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Artes plásticas

Movimento em bronze

Pesquisa analisa a coleção de esculturas de Edgar Degas no Museu de Arte de São Paulo

LUIZ HOSSAKACavalo a Galope: paixão por dança e por equitaçãoLUIZ HOSSAKA

Na pintura, ele espreitava as bailarinas por trás das coxias. Mulheres nuas prestes a tomar banho, cavalos sendo preparados para a corrida, retratos de personalidades importantes. O francês Edgar Degas (1834-1917) foi um artista do mundo privado. Mas suas cenas intimistas não servem obrigatoriamente para retratar o cotidiano de um parisiense culto, assíduo freqüentador da Ópera de Paris. Considerado o menos impressionista dos impressionistas, Degas cultivou o fascínio pelo movimento. Em sua trajetória artística, bailarinas clássicas e cavalos de corrida adquirem importância por possuírem corpos treinados para o movimento e a repetição.

A expressão maior de seu estudo sobre esses temas está em sua obra escultórica que, jamais exposta ao público enquanto ele viveu, foi descoberta tardiamente em seu ateliê, um ano após a sua morte. Ela é muito querida pelo público brasileiro. É difícil dissociar o nome do Museu de Arte de São Paulo (Masp) da imagem da Bailarina de Quatorze Anos, de Degas, espécie de ícone do museu, o qual possui a maior coleção de arte da América Latina. À jovem feita em bronze, com os braços estendidos para trás e o pé à frente, como se ela se aquecesse para o espetáculo, juntam-se dezenas de outras bailarinas, jóqueis, cavalos e moças em toalete.

As 73 peças formam uma das quatro únicas coleções completas de esculturas de Degas do mundo – outras três estão no The Metropolitan Museum of Art, em Nova York, no Musée d’Orsay, em Paris, e no Ny Carlsberg Glyptotek Museum, em Copenhague. As esculturas de Degas do Masp mereceram a atenção da historiadora Ana Gonçalves Magalhães que, em novembro de 2000, defendeu a tese de doutoramento Degas Escultor: Do Processo de Fundição à Coleção de Bronzes do Museu de Arte de São Paulo (Masp), no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

Orientada pelo importante historiador da arte e professor Walter Zanini, Ana desenvolveu suas pesquisas por quatro anos com auxílio da bolsa de doutorado da FAPESP e ainda recebeu auxílio-viagem da instituição, o que lhe permitiu ir à Inglaterra e à França. Naqueles países, entrou em contato com grandes especialistas na obra de Edgar Degas, como o inglês Richard Kendall e a francesa Anne Pingeot, conservadora-chefe de escultura do Orsay. “A idéia de desenvolver essa tese nasceu em 1995, quando eu realizava uma visita guiada no Masp e me deparei com a coleção completa exposta”, narra Ana. “Fiquei fascinada pelas peças e percebi que com elas poderia realizar um trabalho semelhante ao do meu mestrado”, explica.

Este, desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sob orientação do professor Jorge Coli, analisava os dois quadros do também impressionista Claude Monet (1840-1926) pertencentes ao acervo do Masp. Naquele trabalho, Ana estudou a composição da obra de Monet, preocupando-se com a maneira como o pintor lidava com o movimento e como estabeleceu relações entre a sua arte e as artes da fotografia e do cinema, incipientes naquela virada do século 19 para o 20. O trabalho resultou no livro Claude Monet – A Canoa e a Ponte, editado pela Editora Pontes, com apoio da FAPESP.

Como parte de sua investigação sobre o movimento nas esculturas de Degas, Ana fotografou cada uma das peças da coleção do Masp. O procedimento teve início em janeiro de 1999, após um período de levantamento bibliográfico. “Isso me permitiu obter informações sobre o percurso dessas obras antes de chegarem ao Brasil”, explica ela. Alguns indícios desse caminho foram rastreados a partir de carimbos das galerias pelas quais as esculturas passaram – pelo menos uma alemã, a Galerie Fleichtheim, e uma inglesa, a Marlborough Gallery, que as venderam ao Masp. Outros, a partir do cachê de assinatura de Degas criado pelo fundidor das esculturas.
Nesse ponto reside a maior curiosidade sobre a coleção de esculturas de Degas. Nenhuma das peças foi feita em bronze por seu criador. “Toda a fundição foi póstuma. Os materiais originais eram cera, estopa, pedaço de arame, rolha, argila e plastilina, uma espécie de material sintético”, explica a pesquisadora. Após a morte do artista, seu marchand, Joseph Durand-Ruel, deixou a Albert Bartholomé, escultor e amigo íntimo de Degas, a incumbência de mandar fundir 150 estátuas que tinham sido encontradas em seu ateliê. O trabalho ficou a cargo da casa de fundição de Adrien A. Hébrard.

