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ASTRONOMIA

Duros e sem vida

Mesmo parecidos com a Terra, alguns exoplanetas rochosos teriam crostas rígidas demais para serem habitáveis

Podcast: Diogo Souto

 
     
A ilustração destas páginas mostra como um artista imaginou o exoplaneta Kepler-186f em abril de 2014. Naquela época, astrônomos confirmaram que esse planeta distante 500 anos-luz do Sistema Solar tinha massa e tamanho próximos aos da Terra. Observações feitas pelo telescópio espacial Kepler também sugeriram que a distância entre o tal planeta e sua estrela, a anã vermelha Kepler-186, permitiria a existência de água em estado líquido. Por essa razão, os pesquisadores anunciaram o Kepler-186f como o primeiro exoplaneta rochoso descoberto na zona habitável de sua estrela. Inspirada na descoberta, a arte mostra a superfície do Kepler-186f parecida com a da Terra, com continentes e oceanos, uma paisagem propícia ao desenvolvimento de formas de vida semelhantes às de nosso planeta.

Novas observações da estrela Kepler-186, porém, sugerem que a superfície do Kepler-186f pode ser muito diferente, bem menos favorável à existência de vida – ao menos, à vida como se conhece. Em parceria com uma equipe internacional de pesquisadores, a astrônoma Kátia Cunha, do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, e seu aluno de doutorado Diogo Souto realizaram a primeira análise detalhada da composição química da estrela Kepler-186. O estudo foi publicado em fevereiro deste ano na revista Astrophysical Journal e apresenta também a análise química de outra anã vermelha, a Kepler-138, orbitada pelo menor exoplaneta rochoso já descoberto, do tamanho de Marte. Essa foi a primeira vez que astrônomos conseguiram medir a abundância química de anãs vermelhas com precisão similar à que se consegue ao observar estrelas semelhantes ao Sol.

A análise da luz emitida por uma estrela, o chamado espectro da estrela, permite em geral conhecer a abundância dos elementos químicos que a compõem. Souto explica, porém, que as temperaturas na atmosfera das anãs vermelhas são baixas o suficiente para permitir a formação de moléculas de água, óxido de titânio e de óxido de vanádio. Quando essas estrelas são observadas na faixa da luz visível, o óxido de titânio mascara a presença de vários elementos químicos. Souto demonstrou, no entanto, que, no infravermelho, é possível identificar e medir a abundância de 13 elementos químicos em anãs vermelhas.

Souto e Cunha usaram dados obtidos com o Apogee, espectrógrafo de alta precisão instalado em um telescópio no estado do Novo México, nos Estados Unidos, para estimar a concentração de diferentes elementos químicos nas duas estrelas e concluíram que o Kepler-186f contém mais silício do que o Sol. Esse excesso de silício faria com que os exoplanetas ao redor da anã vermelha fossem feitos de rochas tão duras que impediriam a formação de placas tectônicas na crosta.

Sem placas tectônicas, não haveria processos de reciclagem de gases, líquidos e rochas que, na Terra, ao longo de bilhões de anos, determinaram a composição química da atmosfera, dos continentes e dos oceanos. Sem oceanos ou continentes constantemente alterados pelo movimento de placas tectônicas, o Kepler-186f teria uma superfície relativamente imutável, possivelmente deserta.

Já a outra anã vermelha, a Kepler-138, apresentou uma concentração de silício próxima à solar. Seu pequeno exoplaneta rochoso, portanto, teria uma composição favorável à formação de placas tectônicas. Mas ele está próximo demais da estrela para ter água líquida na superfície.

Representação artística da anã vermelha Kepler-138 e seu exoplaneta rochoso, menor do que Marte

Imagem: Danielle Futselaar / SETI Institute | ilustração: Robin Dienel / Carnegie DTM Representação artística da anã vermelha Kepler-138 e seu exoplaneta rochoso, menor do que MarteImagem: Danielle Futselaar / SETI Institute | ilustração: Robin Dienel / Carnegie DTM

“Estudos como esse são de grande importância para a astronomia de exoplanetas”, diz Souto. “Uma missão futura da Nasa, a Tess, deve observar preferencialmente as estrelas de baixa massa, as mais abundantes na galáxia, e permitir o estudo detalhado da composição química delas, algo importante para conhecer as propriedades de seus exoplanetas.”

Ferro, Oxigênio e oceanos
As conclusões de Souto, Cunha e seus colaboradores sobre a superfície do Kepler-186f resultam da aplicação de um modelo matemático desenvolvido em 2016 pelos geofísicos Cayman Unterborn, da Universidade Estadual do Arizona, e Wendy Panero, da Universidade Estadual de Ohio, ambas nos Estados Unidos. O modelo permite estimar, a partir de observações astronômicas da composição química de uma estrela, como seria a composição mineral dos planetas rochosos formados ao redor dela. “A composição da estrela serve de referência para as possíveis composições de seus planetas”, diz Unterborn.

Unterborn e Panero basearam o modelo naquilo que os astrônomos e os geofísicos sabem sobre a composição do Sol e a formação do Sistema Solar. Os planetas se formaram a partir de um disco de gás e poeira, feito do mesmo material primordial que deu origem ao Sol. Uma série de colisões ocorridas durante centenas de milhões de anos entre o material do disco levou esses grãos de poeira a se aglutinarem em corpos cada vez maiores até produzirem os planetas rochosos. É esse processo de formação planetária que o modelo dos geofísicos norte-americanos simula de maneira simplificada para calcular a composição mineral dos exoplanetas a partir da constituição química de suas estrelas.

