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resenha

O diálogo das artes entre Ocidente e Oriente

Livro analisa influência de tradições cênicas japonesas em nossa cultura

Em 1986, quando se apresentou no Brasil pela primeira vez, Kazuo Ohno provocou grande impacto em espectadores e artistas da dança e do teatro. Mesmo escapando à compreensão, o butô interpretado por um de seus mestres precursores passou a influenciar inúmeros criadores brasileiros, além de gerar igual quantidade de equívocos. Contudo, apesar das apropriações e interpretações superficiais, essa expressão japonesa aqui também ganhou estudiosos, entre os quais Christine Greiner, que, hoje, detém um conhecimento singular sobre o assunto.

Desde 1998, quando publicou Butô, Pensamento em Evolução, resultante de sua tese de doutorado em semiótica, Greiner dispôs-se a gerar uma bibliografia pioneira e referencial no Brasil. Com o recém-lançado O Teatro Nô e o Ocidente, a autora amplia as vias de acesso ao butô ao buscar nas tradições cênicas do Japão os germes de um processo evolutivo que se estende até hoje.

Em seu novo livro, Greiner se debruça sobre o diálogo entre Japão e Ocidente, procurando compreender as influências que tal intercâmbio continua a provocar na criação contemporânea. Num complexo jogo de encaixes, a autora tece confluências a partir de uma obra emblemática: At the Hawk’s Well ou O Poço da Mulher Falcão, como é geralmente traduzida a primeira peça de dança do dramaturgo irlandês William Butler Yeats, que em 1916 foi coreografada pelo japonês Mishio Ito. A escolha de tal eixo, segundo Greiner, deve-se às correspondências que o texto e a dança da obra de Yeats/Ito estabelecem com a estrutura do teatro nô tradicional e a dramaturgia ocidental.

Antes de analisar a coreografia de Ito para a peça de Yeats, Greiner vasculha origens, encontrando as primeiras relações da estética japonesa com a dança ocidental em meados do século 19, nos conceitos proferidos pelos poetas Baudelaire, Mallarmé e Valéry. Em seguida, a autora se detém no teatro nô, ressaltando um dos elementos mais enigmáticos para a compreensão dos conceitos de tempo e espaço orientais – o ideograma “ma”. Presente tanto no teatro nô quanto no butô, o “ma” é tido como o vazio pleno, onde tudo pode acontecer. Transmitida integralmente apenas por atores experimentados, a noção de “ma” não deve ser confundida com o nada ou a inexistência.

Curioso, no livro de Greiner, é a constatação final de que Michio Ito parece ter se identificado muito mais com as inovações que a dança ocidental propunha em sua época do que com as tradições cênicas de sua própria cultura. Pioneiro na integração da estética japonesa com a dança moderna ocidental, Ito decidiu estudar dança depois de ver Nijinsky dançar em Paris. Naquele fervilhante início de século, também Isadora Duncan impressionou o coreógrafo japonês, que logo rumou para a Alemanha, onde estudou no Instituto Dalcroze ao lado de precursores expressionistas, como Mary Wigman.

Ao coreografar At the Hawk’s Well, Ito colocou em prática o vocabulário estético que construiu, a partir do cruzamento entre Oriente e Ocidente. No entanto, Greiner verifica a fragilidade do método de Ito, que possuía um conhecimento superficial sobre o teatro nô. Assim como Ito, a geração seguinte de coreógrafos japoneses teria no expressionismo alemão o mais vigoroso elo com a dança ocidental. Por essa ponte, a autora chega ao butô, procurando iluminar tanto o entendimento dessa expressão quanto as suas relações com a dança contemporânea ocidental.

Ana Francisca Ponzio é crítica de dança dos jornais Valor Econômico, Folha de S.Paulo e da revista Bravo.

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