Estando muitas delas em péssimo estado de conservação, apenas 72 puderam ser aproveitadas. Conforme contrato firmado entre o fundidor e os herdeiros de Degas, de cada uma delas foram feitos 22 exemplares, formando, assim, 22 séries, das quais 20 foram colocadas no mercado. Essas 20 séries foram batizadas de “A” a “T” e a maior parte das peças pertencentes ao Masp são da série ‘S’, ou seja, da 19ª série comercial. “Somente uma meia dúzia não faz parte dela”, diz Ana. A peça de número 73 é justamente A Bailarina de Quatorze Anos, única exibida por Degas em vida, na exposição impressionista de 1881. Ela foi fundida separadamente das 22 séries de 72 peças e dela foram feitos 25 exemplares, três a mais do previsto no contrato. Os originais de cera das esculturas de Degas encontram-se atualmente na National Gallery de Washington.

“Não se sabe muito bem como foi o processo de fundição, mas sabe-se que ele durou pelo menos uma década, a partir de 1919”, diz a historiadora. A coleção do Masp foi adquirida em 1951, cerca de dois anos após Gilberto Chateaubriand e Pietro Maria Bardi terem recebido uma carta de Londres. O remetente era o dono da Marlborough Gallery, que se dizia interessado em vender a coleção completa de Degas a um grande museu, desde que esse se comprometesse a mantê-la na íntegra. “Não conheço os valores, mas acredito que a coleção não tenha sido muito cara, pois havia muitos espólios de famílias e o comércio da arte estava falido”, observa Ana.

“O impacto da chegada das peças ao Brasil foi muito grande”, afirma Luiz Hossaka, curador do Masp. Ele já trabalhava no museu em 1954, quando a coleção Degas chegou ao país. “Além disso, Chateaubriand sabia mobilizar artistas, políticos, empresários, todo mundo”, diz ele. Assim que desembarcaram, as esculturas foram expostas no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, e, depois, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Isso aconteceu mais ou menos simultaneamente a uma exposição itinerante da coleção do Masp por várias capitais européias, que culminou em uma grande mostra no The Metropolitan Museum, em Nova York. “As esculturas de Degas não foram porque se tratava de uma mostra apenas de pintura”, destaca Ana.

Curiosamente, diz a pesquisadora, quando aquela mostra chegou a Nova York, as peças de Degas arrematadas por Bardi e Chateaubriand já valiam dez vezes mais do que em 1951, quando foram adquiridas. Das 6.800 obras que formam o acervo do Masp, os 73 bronzes de Degas representam a principal coleção no que diz respeito à arte da escultura. “Sempre temos receio quando elas são pedidas por museus de outros países. Mas, devido à sua importância, é difícil negar o empréstimo”, diz Eunice Morais Sophia, coordenadora do acervo do museu. “Entre os cuidados, exigimos que elas sejam transportadas em pelo menos três aviões diferentes, pois, caso haja um acidente, evita-se danificar a coleção inteira”, explica.

O meio ambiente em que as peças são expostas também deve receber cuidados. “Ao mudarem de um ambiente para outro, as esculturas podem se danificar. O ideal é que elas permaneçam em um local de umidade baixa”, diz Karen Cristine Barbosa, coordenadora do Departamento de Conservação e Restauração do Masp. As esculturas de Degas do museu foram expostas em diversas instituições americanas e européias, como por exemplo o Museu Van Gogh, em Amsterdã.

“É muito interessante notar que a coleção permite a realização de exposições completamente diferentes entre si”, observa Eunice. “Pode-se fazer uma exposição só sobre as técnicas do balé clássico, ou só com as cenas íntimas das moças no banho, ou, então, apenas de corridas de cavalos. Quando os curadores internacionais pedem as peças emprestadas, em geral, já têm uma idéia de que forma podem aproveitá-las para realizar o que desejam em suas mostras”, diz. Luiz Hossaka relembra que, nos anos 50, era comum ver estudantes de desenho e de dança visitando a coleção.

A obra escultórica de Degas é rodeada por alguns mistérios, ainda não decifrados pela história da arte. Uma pergunta a se fazer é por que motivo o mestre da pintura, herdeiro da tradição do desenho desenvolvida por Raphael (1483-1520) e Ingres (1780-1867), teria deixado suas esculturas escondidas no ateliê, tendo levado a público somente A Bailarina de Quatorze Anos. “Uma hipótese defendida pelos estudiosos até a década de 80 é que a exposição da Bailarina, em 1881, fora um fracasso tão grande, que Degas teria desistido de exibir suas esculturas”, explica Ana. “Pessoalmente, pelo que li sobre sua personalidade, acho difícil que Degas fosse um homem que se intimidasse com esse tipo de coisa”, pondera.

