Imprimir PDF Republicar

Boas práticas

Controle de qualidade terceirizado

Na Europa, instituições de pesquisa contratam empresas ou especialistas para examinar previamente sua produção científica e evitar acusações de má conduta

John Drysdale / Keystone Features / Getty Images

Algumas instituições de pesquisa da Europa estão contratando empresas ou especialistas para fazer um exame prévio de sua produção científica e evitar que artigos e teses sejam publicados com erros ou vieses. Uma reportagem publicada em novembro na revista Nature abordou exemplos dessa estratégia, em especial o caso do Fritz Lipmann Institute (FLI), na Alemanha, dedicado à pesquisa sobre envelhecimento humano. Dois episódios recentes de má conduta abalaram a instituição, vinculada à Associação Leibniz, que congrega 95 centros de pesquisa e recebe financiamento dos governos regionais e central da Alemanha. Em 2016, violações de regulamentos sobre uso de animais de laboratório levaram à interrupção de experimentos científicos no FLI.

No ano seguinte, o então diretor do instituto, o biólogo celular Karl Lenhard Rudolph, renunciou quando seu grupo de pesquisa foi acusado de cometer erros e manipular imagens em oito artigos científicos – uma investigação concluiu que Rudolph, mesmo sem ter agido de má-fé, foi negligente em seu trabalho de supervisor de uma equipe de alunos de doutorado e estagiários de pós-doc.

Para prevenir outros escândalos, a nova direção do centro criou comitês consultivos a fim de evitar que os alunos de doutorado fossem orientados por um único pesquisador e decidiu aplicar uma estratégia heterodoxa. Matthias Görlach, chefe dos laboratórios do FLI, pediu ajuda ao biólogo molecular italiano Enrico Bucci, fundador de uma empresa especializada em escrutinar trabalhos científicos. Desde abril de 2018, a Resis, empresa sediada na comuna italiana de Samone, passou a receber e submeter a uma checagem todos os artigos e teses produzidos pelo FLI — tarefa que, em geral, é executada pelos próprios autores e reforçada durante o processo de avaliação realizado por revistas científicas.

A Resis avalia se houve adulteração de imagens, fabricação de dados, manipulação ou má interpretação de estatísticas e evidências de plágio. A análise é feita em 24 horas após o recebimento do material — se houver sinal de algum problema, a empresa faz análises mais detalhadas, que podem levar até três dias. A FLI está gastando € 50 mil por ano, o equivalente a cerca de R$ 230 mil, para custear o serviço. Um em cada 17 artigos submetidos recebeu a checagem adicional, mas até agora só foram detectados problemas relacionados a inconsistências estatísticas.

A origem da Resis é curiosa. Em 2008, Bucci criou uma empresa de prestação de serviços chamada BioDigitalValley que montou um banco de dados com imagens de tecidos e células da literatura médica – a ideia era fornecer essas imagens a pesquisadores que precisassem usá-las como referência em seus trabalhos. O italiano tomou o cuidado de descartar imagens de artigos que tivessem sido alvo de retratação. Por curiosidade, selecionou os nomes dos autores de papers cancelados e resolveu verificar a consistência das imagens de seus outros artigos que ainda estavam válidos. Encontrou problemas graves em vários deles, em especial nos de um patologista da Universidade de Nápoles Federico II chamado Alfredo Fusco, que repetidamente usava imagens manipuladas e editadas de modo a forjar a presença ou a ausência de moléculas. Bucci analisou 380 artigos assinados por Fusco entre 1985 e 2015 e identificou falsificações em 95 deles. Desde então, o patologista já teve mais de 20 artigos retratados e enfrenta um processo criminal na Justiça italiana. Diante da repercussão desse trabalho, Bucci decidiu abandonar a ideia de fornecer imagens para mergulhar no negócio da integridade científica, criando a Resis. Outro cliente da empresa italiana é um instituto de oncologia molecular sediado em Milão, o Ifom, que se viu envolvido no escândalo de Fusco. O ex-diretor da instituição, Pier Paolo di Fiori, foi coautor de alguns dos artigos retratados do patologista. Desde junho, o Ifom também utiliza os serviços da Resis para verificar sua produção científica.

Checagem de imagens
Ainda são poucas as empresas que atuam nesse mercado. Um exemplo é a norte-americana Sheridan, que presta serviços editoriais a revistas científicas e, há algum tempo, passou a analisar imagens de manuscritos. Outras se dedicam a treinar pessoal para executar a tarefa, como é o caso da Image Data Integrity, em São Francisco, que presta consultoria a instituições de pesquisa, agências de fomento e revistas científicas sobre manipulação de imagens em estudos de ciências biomédicas. A empresa é gerenciada por Mike Rossner, ex-editor do Journal of Cell Biology, que em 2002 foi uma das primeiras revistas a introduzir checagem de imagens em seus processos de avaliação. Segundo ele, a verificação prévia pode ser bastante útil para evitar prejuízos resultantes de ações judiciais. “Além disso, é muito mais fácil para a instituição obter dados originais que lastreiam um artigo no momento em que ele está sendo submetido – quando um aluno ou estagiário de pós-doc ainda está presente no laboratório – do que depois da publicação”, disse Rossner ao site Retraction Watch.

Algumas instituições, em vez de terceirizar o controle de qualidade, contratam especialistas para realizá-lo internamente. É o caso do Instituto Beatson, em Glasgow, no Reino Unido, que contratou em 2012 a bióloga Catherine Winchester para checar todos os papers de seus pesquisadores antes de publicá-los. “Às vezes, consigo identificar erros que alguém próximo do trabalho não consegue ver”, escreveu Winchester em um artigo de opinião publicado também na Nature no ano passado. “Ocasionalmente, sugiro aos autores usar um teste estatístico ou uma maneira de apresentar dados diferentes. O objetivo é melhorar a qualidade do manuscrito e não apenas reproduzir estratégias da avaliação por pares.”

A ideia de delegar a uma pessoa ou a uma empresa a verificação de trabalhos científicos é vista com reservas por muitas instituições, que preferem uma abordagem mais abrangente na prevenção de casos de má conduta. Stefan Ehlers, diretor do Centro de Pesquisa Borstel, nos arredores de Hamburgo, Alemanha, sustenta que pagar por uma verificação independente não é a forma mais adequada de lidar com a responsabilidade de impedir a publicação de dados manipulados. “Considero mais importante promover nas instituições uma cultura de confiança e de encorajamento para relatar erros e discutir dados questionáveis”, disse à Nature. O Borstel, também vinculado à Associação Leibniz, decidiu investir em educação e treinamento contra má conduta após enfrentar um escândalo semelhante ao do FLI. Em 2012, uma pesquisadora do centro, Silvia Bulfone-Paus, foi acusada de negligência em um episódio de manipulação de dados em mais de uma dezena de artigos científicos.

Republicar