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Engenharia Química

Degustação virtual

Embrapa desenvolve língua eletrônica para monitorar a qualidade na produção de bebidas e detectar contaminação na água por herbicidas

EDUARDO CESAREquipamento analisa água contaminada por herbicidas usados em lavourasEDUARDO CESAR

Pesquisadores da Embrapa Instrumentação Agropecuária criaram um dispositivo mais sensível que a língua humana para degustação e análise de bebidas. Batizado de língua eletrônica, o equipamento é dotado de seis sensores que desempenham função semelhante à das papilas gustativas, mas são mais eficientes. A língua eletrônica não só é capaz de identificar um legítimo vinho tinto Cabernet Sauvignon como também consegue detectar diferenças quase imperceptíveis ao paladar humano, como as existentes entre as várias marcas de água mineral. O invento, já patenteado pela Embrapa e FAPESP, está em fase de finalização para uso industrial e deverá estar disponível no mercado em três anos.

O potencial de aplicação é enorme. O equipamento pode ajudar no controle ambiental, monitorando os níveis de contaminação por metais pesados e pesticidas em rios e mananciais, e no saneamento básico, controlando a qualidade da água nas estações de tratamento. Na indústria alimentícia, a língua eletrônica pode aumentar o rigor do controle de qualidade na fabricação de bebidas, por meio do monitoramento contínuo. Por enquanto, o equipamento está apto para operar com vinhos, café e água mineral, mas os pesquisadores já estão desenvolvendo sensores para analisar leite, suco de uva e de laranja. Na indústria farmacêutica, a língua eletrônica pode ser usada para testar medicamentos e melhorar o sabor dos remédios amargos.

De acordo com a literatura sobre o assunto, esta é a primeira língua eletrônica à base de polímeros condutores do mundo. Resultado de seis anos de um trabalho multidisciplinar que envolveu o apoio de físicos e engenheiros de materiais, mecânicos, eletrônicos e elétricos da Embrapa, em São Carlos, o projeto, coordenado pelo pesquisador Luiz Henrique Capparelli Mattoso, também contou com parcerias importantes – o Instituto de Física e o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, a Escola Politécnica da USP, a Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves (RS), e o Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), de Campinas.

Além disso, foi acompanhado de perto por um ilustre colaborador, o neozelandês naturalizado norte-americano Alan MacDiarmid, professor da Universidade da Pensilvânia, ganhador do Prêmio Nobel de Química em 2000 ao lado do japonês Hideki Shirakawa e do americano Alan Heeger. Em novembro do ano passado, a língua eletrônica recebeu uma das mais importantes premiações do país na área de desenvolvimento científico e tecnológico – o Prêmio Governador do Estado, concedido pelo Serviço Estadual de Assistência aos Inventores (Sedai), da Secretaria de Ciência, e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico de São Paulo, na categoria Invento Brasileiro.

Alta sensibilidade
A língua eletrônica funciona de forma muito semelhante à humana. É capaz de reconhecer sabores: o doce, o salgado, o azedo e o amargo. A diferença é que consegue medir concentrações bem abaixo do limite de detecção biológico. Para o paladar humano, só é possível identificar uma bebida doce se a concentração de açúcar for superior a 685 miligramas (mg) para um copo (200 mililitros) de água. Já a língua eletrônica consegue detectar até 342 mg de açúcar na mesma quantidade de água. Para o salgado, a língua eletrônica detecta até 58 mg de sal em um copo de água, enquanto a humana precisa de, no mínimo, 117 mg.

O segredo está nos seis sensores que compõem o dispositivo. Eles são formados por microeletrodos revestidos com uma camada ultrafina de polímeros condutores (plásticos que conduzem eletricidade), que levam em sua composição substâncias presentes na saliva humana, como os lipídios. Quando mergulhado numa bebida, o composto polimérico interage com as substâncias presentes no líquido e provoca uma resposta elétrica específica para cada substância, que é captada pelo eletrodo e enviada para um computador. Os sinais recebidos dos eletrodos são então interpretados e convertidos em gráfico, uma espécie de assinatura digital da bebida.
A língua eletrônica é resultado de várias pesquisas que permitiram sintetizar polímeros condutores acrescidos de substâncias capazes de torná-los sensíveis a sabores específicos. As polianilinas, por exemplo, são polímeros que interagem com substâncias ácidas presentes na bebida e permitem detectar o sabor azedo. Essa tecnologia, desenvolvida pelo químico Alan MacDiarmid, foi trazida para a Embrapa por Mattoso como parte de seu doutorado nos Estados Unidos sob supervisão direta do pai da matéria.