O fato é que, em 1881, A Bailarina de Quatorze Anos não foi compreendida como uma peça escultórica. “Degas escolheu materiais muito alternativos para realizá-la. Originalmente, era de cera, vestida com um tutu de balé e um corpete de pano de verdade. Na cabeça, um laço de fita e uma peruca”, relata Ana. “Para o século XIX, aqueles eram materiais facilmente utilizadosem um esboço e não em uma peça acabada”, continua.

Havia, também uma contradição, pois a cera era um material muito utilizado nos museus de ciência e de cera, para fazer peças ultra-realistas. E a bailarina de Degas brincava com este aspecto realista, a começar pelo tamanho, equivalente a dois terços do natural. Porém, depois que a coleção escultórica de Degas veio a público, a jovem bailarina virou um sucesso. “Quando chegou ao Brasil, a bailarina já era um ícone representativo da obra de Degas”, diz ela.

Linguagens
Muitos teóricos acreditam que Degas costumava deixar as esculturas longe do público pois serviriam de esboço para seus desenhos e pinturas. Outros acham que sua relação com a escultura só tenha se intensificado nos últimos anos de vida, quando, paulatinamente, foi perdendo a visão, em função de um acidente que sofrera durante a guerra franco-prussiana. “Sem dúvida, a pintura sempre foi o cartão de visitas da obra de Degas, mas durante toda a vida ele trabalhou em diversas linguagens com a mesma intensidade”, explica Ana.

“Ele desenvolveu a escultura desde cedo, na década de 1860. Um dos primeiros cursos em que se inscreveu na Escola de Belas Artes foi o de escultura. Então, o que talvez tenha acontecido é que ele acreditava que sua escultura ainda não chegara a uma maturidade a ponto de ser exposta”, conclui a pesquisadora. Algo compreensível para um artista contemporâneo a Auguste Rodin (1840-1917), segundo hipóteses levantadas na tese da pesquisadora.

Por outro lado, conforme ela diz, de fato, a cegueira contribuiu para a aproximação do artista do trabalho tridimensional. “Mas, a certa altura, em 1912, Degas foi obrigado a abandonar o prédio onde mantivera seu ateliê. Ele ficou muito mal e começou a perambular pelas ruas de Paris. Acabou abandonando a pintura”, relata a historiadora. Entre as informações históricas descobertas por Ana a partir do manuseio e das fotografias feitas das peças, está a de que elas devem ter pertencido a uma importante galeria alemã na década de 20, a Galerie Fleichtheim.

O marchand, que também foi editor de uma expressiva revista alemã de arte moderna, migrou para a Inglaterra com a ascensão do nazismo, o que dá uma pista sobre como as esculturas foram parar em Londres. As peças também possuem carimbos da alfândega francesa, os quais eram muito utilizados, até a década de 40, cada vez que uma obra de arte saía do país. Para compreender o processo de transformação de esculturas feitas em diversos materiais em trabalhos feitos de bronze, Ana teve de visitar o ateliê de artesãos especializados na técnica da cera perdida. Nessa técnica, uma peça original é envolvida por gesso, o qual dá origem a uma fôrma.

Essa fôrma é recheada de cera. O conjunto é levado a um forno em alta temperatura, com o qual a cera derretida deixa a fôrma por um orifício. A partir daí, a cavidade do recipiente serve de receptáculo para o bronze e a peça originária é reproduzida tal e qual o seu original. “É curioso notar que o fundidor preocupou-se em reproduzir as peças exatamente da forma como Degas as deixou”, diz Ana. Marcas de ferramentas, ausência de braços ou detalhes foram mantidos, o que mostra que não houve preocupação, por parte do fundidor, em tentar imaginar que resultado final diferente o artista desejava.

Segundo Ana, seria necessário implementar técnicas mais sofisticadas para identificar outros detalhes sobre o processo de fundição dos bronzes de Degas. O uso dos raios X, porexemplo, permitiria identificar como foram moldadas as peças: se foram fundidas por partes ou soldadas do mesmo modo. “Essa coleção de esculturas é uma das prediletas do público.

Por isso também temos pena quando ela é emprestada a outras instituições”, diz Eunice. É bom notar que o cuidado com as moças e cavalos de Degas é tanto, que os laços nos cabelos das bailarinas da exposição não são os originais. Estes estão preservados na reserva técnica. Hoje, duas dúzias de esculturas podem ser vistas no segundo andar do Masp, ao lado de duas telas do artista francês.

O projeto
As esculturas de Edgar Degas da coleção do Museu de Arte de São Paulo (nº 96/02840-9); Modalidade Bolsa de doutorado; Orientador
Walter Zanini – Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP); Investimento R$ 85.824,42

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