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epidemiologia

Os vilõezinhos da leishmaniose

Ratos silvestres são hospedeiros do micróbio da doença tropical

Um estudo desenvolvido nos últimos cinco anos sob a coordenação do parasitologista Jeffrey Jon Shaw, da Universidade de São Paulo (USP), comprovou pela primeira vez que dois pequenos roedores – o rato-do-mato (Bolomys lasiurus ) e o rato-preto (Rattus Rattus ) – são os animais silvestres que carregam naturalmente o protozoário Leishmania (Viannia) braziliensis , causador da leishmaniose tegumentar americana (LTA). Essa é a forma mais comum de leishmaniose em seres humanos no país.

A descoberta permitirá compreender melhor o ciclo do parasita e sua transmissão do hospedeiro natural ao homem. Também abre caminho para novas propostas de combate à leishmaniose, pois um dos fatores que inibia as medidas de controle era a falta de informação sobre os hospedeiros silvestres da L. (V.) braziliensis , espécie do protozoário encontrada no país todo. A identificação dos hospedeiros, também chamados reservatórios, é importante porque é neles que o parasita encontra condições para se reproduzir.

Medicamentos tóxicos
A LTA é uma enfermidade de tratamento longo e também difícil, pois requer medicamentos muito tóxicos: antimonial pentavalente e anfotericina B, que podem causar insuficiência renal aguda, e pentamidina, associada ao surgimento de diabetes mellitus. A LTA pode manifestar-se de duas formas: cutânea e mucocutânea. A primeira provoca feridas na pele, em número e tamanho variados – desde uma lesão semelhante a uma espinha até grandes úlcerações. A forma mucocutânea é mais agressiva: destrói mucosas e cartilagens da boca, do nariz e da garganta, causando deformidades, embora dificilmente seja fatal.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a leishmaniose é uma das seis doenças infecto-parasitárias mais importantes. Calcula-se que surjam 1,5 milhão de casos por ano e existam 12 milhões de pessoas contaminadas no mundo. No Brasil, é um problema de saúde pública que se expande em todas as regiões: entre 1985 e 2000, atingiu 422,5 mil pessoas e nos últimos dois anos foram detectados 66,8 mil novos casos da doença, que permanece sem controle.

Caça ao parasita
Professor do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Jeffrey Shaw estuda os protozoários do gênero Leishmania desde que se mudou para o Brasil, em 1965. Foram 30 anos de trabalho, iniciado por uma fatalidade, até a recente identificação dos hospedeiros naturais do parasita, em pesquisas de campo feitas nos Estados de São Paulo e Pernambuco. Embora desde a década de 70 houvesse estudos que apontavam roedores e marsupiais como possíveis reservatórios do L. (V.) braziliensis , nenhum deles comprovou que o protozoário encontrado nos animais fosse dessa espécie. Shaw considera que ter identificado os dois roedores como hospedeiros naturais do parasita foi um dos fatos mais memoráveis de sua vida.

Entre 1965 e 1994, Shaw investigou as espécies do protozoário existentes na Amazônia, estudando o ciclo de vida dos parasitas, seus possíveis reservatórios e os prováveis vetores – os insetos transmissores dos parasitas. Finalmente, para estudar a LTA causada pelo L. (V.) braziliensis , teve de sair da Amazônia e voltar-se para regiões dos Estados de São Paulo e Pernambuco, onde a infecção por essa espécie era endêmica e não havia registro da doença causada por outras espécies de Leishmania .

A tarefa envolveu uma caçada nas áreas próximas às cidades de três regiões paulistas e um município da Zona da Mata em Pernambuco. Em busca do protozoário, a equipe de Shaw capturou nessas áreas 770 exemplares de animais silvestres de cerca de 20 espécies e 79.446 insetos do grupo dos flebotomíneos – chamados vetores, pois transmitem os parasitas de um hospedeiro para outro. O resultado mais importante veio da parte do projeto desenvolvida em Pernambuco de 1996 a 2000, em colaboração com Sinval Brandão Filho, do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães – unidade da Fundação Oswaldo Cruz no Recife.