Na Embrapa já foram estudados cerca de 40 compostos poliméricos, específicos para detectar vários padrões de paladar. Os sensores à base de polímeros condutores também são capazes de medir a concentração de minerais presentes na água. Com isso, a língua eletrônica consegue diferenciar perfeitamente a água de torneira de água mineral ou ultrapura (deionizada e destilada), além de detectar contaminação por metais pesados, como chumbo, cromo e outros metais tóxicos.

Filmes ultrafinos
O desafio agora é desenvolver sensores para detectar contaminação por pesticidas em rios e mananciais. As bases para encarar esse novo desafio foram construídas num projeto anterior à língua digital. Coordenado pelo pesquisador Carlos Vaz, também da Embrapa, ele permitiu o desenvolvimento de um equipamento para detecção de dois herbicidas amplamente utilizados no cultivo de cana-de-açúcar e soja para combater o crescimento de ervas invasoras de folhas largas: o Imazaquin (também conhecido como Scepter) e o Atrazina, produtos que podem causar câncer. Parte da água pulverizada com os herbicidas sobre as plantações escorre para os cursos de água ou penetra no solo, contaminando os lençóis freáticos. “O próximo passo é desenvolver uma língua eletrônica com sensores específicos para detectar essas substâncias e comparar resultados”, explica Mattoso.

Além da composição dos polímeros, outro fator determinante para a alta sensibilidade da língua eletrônica é a maneira como são revestidos os eletrodos. “Quanto mais fina a camada polimérica, mais facilmente a bebida é absorvida, o que torna a resposta elétrica quase que instantânea”, diz o pesquisador. Para isso, os eletrodos são revestidos com filmes ultrafinos, ou nanofilmes, que têm a espessura de apenas uma camada de moléculas poliméricas (milionésimos de milímetro). Duas técnicas são utilizadas. A automontagem é feita na Embrapa, pelo pós-doutorando Antonio Riul Júnior, e a deposição, pela técnica Langmuir Blodgett, que consiste na deposição de filme para revestimento dos eletrodos de ouro, em colaboração com o professor Osvaldo Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos, da USP.

Todos os componentes do dispositivo foram desenvolvidos no projeto. Os microeletrodos são confeccionados em ouro no Laboratório de Microeletrônica do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica de São Paulo, também da USP, sob coordenação do professor Fernando J. Fonseca. O software que analisa os sinais elétricos captados pelos sensores está sendo elaborado em parceria com o professor André Carvalho, do Instituto de Ciências Matemáticas e Computação da USP, em São Carlos. O programa é baseado em redes neurais, um sistema que opera à semelhança do cérebro humano e permite ser “treinado” para análise de diferentes tipos de bebida.

Nos últimos seis anos, as pesquisas com a língua eletrônica na Embrapa resultaram na formação de quatro alunos de mestrado e cinco de doutorado e, atualmente, há 11 pesquisas em andamento. O texto científico foi publicado na revistan Langmuir, da Sociedade Americana de Química, em janeiro, e o assunto já marcou presença inclusive no site da revista Nature, também em janeiro.

Sabores diferenciados
“Por parte das indústrias de bebidas, o interesse é grande”, afirma Mattoso. Nas vinícolas, por exemplo, o equipamento é capaz de determinar, entre vinhos da mesma marca, qual a safra de procedência. As vantagens são muitas. “A língua não se cansa, o que permite monitorar a produção continuamente. E também pode testar produtos que poderiam causar riscos para a saúde do degustador, como remédios.”

Mesmo com essas vantagens, ele faz uma ressalva: “A língua eletrônica não foi projetada para substituir o trabalho do especialista em degustação, mas deverá, sim, auxiliá-lo”. Isso porque, embora seja capaz de diferenciar vinhos, ela não consegue saber qual deles vai agradar mais ao ser humano. Em se tratando de paladar, a língua humana, pelo menos por enquanto, é que dá a palavra final.

O projeto
Utilização de Medidas Elétricas de Corrente Alternada para Caracterização de Sensores Poliméricos de Interesse na Agroindústria (nº 00/11177-9); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Luiz Henrique Capparelli Mattoso – Embrapa; Investimento R$ 32.470,12 e US$ 31.794,55

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