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Pesquisa Fapesp 20 Anos

O desafio de gerar bioenergia

Revista cobriu o esforço da ciência nacional para viabilizar o uso de subprodutos do setor sucroalcooleiro para a produção de eletricidade e etanol 2G

Terreno preparado para o plantio de cana, contendo restos de palha; em segundo plano, canavial

Léo Ramos Chaves

A remoção indiscriminada da palha da cana-de-açúcar para a produção de bioeletricidade e etanol celulósico ou de segunda geração (2G) traz riscos, alertam estudos publicados recentemente na revista Bioenergy Research. Em um dos artigos, os pesquisadores concluíram que a retirada da palha que permanece no campo após a colheita da cana pode elevar a demanda do solo por fertilizante. “A principal novidade do trabalho foi mensurar a quantidade de nutrientes presente nas folhas da cana e calcular a necessidade de reposição de fertilizante NPK [composto por nitrogênio, fósforo e potássio] em função do volume de palha removido”, explica o engenheiro-agrônomo Maurício Roberto Cherubin, do Departamento de Ciência do Solo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba.

O estudo, em parceria com cientistas do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP e do Laboratório Nacional de Biorrenováveis do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (LNBR-CNPEM), mostrou que a exportação potencial de nutrientes contidos na palha por meio da retirada do material acarreta um custo médio adicional de fertilizantes de US$ 90 (cerca de R$ 380) por hectare, valor que pode variar conforme flutuações do preço do produto e negociações das empresas.

Foram testados diversos cenários, que consideraram os componentes da palha (folhas verdes ou secas) e diferentes intensidades de remoção da biomassa (sem retirada; baixa remoção, 25% do total; moderada, 50%; completa, 100%). A partir deles, os pesquisadores estimaram o aumento do consumo de fertilizante NPK pela cultura canavieira na região Centro-Sul do país, que responde por 90% da produção nacional. As projeções indicam que, mesmo sem remoção da palha, a demanda por fertilizante NPK deverá crescer 80% até 2050, em função da evolução da área plantada e da elevação nas doses aplicadas pelos produtores. No caso de retirada total do material (cenário extremo, mas pouco provável), o estudo apontou que o consumo de fertilizante poderá ser duplicado, em comparação ao manejo sem remoção. O incremento adicional nos cenários intermediários (25% e 50% de remoção), mais próximos à realidade das usinas, poderá atingir 14% e 28%, respectivamente.

“Um dos principais benefícios da palha, no curto prazo, é manter a água no solo. Ela funciona como uma camada protetora, evitando as perdas de água por evaporação e protegendo o solo contra processos erosivos. Ao mesmo tempo, colabora com a ciclagem de nutrientes e com a incorporação de carbono ao solo”, diz o agrônomo João Luís Nunes Carvalho, pesquisador do LNBR e coautor do artigo. Nesse processo, os nutrientes presentes no solo são absorvidos e acumulados na planta durante o seu crescimento para depois retornarem ao solo quando o vegetal morre e se decompõe. “Os resultados desse estudo e de outros publicados nos últimos meses evidenciam que a palha tem dupla aptidão, pois tem um bom potencial para ser usada na produção de bioenergia [etanol 2G e bioeletricidade] e é essencial para a sustentabilidade do solo. Cabe aos agricultores decidir o caminho mais sustentável para uso dessa biomassa.”

Carvalho integra no LNBR a equipe responsável pelo Projeto Sucre (Sugarcane Renewable Electricity), que tem como meta aumentar a produção de eletricidade com baixa emissão de gases de efeito estufa na indústria canavieira, por meio do uso da palha. “O manejo adequado dessa biomassa é essencial para não causar impactos negativos na lavoura”, diz o pesquisador, destacando que o Brasil produz 80 milhões de toneladas de palha por ano. Segundo ele, 33% da energia contida na cana está concentrada na palha, enquanto outros 33% estão no bagaço e os 33% restantes no caldo usado para produção de açúcar e álcool. Iniciado em 2015, o Projeto Sucre conta com recursos das Nações Unidas e será encerrado no ano que vem.

Eduardo Cesar Colheitadeira de cana no interior paulista: o colmo é armazenado no caminhão enquanto a palha é lançada de volta ao campoEduardo Cesar

Primeiras pesquisas
Os estudos voltados ao reaproveitamento da palha e do bagaço da cana-de-açúcar para geração de bioenergia remontam a mais de três décadas. “Três instituições de pesquisa contribuíram de forma decisiva para que o país desenvolvesse a tecnologia e os métodos necessários para gerar eletricidade e etanol 2G a partir dos subprodutos do setor sucroenergético: a Esalq, o Centro de Tecnologia Canavieira [CTC] da Copersucar [empresa comercializadora global de açúcar e etanol] e o Instituto Agronômico [IAC], de Campinas”, destaca o agrônomo Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, do Departamento de Ciência do Solo da Esalq.