Zona da Mata
Shaw e Brandão estudaram a leishmaniose no município de Amaraji, área de colonização antiga a cerca de 100 quilômetros do Recife, na porção sul da Zona da Mata. A vegetação local é formada por resquícios de Mata Atlântica, hábitat original dos insetos vetores. Nos últimos 15 anos, registra-se em Amaraji o maior número de casos novos de LTA em Pernambuco.

Os pesquisadores analisaram o material coletado em lesões de pessoas e animais domésticos – cães, cavalos e jumentos – com suspeita de LTA. No período, foram registrados 309 novos casos em humanos: desses, foram analisados 205 casos e em 30 deles comprovou-se que o agente causador era o L. (V.) braziliensis . Em relação aos animais domésticos incluídos na pesquisa, o teste com a técnica da reação de cadeia de polimerase (PCR) mostrou que cerca de 20% dos 61 cães e 14% dos 58 eqüinos testados apresentaram infecção por Leishmania . No entanto, os exames não permitiram comprovar a espécie do protozoário.

Também foram coletados insetos flebotomíneos, além de animais silvestres e mamíferos que vivem próximos às habitações. A captura foi feita em três espaços físicos: interior das casas, proximidades (área externa das casas e estábulos) e ambiente silvestre (plantações e resquícios de floresta). Foram apreendidos 588 exemplares de roedores e marsupiais, num totalde 11 espécies. A grande maioria era formada por três espécies de roedores silvestres: rato-d´água (Nectomys squamipes ), rato-do-mato (Bolomys lasiurus ) e rato-preto (Rattus rattus ).

Os pesquisadores extraíram material de 460 desses animais silvestres para submeter ao teste da PCR, feito em colaboração com Lucile Floeter-Winter, do Departamento de Parasitologia do ICB-USP, e Edna Ishikawa, do Instituto Evandro Chagas de Belém. O resultado mostrou que cerca de 18% deles (81 roedores) eram positivos para leishmaniose. Apesar disso, o exame não permitiu identificar a espécie do parasita – apenas o subgênero Viannia . “Embora não dê para garantir, a chance de o agente causador da leishmaniose ser da espécie L. (V.) braziliensis é de 99% nessas regiões”, revela Shaw.

Culpados e suspeito
Para não deixar dúvida, os parasitas isolados de animais com resultado positivo da PCR foram testados com anticorpos monoclonais. Além disso, no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, a pesquisadora Elisa Cupolillo tentou identificar as mesmas amostras de protozoário com uma técnica que usa enzimas específicas para aquela espécie. Os testes demonstraram que em seis roedores – cinco ratos-do-mato e um rato-preto – o parasita encontrado era da espécie L. (V.) braziliensis . Embora o protozoário não tenha sido isolado no rato-d´água, ele permanece sob suspeita, devido aos resultados positivos da PCR.

Além da identificação do rato-do-mato e do rato-preto como reservatórios, o trabalho levantou dados que sugerem o possível caminho percorrido pelo parasita até o homem. Todos os ratos-d´água, por exemplo, foram capturados em ambiente silvestre. Uma pequena parcela (3%) dos ratos-do-mato foi encontrada nas proximidades de casas. Já com o rato-preto ocorreu o inverso: 10% apanhados em ambiente silvestre, 64% nas proximidades das moradias e o restante no interior delas.

Esses dados levam à seguinte hipótese para a evolução epidemiológica da doença: pouco a pouco, os insetos vetores daLeishmania a transmitiram dos reservatórios silvestres para outros roedores que vivem próximos aos domicílios. A transmissão prosseguiu até chegar aos animais domésticos e ao homem. No caso de Pernambuco, embora não se tenha conseguido isolar o protozoário nos 5.626 insetos flebotomíneos dissecados, o provável vetor do parasita é o Lutzomyia whitmani , a espécie mais abundante da região, com 98% dos 64.806 insetos coletados. Há evidências de que a contaminação do homem ocorra principalmente nas proximidades das casas.

