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Ecologia

Clima de sedução

Temperatura e umidade do ambiente influenciam as estratégias reprodutivas dos animais

Podcast: Glauco Machado

 
     
Uns são coloridos, maiores que as fêmeas, brandem “armas” e defendem territórios a todo custo; outros têm cores discretas, são muito parecidos com as parceiras e não perdem tempo em brigas por espaço – vão direto ao ponto quando chega a hora de se reproduzir. Com algumas variações, esses dois perfis são usados para explicar o comportamento sexual de machos de várias espécies. Generalizando (o que nem sempre corresponde à realidade), os primeiros seriam os habitantes dos trópicos, e os segundos, das regiões temperadas. O que essa dicotomia não leva em conta é que em regiões tão distintas como a Caatinga brasileira e os Alpes europeus – tropical e temperada, respectivamente – há características semelhantes a ponto de abrigar espécies com comportamentos sexuais parecidos. Em teoria proposta por pesquisadores como Glauco Machado, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o que define o comportamento sexual das espécies não é apenas a temperatura e a umidade, mas a estabilidade do clima: a duração do período em que esses parâmetros são ideais para a atividade de animais e plantas e, portanto, para a reprodução.

Segundo a teoria, quanto mais tempo duram a temperatura e a umidade favoráveis para o desenvolvimento dos organismos em uma região – a chamada janela reprodutiva –, mais tempo há para disputas entre machos pelo acesso às fêmeas e para que elas escolham seus parceiros: a seleção sexual. No caso dos opiliões, aracnídeos menos famosos que as aranhas e objeto de estudo de Machado, esse alto grau de seleção é visível em alguns comportamentos que os machos exibem ao defender um território – eles lutam por áreas com atrativos para a fêmea, como água, alimento ou abrigo. Também pode ser observado em características físicas apresentadas por eles, como “armas” (espinhos nas patas). Se o clima é imprevisível, a tendência é que os seres vivos se reproduzam em poucos dias, já que o intervalo de temperatura e umidade adequadas (sem neve ou com chuva) é tão curto que a janela reprodutiva não daria margem para tanta escolha e os animais seriam menos briguentos e chamativos.

“Há uma visão simplista de que os trópicos são uma região homogênea, com temperaturas quentes e bastante chuva o ano inteiro”, diz Machado, estudioso dos opiliões (ver Pesquisa Fapesp nº 144). Outra simplificação frequente, diz ele, é a que define o clima temperado basicamente como tudo que não é tropical. No entanto, as regiões tropical e temperada abrangem uma grande variedade de condições ambientais, como climas quentes e secos em áreas desérticas e frios e úmidos nas florestas boreais. Não se leva em conta, por exemplo, que tanto na Caatinga quanto nos Alpes o período adequado à reprodução, em termos de temperatura e umidade, é curto e, em alguns casos, imprevisível.

Para testar a hipótese de que as estratégias reprodutivas variam de acordo com as condições de temperatura e umidade, um grupo liderado por Machado analisou cerca de 100 espécies de opilião distribuídas em cinco continentes, que vivem sob condições climáticas distintas e apresentam comportamentos sexuais variados. Na maior parte delas os machos disputam o acesso às fêmeas em um sistema chamado de scramble competition (competição desordenada, numa tradução livre). Na competição desordenada, machos e fêmeas se tornam férteis ao mesmo tempo e saem em busca de parceiros antes que o tempo fique seco ou frio demais. Segundo a teoria de Machado e colegas, essa estratégia seria observada quando a janela reprodutiva é tão curta que não há tempo para proteger um território onde a fêmea possa pôr os ovos com segurança.

O levantamento, prestes a ser publicado em volume especial da American Naturalist, inclui dados de estudos já publicados e outros coletados pela equipe de Machado ou de seus colaboradores. Os pesquisadores tabularam informações sobre comportamento e morfologia (presença ou não de “armas” e tamanho do macho em relação à fêmea), assim como características das regiões onde vivem, como temperatura e pluviosidade. O cruzamento de dados corroborou as previsões de que a estabilidade climática favorece a exuberância reprodutiva. “É claro que não é só a seleção sexual que molda as espécies”, explica Machado. “Existem outros fatores como a seleção natural, mas comprovamos que quanto maior a janela reprodutiva mais competição por fêmeas existe”, diz, diferenciando a força evolutiva que se baseia na escolha de parceiros daquela mais famosa, em que o central na capacidade de deixar descendentes é a sobrevivência. No caso dos opiliões, a janela pode durar de um mês, em climas muito frios, a um ano nas espécies que habitam florestas tropicais.

Nos sapos Rhinella crucifer a fêmea (vermelha) é maior do que o macho

Nos sapos Rhinella crucifer a fêmea (vermelha) é maior do que o macho

Prova de resistência
Um dos objetivos do grupo é que outros pesquisadores testem a teoria com outras espécies de animais e até mesmo plantas. O artigo sobre os opiliões é um desdobramento do livro Sexual selection: Perspectives and models from the Neotropics (Academic Press), editado em 2013 por Machado e pela bióloga Regina Macedo, da Universidade de Brasília (UnB), onde foi apresentada uma primeira versão da ideia. No ano seguinte à publicação, os ecólogos Paulo Enrique Cardoso Peixoto, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e Luis Mendoza-Cuenca, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, no México, dois dos colaboradores do livro, testaram algumas hipóteses derivadas da teoria em trabalho com borboletas depois publicado na Behavioural Processes e assinado ainda por Anderson Matos Medina, doutorando em ecologia da Universidade Federal de Goiás.

