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Educação científica

Soluções criativas

Concurso premia vídeos de alunos de escolas públicas de São Paulo que ajudam a resolver problemas da comunidade

Guilherme Vieira, aluno da Escola Ângelo Scarabucci, de Franca, mostra o capacete sustentável feito de resíduos da indústria do calçado

Isabella Rabello

Em uma tarde de setembro de 2019, alguns moradores do bairro Jardim Paulistano, na cidade de Franca, interior paulista, pararam para assistir a um estudante cair de uma bicicleta e simular um ferimento, enquanto um grupo de colegas, acompanhado de um professor, filmava a cena. Pouco mais de um mês depois, o vídeo resultante daquele trabalho seria o principal premiado no concurso Ciência para Todos, promovido pela Fundação Roberto Marinho/Canal Futura e FAPESP, com apoio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. No vídeo intitulado “Proteção dos pés para a cabeça”, alunos do ensino médio da Escola Estadual Ângelo Scarabucci selecionaram um problema – o costume dos ciclistas da cidade de não usarem equipamentos de segurança – e propuseram uma solução: um protótipo de um capacete sustentável, feito de resíduos da indústria de calçados, tradicional atividade econômica da cidade.

Henrique Pereira, professor de biologia e orientador da equipe, explica que o roteiro resultou de um trabalho sobre iniciação científica proposto no início do ano. “Os alunos foram instigados a apresentar soluções criativas para problemas do cotidiano. E, entre eles, estava a falta de equipamento de segurança dos ciclistas”, conta Pereira. “Para obter dados concretos, fizemos um questionário com 150 funcionários de uma fábrica de calçados. A análise das respostas mostrou que 20% deles usam a bicicleta como meio de transporte e que nenhum utiliza equipamento de segurança. Quase metade desses ciclistas relatou já ter ficado afastada do trabalho em virtude de algum tipo de acidente ao usar a bicicleta”, informa o professor.

O passo seguinte foi projetar o capacete sustentável para ciclistas. E por que não aproveitar os materiais descartados pela própria fábrica cujos funcionários foram entrevistados? “Tivemos que pesquisar sobre como os capacetes tradicionais eram feitos”, lembra Karoline Dias, de 16 anos, estudante da 2ª série do ensino médio da escola e integrante da equipe vencedora, formada por mais quatro alunos. “Depois, procuramos na nossa cidade qual material poderíamos usar para a construção de um capacete”, conta.

O protótipo foi elaborado com vários tipos de resíduos: balde de polipropileno, usado na fábrica para colocar graxa e tinta; plastisol, utilizado para fazer o solado dos calçados; pó resultante do processo de raspagem de couro; além de retalhos de couro de boi, de carneiro e de forro de sapato. A equipe foi premiada com tablets e pôde escolher um centro de pesquisa, indicado pela FAPESP, para visitar. Além do trabalho vencedor, a escola Ângelo Scarabucci tinha outros quatro vídeos concorrendo no Ciência para Todos. O objetivo da iniciativa foi instigar estudantes de ensino médio da rede estadual de São Paulo a refletir e a pesquisar sobre um problema local, dentro do eixo “Natureza e Sociedade”, formulando hipóteses e apresentando soluções. O método científico deveria ser documentado em vídeos de até 7 minutos.

Segundo Pereira, dois fatores contribuíram para que a escola de Franca tivesse projetos suficientes para concorrer com vários vídeos: o ensino em período integral e a divulgação no ambiente escolar das experiências de outros alunos na última Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), que todos os anos reúne em São Paulo projetos de estudantes do ensino fundamental, médio e técnico de colégios públicos e privados do país. “O período integral faz diferença porque temos mais tempo para trabalhar com os alunos e desenvolver conceitos.”

Ao todo, o Ciência para Todos recebeu 106 vídeos. Desse total, 47 preencheram todos os requisitos de inscrição e foram avaliados por uma banca com representantes das instituições idealizadoras da iniciativa. Cinco produções de escolas distintas – quatro delas com ensino integral – foram premiadas. Além do vencedor, quatro equipes formadas por até cinco alunos e um professor foram classificadas como finalistas. O foco do concurso não estava na estética dos vídeos, mas na investigação científica e no projeto criado a partir do problema que os alunos selecionaram. Os cinco vídeos começaram a ser exibidos no Canal Futura em dezembro de 2019 e ficarão disponíveis no futuraplay.org.br.

Segundo a gerente de Desenvolvimento Institucional da Fundação Roberto Marinho, Mônica Pinto, as experiências apresentadas pelos estudantes surpreenderam os organizadores. “Os projetos são de altíssima qualidade”, avalia. Haroldo Corrêa da Rocha, secretário-executivo da Secretaria Estadual de Educação, destaca que o formato escolhido procurou utilizar uma linguagem que despertasse o interesse dos alunos. “Precisamos começar a sensibilizar os jovens na educação básica para termos mais cientistas no país. Com os vídeos, estamos utilizando uma linguagem de comunicação à qual os jovens estão conectados.”