Mudança de hábitat
A parte paulista do estudo foi desenvolvida nos municípios de Ilhabela, São Sebastião, Iguape e Eldorado (na Planície Costeira), Itupeva (Planalto Atlântico) e Araçatuba e Guararapes (Planalto Ocidental). Os resultados não foram tão conclusivos como os de Pernambuco. Não foi possível, por exemplo, isolar o parasita em animais silvestres ou domésticos nem no homem. Mas o teste da PCR registrou casos positivos para oLeishmania do subgênero Viannia .

O trabalho, que resultou na tese de doutorado defendida ano passado por José Eduardo Tolezano no ICB-USP, também aponta algumas mudanças na situação da leishmaniose em relação à primeira metade doséculo 20. Até a década de 50, a LTA era considerada doença ocupacional no Estado. Afetava principalmente homens em idade produtiva que trabalhavam em atividades relacionadas à expansão econômica e à ocupação do interior, em áreas desflorestadas.  A partir da ação humana e da destruição da vegetação original, contudo, esse padrão começou a mudar. Na segunda metade do século, a eliminação progressiva da mata original alterou o hábitat do vetor do protozoário e a distribuição do inseto.

Atualmente, surtos de leishmaniose ocorrem em áreas abertas, fora da floresta. Com base em dados coletados no Vale do Paraíba, Tolezano sugere que, nos ambientes modificados, o provável vetor seja o inseto Lutzomyia intermedia , enquanto, na floresta, duas outras espécies –Lutzomyia fischeri e Lutzomyia ayrozai – desempenhem esse papel.

Próximos passos
A pesquisa faz parte de um projeto temático de três anos financiado pela FAPESP, com apoio do Ministério da Saúde, da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) e da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação). Já resultou em duas teses de doutorado e em artigo publicado em 1999 na revista Transactions of the Royal Society of  Tropical Medicine and Hygiene . Os detalhes da descoberta serão divulgados num artigo preparado por Shaw e Brandão em colaboração com seis outros pesquisadores, que deve ser submetido para publicação na revista britânica Nature .

De agora em diante, os pesquisadores tentarão isolar o L. (V.) braziliensis nas outras espécies em que o resultado da PCR foi positivo e avaliar a distribuição dos animais nas regiões em que foram capturados. Também estudarão o processo de adaptação do protozoário às mudanças ecológicas dos locais analisados. “Seria ingênuo pensar que em cinco anos elucidaríamos a complexa relação parasita-hospedeiro de uma das formas mais comuns da leishmaniose na América Latina”, acrescenta Shaw, já satisfeito com o que obteve.

Infectado em Londres, foi pesquisar em Belém

Jeffrey Jon Shaw começou a estudar leishmaniose por acaso. No final dos anos 50, era aluno de doutorado na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, Inglaterra. Como não gostava do frio londrino, o orientador Percy Garnham sugeriu-lhe que fosse estudar protozoários comuns na América Central. Ele acatou a idéia.

Depois de algum tempo na região, surgiram em seu pescoço feridas que não conseguia curar. Em busca do diagnóstico, Shaw, então com 22 anos, retornou a Londres. Passou três semanas internado no hospital da universidade em que era aluno, mas os médicos não conseguiram identificar a causa das lesões. Ralph Lainson, um cientista amigo, levantou a suspeita de leishmaniose.

Os exames do hospital deram negativo, mas testes feitos pelo próprio pesquisador confirmaram a suspeita. “Estou numa escola de medicina tropical e ninguém conhece a doença. Vou estudá-la”, decidiu Shaw, que confessa ter-se apaixonado pelo assunto. Por indicação do amigo, veio em 1965 para o Instituto Evandro Chagas, de Belém, onde ficou até transferir-se para a USP, em 1994.

O Projeto
Ecoepidemiologia da Leishmaniose Tegumentar Americana no Brasil. Estados de São Paulo e de Pernambuco. Áreas endêmicas de colonização antiga, correspondentes a zona de Mata Atlântica (nº 97/13015-1); Modalidade Projeto temático; Coordenador Jeffrey Jon Shaw – Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Investimento R$ 97.710,00

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