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Artes Cênicas

A naturalidade e a vanguarda dos figurinos teatrais

Pesquisador analisa a história dos trajes usados nos palcos brasileiros desde o século XIX

Podcast: Fausto Viana

 
     
O estudo sobre os trajes de cena é recente no Brasil. Para o pesquisador Fausto Viana, é até certo ponto compreensível que seja assim, levando em conta que a primeira leva importante de trabalhos acadêmicos sobre teatro se deu apenas nos anos 1970, voltada principalmente para o ator. Depois as atenções passaram para a direção, chegando à parte técnica somente na década de 1990, cenografia à frente. E só em seguida apareceu maior interesse pelos figurinos, segundo o professor da Escola de Ciências, Artes e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e coordenador do Núcleo de Pesquisa Traje de Cena, ligado à Pró-reitoria de Pesquisa. “Nos últimos tempos, o interesse vem crescendo muito”, diz Viana, que também leciona na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA-usp). “Há grupos de pesquisa sendo criados pelo país todo. Espero que continuem se multiplicando, para abrir novas frentes de estudo.”

A mais nova frente aberta por Viana é a pesquisa “O figurino teatral das renovações cênicas brasileiras”, que teve apoio da FAPESP e está prevista para sair em livro no segundo semestre. O estudo é um desdobramento da tese de doutorado O figurino teatral das renovações cênicas do século XX: Um estudo de sete encenadores (2004), no qual abordou o trabalho de grandes nomes como Constantin Stanislavski e Bertolt Brecht sob o ângulo específico dos trajes de cena. Enquanto a lista de estrangeiros daquela pesquisa chega a uma diretora ainda viva, a francesa Ariane Mnouchkine, a trajetória brasileira estudada termina nos anos 1960. Viana considera que o período posterior já foi bastante abordado e que é mais urgente analisar as primeiras décadas do século XX. “Estou interessado em resgatar o que pode se perder”, diz.

Cartaz de peça de Eduardo Victorino

reproduçãoCartaz de peça de Eduardo Victorinoreprodução

No cenário brasileiro, Viana selecionou sete destaques ligados à criação e à reflexão no campo do figurino: o ator João Caetano dos Santos (1808-1863), o diretor e ator Eduardo Victorino (1869-1949), a companhia Os Comediantes (1938-1947), o Teatro Experimental do Negro (TEN, 1944-1968), o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC, 1948-1964), Alfredo Mesquita (1907-1986) e a Escola de Arte Dramática (EAD, fundada em 1948) e o artista plástico, arquiteto e cenógrafo Flávio de Carvalho (1899-1973). Entre outros motivos, a escolha desses marcos obedeceu à intenção de desfazer a ideia de que a grande renovação da cenografia e dos figurinos no Brasil foi o trabalho de Tomás Santa Rosa Júnior (1909-1956) para a peça Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, encenada pelo grupo carioca Os Comediantes em 1943.

A importância dos figurinos num espetáculo teatral é de integrar a caracterização de um personagem e de algum modo “contar sua história”, de acordo com Viana, para quem os figurinos são parte da cenografia. A diretora de arte em cinema e teatro Vera Império Hamburger, da ECA-USP, acrescenta outro aspecto: “Os trajes têm importância crucial porque são o único elemento visual em movimento, criando narrativas”.

Os destaques
João Caetano, embora muito famoso como ator em sua época no Rio de Janeiro, com boas relações na Corte, culto e conhecedor do teatro francês, só deixou uma fotografia caracterizado em cena, insuficiente para desenvolver análises de seu trabalho como figurinista ou cenógrafo. Por comentários de encenadores posteriores, sobretudo Victorino, e pelo que João Caetano deixou registrado em seu livro Lições dramáticas (1861), depreende-se uma concepção hegemônica na segunda metade do século XIX, inclusive na Europa: o predomínio da beleza do traje, sem maior preocupação com veracidade histórica ou psicológica.

Paulo Autran em Leonor de Mendonça, do TBC

reproduçãoPaulo Autran em Leonor de Mendonça, do TBCreprodução

No entanto, Elizabeth Azevedo, também do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, encontrou elementos modernizantes em Emilio Doux (1798-1876), português radicado no Brasil que no fim da vida viria a trabalhar com o ator carioca. Segundo Elizabeth, Doux trouxe uma interpretação mais natural do que a usual na época e, se não há registro dos figurinos de seus espetáculos, é possível inferir alguma modernização a partir do apelido dado às peças de temas contemporâneos, chamadas de “dramas de casaca” (o traje usado nas ruas).