Léo Ramos Chaves Alunas premiadas visitaram o Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-tronco da USPLéo Ramos Chaves

Aquaponia e horta suspensa
A Escola Estadual Coronel Francisco Schmidt, da cidade de Pereira Barreto (SP), foi uma das premiadas, com o vídeo “Biotecnologia em aquaponia em uma escola de ensino integral paulista”. A aquaponia é um sistema fechado que combina criação de peixes com o cultivo de alimentos, como hortaliças. Para a criação do sistema, a equipe recebeu doações de peixes, canos, caixas e mudas de alface. No sistema, as hortaliças absorvem nutrientes dissolvidos na água por meio das fezes de tilápias, que após o ciclo proporcionam água limpa.

“Nós estudamos, lemos artigos, praticamos, construímos esse sistema todo e percebemos que nada teria acontecido sem que a gente perseverasse. Deu errado uma vez. Os peixes morreram, mas não desistimos”, conta a estudante Luana Assumpção Santos, de 17 anos, do terceiro ano do ensino médio. A falha na primeira tentativa foi causada pela temperatura. “A tilápia não sobrevive abaixo de 12 graus. Aqui é quente, mas em julho fez muito frio, chegando a 7 graus na madrugada”, explica a professora de biologia Elda de Aguiar Gama, orientadora da equipe. O problema foi corrigido protegendo o sistema do frio. O resultado do projeto são plantas livres de agrotóxicos para serem consumidas na merenda.

Na escola de ensino médio em tempo integral Dr. Coriolano Burgos, de Amparo (SP), os alunos também desenvolveram um modo de cultivar hortaliças livres de agrotóxicos. Aproveitaram cerca de 70 garrafas pet para criar uma horta suspensa. A escola foi construída sobre um terreno doado há mais de 80 anos que, no passado, abrigou um cemitério. “Não achamos apropriado usar a terra para plantar, pelo risco de contaminação em função da decomposição. Então, partimos para as hortas suspensas”, conta Giovanna dos Santos Ferreira, de 16 anos, estudante do segundo ano e integrante da equipe finalista, selecionada com o vídeo “Ciência Integração-Cemitério”. Outros alunos se mobilizaram para ajudar a montar e cuidar da horta. “Apesar de ser um grupo de cinco estudantes, toda a escola se envolveu”, afirma a professora de biologia Tamires Bianchi Darioli, orientadora do projeto.

Reproduções Imagens do vídeo “Proteção dos pés para a cabeça”, vencedor do concurso, realizado por alunos de escola estadual em FrancaReproduções

Conceitos científicos e a violência
Outros dois trabalhos premiados no concurso trataram de temas que envolvem debates relevantes. Um grupo de quatro alunas da escola estadual Zilda Prado Paulovich, de Nova Independência (SP), decidiu avaliar o conhecimento dos colegas sobre conceitos científicos e narrou a experiência no vídeo “A concepção dos adolescentes sobre ciência: conhecimento científico ou senso comum?”. “Alguns assuntos embasados pela ciência e trabalhados em aula estavam sendo questionados por alguns alunos, com argumentos calcados no senso comum”, diz a professora de biologia Jumma Miranda Araújo Chagas, orientadora da equipe. Daí, surgiu a ideia do projeto.

O grupo elaborou um questionário e coletou respostas de 106 alunos dos três anos do ensino médio. Depois, foi feita uma intervenção sobre os assuntos selecionados: método científico, origem da vida, evolução dos seres vivos, aquecimento global e vacinas. Posteriormente, o questionário foi reaplicado. O grupo avaliou desde conhecimento sobre os temas até o hábito de checar as fontes antes de compartilhar uma informação. “Decidimos mostrar aos alunos a diferença entre senso comum e conhecimento científico”, conta Rafaela Rodrigues Carmona, de 16 anos, que está no segundo ano. Na primeira etapa do questionário, apenas 30% dos alunos afirmaram sempre avaliar as fontes de informação das notícias e demais textos. Após a intervenção, o número subiu para 70%.

Na escola estadual Benedita Pinto Ferreira, de Caraguatatuba (SP), o grupo premiado trouxe como tema a violência doméstica e produziu um vídeo de ficção baseado em fatos reais. “Estamos em uma região carente onde há pessoas que sofrem com a violência doméstica”, conta o professor de arte José Iraedson de Oliveira, orientador da equipe. “Decidimos ajudar a conscientizar as mulheres”, conta Ester Amaral, de 17 anos, que está no primeiro ano do ensino médio.

Como parte da premiação, as cinco equipes puderam visitar laboratórios e centros de pesquisa. O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), foi a escolha dos alunos de Franca e de Caraguatatuba. Lá, puderam conhecer o projeto Sirius, onde está sendo construída uma das maiores fontes de luz síncrotron do planeta. “Fomos ver o acelerador de partículas. Quero ser engenheira e trabalhar com robótica e, depois da visita, decidi que quero fazer um estágio lá no Sirius. Gosto muito de matemática”, explica Ester Amaral. O professor Oliveira avalia a etapa da visita como fundamental para o desenvolvimento dos alunos. “Essas visitas dão um sentido para o projeto de vida deles.” A equipe de Amparo escolheu visitar o Instituto de Ciências Biomédicas da USP.  Já os estudantes de Pereira Barreto e de Nova Independência optaram pelo Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-tronco da Universidade de São Paulo (USP). “Eu quero ser bióloga e todos os pesquisadores que estavam ali também eram biólogos, o que é muito inspirador”, relata a aluna Luana Assumpção Santos.

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