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Biologia

As regras dinâmicas da evolução

Modelo matemático descreve como o código genético se formou e ajuda a desvendar a origem dos seres vivos

Há quase 150 anos, Charles Darwin revolucionou a biologia com o livro A Origem das Espécies, no qual sustenta que os seres vivos estão sujeitos a mudanças e descreve como surgem, evoluem e desaparecem ao longo da história. Há 40 anos suspeitava-se que também teria havido uma evolução no código genético – presente em cada célula no ácido desoxirribonucléico (DNA), que transmite as informações genéticas de uma geração a outra. Mas não havia como provar. Hoje há uma chave para se entender isso: um grupo coordenado por José Eduardo Martinho Hornos, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), concluiu um modelo matemático que ajuda a entender como a vida surgiu, há cerca de 4 bilhões de anos, e descreve cada etapa das mudanças do código no processo evolutivo.

A descoberta do código genético é relativamente recente. Desde o início da década de 1950, sabia-se que é a molécula do DNA que transmite as informações genéticas. Dez anos depois, descobriu-se que um código presente no DNA organiza a montagem das proteínas que diferenciam tecidos e formam os organismos. Ficou claro que a informação contida no DNA é transmitida por 64 conjuntos, cada um formado por três entre quatro bases nitrogenadas – adenina (A), citosina (C), timina (T) e guanina (G). São esses conjuntos, chamados códons, as unidades do código genético.

Apresentada em dezembro de 1993 na Physical Review Letters, e merecedora de um editorial da Nature duas semanas depois, a abordagem do grupo de Hornos sustenta que, no início do processo evolutivo, os 64 códons permitiam aos organismos aproveitar menos aminoácidos – as moléculas que formam as proteínas – do que hoje. A diferenciação teria ocorrido em quatro etapas: primeiro, só 6 aminoácidos eram aproveitados, depois 14, então 16 e por fim os atuais 21 aminoácidos que formam qualquer organismo vivo.

O resultado aponta na direção de estudos sobre os aminoácidos primordiais, que já se acreditava serem seis. Falta explicar como ocorreu a diferenciação. “Temos de cooperar. Cada área tem suas próprias evidências”, diz o matemático e físico alemão Frank Michael Forger, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, que integra a equipe desde 1994. O grupo pretende incorporar outros pesquisadores, para testar até que ponto as regras matemáticas que propõe foram cumpridas.

Dois dançarinos
Os pesquisadores valeram-se de teorias matemáticas complexas para expor suas idéias – num artigo de 90 páginas publicado em 1999 no International Journal of Modern Physics -, mas explicam a formação do código genético com base num conceito bem simples: simetria. Tudo não passaria de uma ou mais transformações – de um ponto, de uma reta ou de um objeto – ao redor de um eixo.

Mas é uma simetria dinâmica, como a produzida por dois dançarinos num palco – exemplifica Hornos: ambos executam movimentos simétricos, espelhados, a partir de uma linha imaginária central. “Ordem e simetria não significam situações paradas, mas o contrário, que é o movimento”, diz ele. Se um dos dançarinos se move mais devagar que o outro, ou tropeça, a simetria se rompe. Foi justamente esse rompimento de harmonia ou quebra de simetria, capaz de desfazer só um pouco a ordem inicial, que os pesquisadores detectaram como origem das mudanças do código genético.

Momento zero
Para combinar os 64 códons com os 21 aminoácidos e demonstrar a quebra de simetria, valeram-se da Teoria dos Grupos, parte da matemática que mostra como fazer operações seguidas com um conjunto finito ou infinito de elementos. Logo verificaram que o código genético não se poderia ter formado ao acaso, já que as possibilidades de combinação aleatória dos 64 códons com os 21 aminoacidos são da ordem de 10 elevado à potência 70 – ou o número 1 seguido de 70 zeros. “O universo não teria tempo para experimentar todas essas possibilidades e dificilmente acertaria logo nas primeiras tentativas”, conclui Forger.

Segundo o modelo ao qual chegaram, há quatro bilhões de anos os códons estavam em fendas vulcânicas ou no oceano, misturados com aminoácidos formados ao acaso. Era o momento zero da vida, quando os códons ainda não se haviam diferenciado: não montavam aminoácidos, não tinham função biológica. Só começaram a diferenciar-se e a dirigir a montagem dos aminoácidos depois da primeira quebra de simetria. A partir daí, não mais funcionaram – ou dançaram – do mesmo modo e o DNA começou a sintetizar proteínas. Terminava o estado pré-biótico, quando só havia as rochas, os oceanos e a atmosfera primitivos, e começava a síntese biótica – um conjunto de mecanismos que permite aos códons passar adiante as informações sobre a produção de proteínas. Resultado: surgiram as primeiras células.

