. Angela argumenta que “não havia propriamente divergência entre eles, mas complementaridade de estratégias, cada um recorrendo a um estilo de ativismo”.

A libertação dos escravos no Ceará abre a fase dos “votos”, quando a classe política decide reagir. Com a indicação de Sousa Dantas para a chefia do governo imperial, em 1884, os abolicionistas colaboraram na redação do programa de governo e lançaram 51 candidaturas em apoio a ele. No entanto, os abolicionistas perdem, “menos nas urnas do que na apuração”, segundo Angela. Com a queda de Dantas, sobe o governo escravista de Cotegipe e começa o período das “balas”, com repressão aberta e acirrada às atividades abolicionistas, posta em prática pela polícia ou por milícias à paisana. “É nesse momento que o processo de desobediência civil ganha escala”, afirma a pesquisadora. José do Patrocínio diz que “os abolicionistas sinceros estão preparados para morrer”. Para o historiador Celso Castilho, professor da Universidade Vanderbilt (EUA), essa é uma evidência da importância dos movimentos sociais no processo estudado. “As lutas pela participação política e cívica têm as próprias histórias e precisam ser repensadas pela historiografia”, diz Castilho.

Em grande parte graças ao movimento social abolicionista, a causa ganhou adesão ou tolerância na sociedade. “No final do processo, o abolicionismo contava com apoio tácito da população urbana, que se calava diante das fugas”, diz Angela. “A escravidão foi sendo comida por todos os lados.” O re-sultado do processo foi, contudo, um empate. Os escravistas cederam, mas os abolicionistas não conseguiram implementar seu programa com extensão de direitos aos libertos. Venceu o empenho do gabinete de João Alfredo em fazer da Lei Áurea uma simples declaração de dois parágrafos, sem as indenizações aos proprietários, mas também sem garantias de vida digna aos ex-escravos.

Projetos
1. Circulação de ideias e estratégias de ação no movimento abolicionista (nº 2009/05921-1); Modalidade Bolsa no Exterior – Regular – Novas Fronteiras; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 78.689,12.
2. Abolicionismo como movimento social (nº 2012/08495-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Angela Maria Alonso (FFLCH-USP/Cebrap); Investimento R$ 116.566,11.

Livro
ALONSO, A. Flores, votos e balas – O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 568 p.

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