Do lado do setor produtivo, segundo Zilmar José de Souza, gerente de bioeletricidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), o pioneirismo coube às usinas São Francisco, em Sertãozinho, São Martinho, em Pradópolis, e Vale do Rosário, em Morro Agudo, todas na região de Ribeirão Preto (SP). “Em 1987, elas foram as primeiras a exportar excedentes de energia para a rede elétrica nacional. Naquela época, usavam apenas o bagaço de cana para gerar energia, por meio da queima em caldeiras”, conta Souza. “Hoje, as 369 usinas em operação no país produzem eletricidade para consumo próprio, e cerca de 200 vendem energia para a rede”, afirma.

O sistema de geração de energia com o bagaço – e também com a palha – é relativamente simples. Primeiro, o material é queimado numa caldeira, produzindo vapor de alta pressão. Em seguida, esse vapor aciona uma turbina que, por sua vez, faz funcionar um gerador elétrico, produzindo eletricidade. O vapor à baixa pressão que deixa a turbina ainda possui energia térmica, que é utilizada em vários processos como aquecimento e evaporação do caldo de cana para produção de açúcar. A produção simultânea de energia elétrica e térmica no processo industrial é chamada de cogeração.

Nos últimos 20 anos, Pesquisa FAPESP acompanhou, por meio de diversas reportagens, a evolução dos estudos que colocaram o Brasil na vanguarda da geração de bioenergia a partir de resíduos do setor sucroenergético. Em 2001, o pesquisador Isaías de Carvalho Macedo, então assessor para a área de energia da Reitoria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vaticinava que “o bagaço e a palha da cana podem transformar-se, em médio prazo, em importantes componentes da matriz energética do Brasil”. Hoje, a biomassa da cana responde por cerca de 4% do consumo de eletricidade no país.

Reprodução As reportagens de capa das edições nos 122 (à esq.) e 149 de Pesquisa FAPESP tiveram como foco a geração de bioenergiaReprodução

Etanol 2G
Naquela época, as pesquisas visando à produção de etanol de segunda geração já avançavam. Em 2002, a Copersucar e o Grupo Dedini, um dos principais fabricantes de máquinas e equipamentos para o setor sucroalcooleiro, apresentaram uma tecnologia, batizada de Dedini Hidrólise Rápida (DHR), que mostrava ser possível produzir etanol a partir da celulose contida no bagaço da cana. O processo foi desenvolvido com apoio da FAPESP.

Em 2008, a pesquisa brasileira voltada ao etanol 2G ganhou novo impulso com a criação do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), cujo objetivo era articular atividades de pesquisa e desenvolvimento usando laboratórios acadêmicos e industriais para promover o avanço do conhecimento e sua aplicação em áreas relacionadas à produção de bioenergia. Na ocasião de lançamento do Bioen, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, destacou sua importância para estimular o desenvolvimento do etanol de segunda geração, alvo de pesquisas em diversos países do mundo. Desde 1997, 146 auxílios à pesquisa ou bolsas relacionadas ao etanol de segunda geração foram financiados pela Fundação.

Hoje, a produção do etanol 2G é realidade no país, embora não na dimensão esperada. Líder nacional na fabricação de açúcar, etanol e bioenergia, a Raízen, controlada pela empresa de infraestrutura e energia Cosan e pela petrolífera Shell, processa há cinco anos etanol celulósico – assim chamado por ser produzido a partir da celulose da palha e do bagaço, e não da sacarose do caldo da cana, como o etanol convencional. Na última safra, 2018/2019, a Raízen colocou no mercado 16,5 milhões de litros do produto, volume ainda muito reduzido quando comparado aos 2,5 bilhões de litros de etanol produzidos pela companhia. A capacidade instalada da planta da Raízen em Piracicaba é de 40 milhões de litros.

Outra empresa que investe no etanol 2G é a paulista GranBio, dona da usina BioFlex, em São Miguel Paulista, em Alagoas. A unidade começou a operar em 2014, mas precisou interromper a produção dois anos depois por problemas no pré-tratamento da carga de cana. Em 2017, último dado disponível, produziu 28 milhões de litros de etanol 2G, dos quais 5 milhões foram exportados para os Estados Unidos. Raízen e GranBio foram procuradas pela reportagem para comentar os números acima, mas não se manifestaram.

Especialistas do setor sucroenergético apontam que o caminho para a implantação dessa tecnologia tem sido mais longo e dispendioso do que o estimado. Um dos desafios é melhorar a eficiência das enzimas que convertem polímeros de celulose e hemicelulose contidos no bagaço e na palha em açúcares. Outro é aperfeiçoar algumas etapas do processo produtivo, notadamente a colheita da palha do campo, que, dependendo de como é feita, chega à indústria misturada à areia, podendo comprometer o funcionamento do maquinário da usina.

Projetos
Implicações da expansão e intensificação do cultivo da cana-de-açúcar nos serviços ecossistêmicos do solo (nº 18/09845-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Maurício Cherubin (USP); Investimento R$ 167.967,48.

Há outros 38 auxílios à pesquisa e 105 bolsas concedidas pela FAPESP sobre etanol de segunda geração.

Artigo científico
CHERUBIN, M.R. et al. Sugarcane straw removal: implications to soil fertility and fertilizer demand in Brazil. Bioenergy Research. 1º ago. 2019.

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