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Patentes

Lições de diálogo e parceria

Estudo avalia estratégias de integração entre empresas e universidades nos EUA e Europa

A fome de inovação num mercado cada vez mais competitivo leva países e empresas a injetar cifras bilionárias em pesquisa e desenvolvimento (PeD) de produtos e processos de ponta que têm na inteligência seu ingrediente básico. Nesse mundo, movido a ciência e negócios, a aliança academia-empresa ganha fôlego e musculatura. O diálogo – sabidamente difícil e cauteloso – entre os dois interlocutores se “afina” graças ao desenho de novos arranjos institucionais e à adoção de leis relacionadas às patentes universitárias.

É o que mostra a coordenadora do Núcleo de Estudos e Planejamento Estratégico do Instituto Oswaldo Cruz, Cláudia Inês Chamas, em sua tese de doutorado Proteção e Exploração Econômica da Propriedade Intelectual em Universidades e Instituições de Pesquisa. Nesse trabalho, ela descreve e aprofunda estratégias focalizadas na apropriação dos frutos de pesquisas geradas com recursos públicos e implantadas em países como Estados Unidos, França, Reino Unido, Espanha e Alemanha.

A intenção da autora é oferecer um panorama que provoque reflexões e inspire os atores do processo de inovação no Brasil, onde a parceria academia-empresa ainda é tímida e apenas 30% das universidades e 30% das instituições de pesquisa apresentam políticas formais de proteção e comercialização da propriedade intelectual.

Laços cooperativos
No trabalho, Cláudia Chamas destaca a tessitura da articulação entre o setor acadêmico e o privado – como centros de pesquisa cooperativos, joint ventures para pesquisa e produção, consórcios de PeD e incubadoras -, que tem rendido ótimos resultados, especialmente em nichos da vanguarda tecnológica. Tais laços, é bom lembrar, estão na origem de companhias estreladas como Apple Computer, Cisco Systems e Intel, entre outras que, aninhadas no Vale do Silício e ao longo da Rota 128, detonaram, a partir da década de 70, a “explosão” das indústrias eletrônica, de computação e de comunicação nos Estados Unidos.

A Europa também embarcou nessa onda cooperativa que, em campos como o farmacêutico e biotecnológico, é quase uma imposição, devido aos riscos e altos investimentos associados à inovação. A Roche, por exemplo, gigante do setor de medicamentos sediada na Suíça, aplica entre 15% e 20% de seus recursos anuais em PeD na compra de pesquisa de institutos, universidades e pequenas empresas de biotecnologia com os quais mantém convênios.

A interação academia-indústria traz evidentes vantagens para os dois parceiros. As universidades podem imergir na rotina das empresas, conhecer seus problemas e obter recursos financeiros disponíveis para a pesquisa,se for o caso. As empresas, por suavez, têm acesso a “janelas” privilegiadas do conhecimento, a fontes de informação científica e tecnológica e a profissionais altamente qualificados das universidades.

Ponto de equilíbrio
Tal “casamento” não é, porém, unanimemente aceito pelo setor acadêmico. Há, entre outras razões, o temor de uma transformação da atual universidade, centrada no ensino e na pesquisa descompromissada, em uma instituição “de resultados ou de serviços”, contaminada pela visão do lucro. Diferenças como essa, porém, podem e devem ser equacionadas. “É preciso que cada universidade estabeleça seus objetivos e limites, encontre seu ponto de equilíbrio e defina sua política de propriedade intelectual”, defende Cláudia Chamas.

Uma das questões espinhosas na abordagem dos projetos cooperativos refere-se à liberdade de divulgar o conhecimento, verdadeiro dogma entre os cientistas, versus o sigilo exigido pelas empresas para produzir e lançar produtos nos quais investiram pesadamente. Para enfrentar esse dilema várias legislações, entre as quais a brasileira, adotam o chamado “período de graça”, que beneficia diretamente os inventores da área acadêmica, ao proporcionar um período de seis a 12 meses (dependendo do país) para um posterior depósito da patente. No espaço de tempo previsto, a abertura da invenção – sob a forma de artigos, teses, conferências, Internet, entre outros meios – não constitui quebra de novidade, um dos requisitos fundamentais para o patenteamento.