Uma das principais conclusões do modelo é que a abundância do elemento químico oxigênio no disco protoplanetário pode restringir o tamanho dos núcleos dos planetas. Um planeta rochoso como a Terra possui um núcleo de ferro metálico, que é envolto por um manto espesso e, este, por sua vez, coberto por uma fina crosta que forma a superfície terrestre. “No manto, o oxigênio reage com o ferro e cria óxidos leves demais para afundarem até o centro do planeta”, explica Unterborn. “Em vez disso, esses óxidos permanecem no manto e influenciam a composição dos minerais.” A quantidade de oxigênio também controla a presença de água no manto e a chance de o planeta ter oceanos.

Enquanto o núcleo é feito quase exclusivamente de ferro, o manto e a crosta são compostos de minerais contendo vários elementos químicos, sendo o principal o silício. “Ao estimarmos a composição química da porção do planeta exterior ao núcleo, rica em silício, conseguimos modelar o processo que aquece as rochas do manto e forma a crosta”, explica Unterborn. “Se parte da crosta for composta de material mais denso do que o do manto abaixo dela, então o planeta pode desenvolver uma dinâmica de placas tectônicas.”

Para testar esse modelo com observações astronômicas, Unterborn e Panero trabalham desde meados do ano passado com Johanna Teske, do Instituto Carnegie, Estados Unidos, e outros astrônomos que utilizam o espectrógrafo Apogee, montado no telescópio da Fundação Sloan no Observatório Apache Point, no Novo México. O Apogee já analisou as linhas espectrais na faixa de frequências do infravermelho de aproximadamente 200 mil estrelas da Via Láctea. O objetivo principal é usar a composição química das estrelas para entender a história da formação da galáxia (ver Pesquisa FAPESP nº 232).

Algumas das estrelas observadas pelo Apogee também foram alvo do telescópio espacial Kepler, projetado para buscar sinais da presença de exoplanetas em variações na intensidade do brilho das estrelas, e são agora investigadas por Johanna e seus colaboradores. Eles estão aplicando o modelo de Unterborn e Panero para deduzir as propriedades dos exoplanetas rochosos identificados pelo Kepler ao redor dessas estrelas.

054-057_Exoplanetas_254-info1O silício e os continentes
No encontro da Sociedade Astronômica Americana realizado em janeiro deste ano no Texas, a equipe apresentou os primeiros resultados da avaliação da composição química dos planetas que orbitam duas estrelas semelhantes ao Sol, uma anã amarela. Os pesquisadores usaram a diferença entre a química da Kepler-102 e a da Kepler-407 para exemplificar como a abundância de silício de uma estrela é um indicador forte dos minerais encontrados em maior quantidade nos planetas rochosos que a orbitam.

No caso da Kepler-102, cuja concentração de silício é semelhante à do Sol, os pesquisadores preveem que seus exoplanetas rochosos devem ter manto e crosta ricos em minerais do grupo das olivinas, igualmente abundantes no manto e na crosta terrestres. Já no caso da Kepler-407, com concentração de silício muito superior à solar, o seu exoplaneta com dimensões semelhantes às da Terra, o Kepler-407b, deve ter crosta rica em diópsido e manto com elevada abundância de granada, minerais mais duros e densos do que as olivinas, os mais abundantes na Terra. Essa combinação, segundo Unterborn, impediria a formação de placas tectônicas.

Por ter minerais mais densos, o Kepler-407b pode apresentar uma massa maior do que a terrestre, embora seu raio seja semelhante ao da Terra. Futuras observações do planeta, a serem feitas com uma nova geração de telescópios mais potentes, podem confirmar ou refutar essa previsão. “Por enquanto, as incertezas nas medidas ainda são um pouco grandes”, diz Unterborn.

Como mostra o trabalho de Souto, Cunha e colaboradores, o modelo de Unterborn e Panero também pode ser usado para estimar a composição de exoplanetas em outros tipos de estrelas, e não apenas nas anãs amarelas como o Sol. De todas, as mais importantes são as anãs vermelhas, que representam 70% das estrelas da Via Láctea – as anãs amarelas somam de 7% a 8% das estrelas da galáxia. Por serem pequenas, com menos da metade do tamanho do Sol, as anãs vermelhas facilitam a detecção dos exoplanetas que passam em sua frente. Como essas estrelas são menores, os planetas, ao atravessarem o caminho delas, causam uma redução maior e mais facilmente detectável na luz que chega à Terra.

Este ano, astrônomos que trabalham com os telescópios espaciais Spitzer e Hubble, da Nasa, e o telescópio terrestre Trappist, do Observatório Europeu do Sul, descobriram um número recorde de sete exoplanetas ao redor de uma anã vermelha, a Trappist-1. Esses planetas têm massa e tamanho semelhantes aos da Terra e três se encontram na zona habitável da estrela. “A Trappist-1 está no hemisfério Sul e só conseguiremos observá-la quando o instrumento Apogee-2 estiver instalado no Observatório Las Campanas, no Chile”, conta Souto. “Fizemos um pedido para observá-la antes de novembro e esperamos ter algum resultado sobre a sua composição química até o fim do ano.”

Artigo científico
SOUTO, D. et al. Chemical abundances of M-dwarfs from the Apogee survey. I. The exoplanet hosting stars Kepler-138 and Kepler-186. The Astrophysical Journal. 835 (2). 1º fev. 2017.

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