Com dados compilados de 30 espécies de borboleta, eles avaliaram o tempo gasto pelos machos em lutas pela posse de territórios que são visitados pelas fêmeas na época de reprodução. A previsão era de que em locais com uma janela reprodutiva grande os machos brigariam mais intensamente, enquanto onde as janelas são curtas, os conflitos seriam menos intensos. Em grande parte, as previsões se confirmaram, exceto para borboletas de climas intermediários, com janelas reprodutivas por volta de seis meses: ali, os machos investem tão pouco nas batalhas aéreas quanto os de hábitats de clima instável, onde a janela reprodutiva é pequena. “Isso mostra que há outros fatores agindo além da janela reprodutiva, que podemos investigar a partir de agora”, diz Peixoto.

As brigas de borboletas são provas de resistência nas quais um macho voa em volta do outro até que um se canse e desista. Na espécie Celaenorrhinus approximatus, esses embates foram observados na Costa Rica e duram em média 46 segundos. Já a Lycaena hippothoe, habitante de climas secos e frios nos Alpes do norte da Itália, não pode se dar ao luxo de gastar tempo e energia em longas batalhas aéreas e reduz esses embates a três ou quatro segundos. Uma diferença marcante que corrobora o que foi observado nos opiliões. “O importante é que demonstramos que a teoria pode ser usada para outras espécies territoriais”, avalia o pesquisador.

Seleção tropical
Por enquanto, os trabalhos usando a nova teoria, que leva em conta uma variação mais detalhada em fatores climáticos, e não apenas a distinção entre regiões de clima temperado e tropical, ainda estão focados em artrópodes. O modelo se aplica parcialmente aos anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas), de acordo com o zoólogo Célio Haddad, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. Em áreas de umidade prolongada, ele explica, há proporcionalmente mais espécies territoriais, com padrão temporal reprodutivo prolongado e machos com tamanho corpóreo maior (que aumenta a eficiência nos combates com outros machos). No entanto, ele não acredita que esse dimorfismo ou outros como cor, presença de calos, espinhos e de saco vocal exteriorizado sejam mais evidentes nessas espécies.

“Pelo contrário, em ambientes onde há menos chuva e umidade há geralmente forte dimorfismo em tamanho. Nessas condições, as fêmeas precisam transportar grandes quantidades de ovócitos e, por isso, são maiores em relação aos machos. Além disso, os machos costumam desenvolver calosidades nas patas que aderem firmemente às fêmeas e dificultam que competidores as roubem”, explica. Ou seja, nos anfíbios existe, sim, mais defesa de território pelos machos nas áreas úmidas. Mas o dimorfismo sexual também está sujeito a outros fatores, também ligados à seleção natural.

Uma imagem, três versões: uacari visto pelo olho humano (esq.), por fêmeas (visão tricromática) e por machos de uacari (dicromática)

MARK BOWLER/ PROCEEDINGS B Uma imagem, três versões: uacari visto pelo olho humano (esq.), por fêmeas (visão tricromática) e por machos de uacari (dicromática)MARK BOWLER/ PROCEEDINGS B

Fêmeas de visão
Capacidade de ver cores pode estar associada às seleções sexual e natural no macaco uacari

O rosto vermelho carmesim e sem pelos rendeu ao uacari (Cacajao calvus) o apelido de macaco-inglês, em alusão às queimaduras em turistas europeus que esquecem de usar protetor solar. Para as fêmeas da espécie amazônica, porém, o tom de vermelho pode ajudar a decidir se um macho seria um pai adequado para seus filhotes – uma ferramenta da seleção sexual, embora não tenha sido analisada com relação ao clima. Como esses macacos estão sujeitos a doenças como a malária, que os torna pálidos, o vermelho é um indicador de saúde estampado no rosto. Mas nem todas as fêmeas conseguem enxergá-lo. “Nós analisamos pela primeira vez nesse gênero um gene conhecido em outros primatas por produzir um pigmento visual, a opsina”, conta o biólogo Josmael Corso, que realizou a pesquisa durante o doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação dos geneticistas Thales de Freitas e Nelson Fagundes.

Como está no cromossomo X, que os machos só têm um e as fêmeas, dois, todos eles têm visão dicromática (que não diferencia tons de vermelho), enquanto elas podem ter duas cópias do gene e assim desenvolver a visão tricromática (colorida, como a dos seres humanos). No estudo, publicado em abril na revista Proceedings of the Royal Society B, ele levanta a hipótese de que no caso do uacari ocorre uma seleção balanceadora. A visão tricromática de algumas fêmeas pode servir para selecionar machos saudáveis, mas as que têm apenas uma cópia do gene e enxergam uma diversidade menor de cores teriam outras vantagens. “Experimentos com outros primatas mostram que a visão dicromática é vantajosa para distinguir alimentos com coloração muito parecida, como folhas e alguns frutos”, diz Corso. A conclusão do estudo é de que a seleção natural seria responsável por manter nessas populações tanto as macacas que sabem selecionar machos como as que são boas em encontrar alimentos.

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