Os códons, que inicialmente eram um só grupo, passaram a formar seis, correspondentes aos aminoácidos com os quais podiam lidar. A diferenciação prosseguiu: outra quebra de simetria originou 14 agrupamentos de códons. Surgiram mais dois no terceiro estágio e cinco no quarto e último, quando os 64 códons se organizaram em 21 agrupamentos – é o código genético atual. “A diferenciação dos códons ocorreu há quatro bilhões de anos, num período relativamente curto, que não deve ter passado de 400 milhões de anos”, afirma Forger.

A quebra de simetria aparece em teorias que descrevem a formação do Universo pela diferenciação das forças ou interações entre partículas subatômicas, todas inicialmente unificadas. Mas por que pensar em simetria na organização e no funcionamento das trincas de bases do DNA? Para Forger, “o princípio de simetria é uma das metodologias que podem estabelecer um pouco de ordem no processo de evolução em geral”. Hoje são nítidas ao menos duas semelhanças entre os modelos de quebra de simetria que explicam a organização das partículas atômicas e o código genético: ambos têm um ponto final definido – não podem criar outras coisas além do que já existe – e dificilmente podem retroceder a estágios anteriores.

Surpresas
Mas, há alguns anos, o que era óbvio para os físicos incomodou os biólogos, ainda que alguns deles acreditassem que o código genético se teria formado de estruturas mais simples, até que, por alguma razão, a diferenciação teria cessado – o congelamento do código, agora caracterizado. “Ninguém acreditava que houvesse simetria em sistemas vivos”, lembra Hornos, cujo estudo inicial foi sucessivamente devolvido por revistas de bioquímica e evolução, até ser aceito na Physical Review Letters.

Um trabalho recente, do qual participaram Lígia Braggion e Márcio Magini, também da USP de São Carlos, mostra que o código genético padrão – do núcleo de quase todas as células – tem uma simetria exata desde que se formou, há cerca de 3,8 bilhões de anos.

Verificou-se a mesma simetria na grande maioria dos códigos mitocondriais, contidos nos compartimentos celulares chamados mitocôndrias. O DNA mitocondrial emprega menos de dez aminoácidos. Trata-se de um grupo de códigos genéticos chamados desviantes. Há pelo menos uma dezena deles, encontrados com pequenas variações nas mitocôndrias de bactérias, fungos, animais e plantas – e o código genético no núcleo das células de cada um é geralmente idêntico.

Mas o que veio primeiro, o código genético padrão ou os mitocondriais? Em busca da resposta, que seria uma pequena peça a mais para montar o quebra-cabeça da origem da vida, os pesquisadores da USP usaram o arsenal matemático de que dispunham para ver se era possível gerar os códigos genéticos mitocondriais em paralelo ao padrão.

A tentativa não funcionou naturalmente: exigia caminhos de evolução distintos para cada caso. A segunda abordagem deu certo: “Olhamos as diferenças com mais carinho e percebemos que era mais coerente interpretar as mudanças nos códigos genéticos mitocondriais a partir do código genético padrão”, conta Hornos. “Às vezes, as mudanças até tendem para a retroatividade, que procura restabelecer parte da simetria perdida.”

A conclusão matemática de que os códigos genéticos desviantes se formaram a partir do código padrão coincide com estudos biológicos recentes. Syuozo Osawa, da Universidade de Nagoya, no Japão, autor do Evolution of the Genetic Code, estima que o desvio mais antigo ocorreu há aproximadamente um bilhão de anos, bem depois da formação do código padrão. Nesse ponto, o modelo matemático e as investigações biológicas se tocam: ambos apresentam a tendência à mudança e ao mesmo tempo à conservação. “Na linha que leva aos vertebrados, a evolução preserva a simetria do código padrão e às vezes até procura restaurar uma simetria mais ampla e mais antiga”, diz Hornos.

Princípio universal
Esse tipo de simetria não é exclusivo do código genético. É bem semelhante à da tautomeria, fenômeno que faz duas moléculas com os mesmos componentes terem propriedades diferentes conforme as posições de grupos específicos de átomos. As comparações vão além: “A noção de simetria”, diz Hornos, “é tão antiga quanto a cultura humana. Os maias nunca viram nada dos egípcios, mas adotaram a mesma noção de simetria quando construíram suas pirâmides”. Arte suméria, arquitetura tailandesa ou árabe, nas artes de todos os povos em todos os tempos está presente a simetria, um princípio universal.