Foi o encenador português Victorino, estabelecido no Rio, quem introduziu ideias modernizantes e aparentadas às de seus contemporâneos inovadores da cena europeia, o suíço Adolphe Appia e o inglês Edward Gordon Craig, ao mesmo tempo que se opunha ao estilo declamatório que marcava a interpretação no teatro brasileiro na época, defendendo uma “verdade cênica”. “Em parte por influência de Victorino, os grandes nomes passam por volta da década de 1910 a adotar figurinos adequados a cada personagem”, diz Viana. Foi também por essa época que vários atores começaram a mandar confeccionar e guardar os próprios figurinos, hábito que ainda sobrevivia nos anos 1970. “Contratava-se um ator porque tinha uma casaca”, contou o ator Paulo Autran num depoimento citado por Viana.

A atriz Maria Falcão, da companhia de Victorino

reproduçãoA atriz Maria Falcão, da companhia de Victorinoreprodução

A primeira encenação do ativista negro Abdias Nascimento (1914-2011) foi na prisão em 1943, em São Paulo, depois de sofrer um processo por indisciplina que se seguiu a sua expulsão do Exército. Na companhia de outros presos, fundou o Teatro do Sentenciado, que apresentou a peça Revista penitenciária, em que os atores faziam papéis masculinos e femininos. O próprio Nascimento cuidou de improvisar figurinos. Dois anos depois, na peça inaugural do TEN, O imperador negro, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, os figurinos também foram marcados por extrema simplicidade. Apesar da falta de recursos, a companhia, que pela primeira vez levou ao palco orixás (na peça Sortilégio) e um negro como personagem principal, contava com a simpatia de outros grupos teatrais cariocas, que muitas vezes se associavam a ela em espetáculos conjuntos. O consagrado Santa Rosa se encarregou das roupas e cenários de várias montagens do grupo a partir de 1947. Mais de uma vez, sem dinheiro, criou os figurinos nos próprios corpos dos atores, com lençóis e alfinetes. Em 1949, Aruanda, outra colaboração com Santa Rosa, foi, segundo Viana, “a primeira produção em que efetivamente se privilegiou o traje do negro, das escravas coloniais, da produção têxtil africana”.

Luxo e riqueza
Bem diferente foi a experiência protagonizada pelo paulistano Alfredo Mesquita, considerado pelo pesquisador “uma peça-chave no pensamento do figurino no Brasil”. Homem rico (membro da família proprietária do jornal O Estado de S. Paulo) e bem relacionado, recebia da elite doações de trajes que entraram para o acervo da EAD, da qual foi fundador e que hoje é uma unidade complementar da USP. Mesquita, que assinou o figurino de muitas peças montadas pela EAD, levou à escola um profissionalismo pouco usual para o teatro brasileiro até então, contratando cenógrafos e figurinistas.

O sortilégio, do Teatro Experimental do Negro

reproduçãoO sortilégio, do Teatro Experimental do Negroreprodução

Ainda mais luxuoso, o TBC significou um grande salto técnico para o teatro brasileiro com a chegada de um grupo numeroso de profissionais europeus. Seu fundador foi Franco Zampari (1898-1966), que havia vindo da Itália para trabalhar nas indústrias Matarazzo e reunira considerável fortuna. O grupo trazido por Zampari incluía os diretores Adolfo Celi e Luciano Salce e o cenógrafo e figurinista Gianni Ratto. “Na época, anos 1940, São Paulo já era um centro financeiro vigoroso e pôde receber um teatro cujo modo de produção era totalmente europeu”, afirma Viana. Um hábito da Europa trazido para o Brasil foi de fazer uma primeira versão do traje em algodão, experimentar no ator, estudar seus movimentos e só então confeccionar o figurino definitivo. “O TBC se deu esse luxo”, diz Viana. Ele conta também que o figurinista Aldo Calvo, para uma montagem de A dama das camélias, importou 80 metros de tule cristal francês para um único vestido usado pela atriz Cacilda Becker. “A produção quase quebrou o TBC.”

O pesquisador decidiu incluir Flávio de Carvalho entre os nomes que considera os principais da cenografia brasileira no século XX não tanto por ter tido uma atuação duradoura ou influente, mas pela originalidade de seus projetos, que às vezes anteciparam concepções de vanguardistas como o francês Antonin Artaud. Conhecido pela irreverência, Carvalho encenou em 1933 o espetáculo O bailado do deus morto, descrito por ele mesmo como um laboratório no qual “seria experimentado o que surgiria de vital no mundo das ideias: cenários, modos de dicção, mímica, a dramatização de novos elementos de expressão, problemas de iluminação e de som e conjugados ao movimento de formas abstratas”. As figuras em cena surgiam como totens com máscaras e grandes cabeleiras. Igualmente inovadores foram os cenários e figurinos escultóricos criados por Carvalho para o Balé do IV Centenário de São Paulo, em 1954. Para Viana, “o entendimento do que foi o Balé do IV Centenário para as artes plásticas, a dança e o teatro ainda tem uma história a ser escrita, porque pode se tornar a certidão de batismo da cenografia brasileira contemporânea”.

Projeto
O figurino teatral das renovações cênicas brasileiras (nº 2013/09333-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fausto Viana (ECA-USP); Investimento R$ 31.831,12.

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