O trabalho acena com perspectivas de aplicação na medida em que representa cada códon por uma série de números, correspondentes a suas coordenadas numa figura geométrica tridimensional que descreve a diferenciação do código genético. É uma espécie de carteira de identidade, que, segundo Hornos, pode ajudar na busca das conseqüências biológicas do modelo, medidas, por exemplo, de modo ainda puramente especulativo, pela produção de proteínas anormais que causem doenças.Como todo modelo, esse dá algumas respostas, mas não diz tudo. Persiste uma dúvida essencial: o que provoca a quebra de simetria, que faz com que o código genético se diferencie? A resposta talvez demore um pouco.

A decifração do código

Em 1953, o inglês Francis Harry Compton Crick (1916-) e o norte-americano James Dewey Watson (1928-) descobriram que é a molécula do DNA que transmite as informações genéticas – achado que lhes valeria o Nobel de Medicina de 1962. Logo foi posta a questão de como essas informações são lidas e traduzidas em estruturas biológicas de modo a formar os tecidos, desde folhas de plantas até a pele humana – o que diferencia um tecido de outro são as proteínas que o compõem.

O próprio Crick e o sul-africano Sidney Brenner (1927-) resolveram a charada ao descobrir, em 1961, o código genético presente no DNA, que organiza a montagem das proteínas. Enfim, ficava claro: a informação genética contida no DNA é transmitida por meio de conjuntos de três das quatro bases nitrogenadas – adenina (A), citosina (C), timina (T) e guanina (G) -, chamados de códons, e que são as unidades do código genético.

Combinadas três a três, as quatro bases formam 64 códons, que orientam a montagem dos aminoácidos na proteína. O código genético é o conjunto dos códons e respectivos aminoácidos, reunidos numa tabela tão importante para os bioquímicos como a tabela periódica para os químicos. São os atores de um processo que ocorre a todo momento nas células: enzimas específicas identificam trechos de uma molécula de ácido ribonucléico, o RNA mensageiro, formado a partir de uma das duas fitas do DNA, e montam o aminoácido correspondente. Os aminoácidos se encaixam um a um até se completar a proteína, às vezes com milhares de aminoácidos.

Os 64 códons, como se comprovou experimentalmente, correspondem a apenas 21 aminoácidos, incluindo o chamado sinal de terminação, que informa o momento de encerrar a leitura do RNA mensageiro. O mesmo aminoácido, portanto, está associado a mais de um códon – fenômeno conhecido como degenerescência do código genético. A combinação é peculiar: três aminoácidos derivam de seis códons, cinco se formam a partir de quatro, dois provêm de três e nove podem ser produzidos a partir de dois. Somente dois aminoácidos, a metionina e o triptofano, dependem de apenas um códon.

A Teoria dos Grupos, criada por três matemáticos – o francês Evariste Galois (1811-1832), o norueguês Marius Sophus Lie (1842-1899) e outro francês, Elie Joseph Cartan (1869-1951) -, abriu milhares de possibilidades de organizar os 64 códons com os 21 aminoácidos, sem fugir dos dados experimentais. Cada resposta teve de ser examinada uma a uma. Um trabalho árduo, só concluído este mês, mostra que há pelo menos dez modelos baseados no princípio de quebra de simetria que reproduzem o código genético padrão.

A resposta que se tem destacado é justamente a proposta original de Hornos lançada em 1993, construída a partir do grupo simplético Sp(6), assim batizado pelo matemático alemão Hermann Klaus Hugo Weyl (1885-1955). O Sp(6) é constituído de transformações de objetos em seis dimensões, que são abstrações puras, mas podem ser comparadas às três dimensões do espaço físico – largura, comprimento e profundidade. Pode ser aplicado também a objetos em 64 dimensões – os códons.

Com base nas idéias de Weyl, que se somaram às de outro matemático alemão, Felix Christian Klein (1849-1925), enfatizador das conexões entre a geometria e a Teoria dos Grupos, os pesquisadores construíram um modelo tridimensional com 64 pontos – ou bolinhas -, cada um correspondente a um códon. O resultado é um sólido de 14 faces – oito hexágonos e seis quadrados – com um octaedro regular que permite visualizar a quebra de simetria: as bolinhas pintadas de cores distintas representam a diferenciação dos códons, em cada estágio.

O Projeto
Quebra de Simetria e Evolução do Código Genético (nº 96/01501-6 ); Modalidade Projeto temático; Coordenador José Eduardo Martinho Hornos -Instituto de Física de São Carlos, USP; Investimento R$ 115.696,93

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