É bom lembrar, porém, que essa “graça” é temporária e não totalmente garantida. Além disso, se houver necessidade de registro em países onde tal benefício não vigora, a proteção desejada não ocorre. No exterior, a evolução da parceria academia-empresa ganhou, nos últimos anos, contornos mais precisos e profissionais, passando a ser regidas por contratos. As legislações sobre patentes que, em muitos casos, vinham sendo discutidas há mais de 50 anos, sofreram mudanças decisivas nos Estados Unidos na década de 80, impulsionadas especialmente pelo desenvolvimento da biotecnologia e da pesquisa biomédica, cujas aplicações comerciais têm atingido cifras astronômicas.

A edição da lei Bayh-Dole, naquele país, permitiu às universidades e pequenas empresas obterem patentes de invenções desenvolvidas com fundos do governo federal. Assim, a antiga retenção de titularidade pelo governo ou o domínio público (também vigente em outros países, como a Alemanha) foi substituída por uma visão pragmática. O foco deslocou-se para o mercado, tendo em mira aspectos como melhoria da produtividade, criação de empregos e priorização das empresas nacionais na “compra” de invenções.

Profissionais da inovação
Na esteira dessas mudanças – que envolvem também aspectos ligados às formas de distribuição de royalties e à titularidade das invenções, entre outros -, instituições acadêmicas, laboratórios governamentais e centros de pesquisa vêm aprimorando políticas de atuação, implementadas por departamentos denominados genericamente Escritórios de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia (Epitts).

Disseminados hoje pelos EUA e por diversos países europeus, tais escritórios – que podem situar-se dentro ou fora das instituições – agregam equipes de profissionais compostas por agentes de propriedade industrial (formados em áreas como engenharia e física) com bons conhecimentos de leis e acordos internacionais, especialistas em marketing e pessoal de suporte administrativo.
A maioria das instituições apresenta um único Epitts para atender toda a clientela, como o escritório do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) francês. Visando maior agilidade em sua interação com os pesquisadores, a Universidade de Michigan adotou um esquema constituído por três unidades, uma central e duas satélites. A Universidade de Wisconsin, por sua vez, estabeleceu parceria com uma fundação para resolver as questões ligadas à propriedade intelectual.

No Reino Unido, a Universidade de Oxford criou, em 1988, a Isis Inovação, uma empresa de exploração dos frutos da pesquisa realizada internamente. Além de buscar potenciais licenciados, a Isis promove a criação de empresas individuais por meio de capital de risco ou fundos de desenvolvimento.Como se pode ver, são esquemas de atuação bem diversos, cujos formatos devem ser analisados com cuidado antes de serem implantados. Lembrando sempre que um dos ingredientes básicos para o sucesso da receita está no forte comprometimento dos níveis hierárquicos mais elevados das instituições.

Impactos
O impacto dessas mudanças legais e institucionais pode ser contabilizado especialmente aos EUA, onde a cooperação academia-empresa está mais sedimentada. Antes de 1980, eram concedidas naquele país cerca de 250 patentes para o total de universidades. De acordo com o Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO), em 1984 foram concedidas 551 patentes universitárias; em 1989, 1.228; em 1994, 1.780; e em 1997, 2.436, o que evidencia um crescimento constante e considerável. (Para efeito de comparação, lembra-se que foram depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, entre 1990 e 1999, 335 pedidos cujos titulares eram universidades brasileiras.)

Paralelamente, expandiu-se a capacidade de comercialização nas universidades norte-americanas: em 1990, havia cerca de 200 envolvidas com programas de transferência de tecnologia, oito vezes mais do que o número registrado em 1980.Outro exemplo do impacto que os avanços na legislação causaram no meio acadêmico norte-americano está no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT): cerca de US$ 1 bilhão vêm sendo investidos pelo setor industrial no desenvolvimento e comercialização de licenças e patentes e de tecnologias produzidas naquela instituição. Mais de 200 mil empregos diretos foram criados como resultado direto da exploração dessas licenças.

Quanto ao Reino Unido, a redução de barreiras legais promoveu o surgimento de mais de 60 escritórios de intermediação industrial. O relacionamento intenso das instituições britânicas com suas congêneres norte-americanas e a redução dos investimentos governamentais dirigidos à pesquisa influenciaram, segundo os estudiosos, a adoção de uma postura mais empreendedora no país que se tornou, na Europa, um dos mais abertos à contratação empresarial de pesquisa acadêmica.As parcerias britânicas frutificaram também em outros tipos de arranjos. Em 1998, uma aliança estratégica entre a Mitsubishi Química e a Faculdade Imperial de Londres resultou em substancial suporte financeiro para o Centro de Terapias Genéticas, que atua nas áreas química, biológica e médica.

No mesmo ano, a Unilever começou a investir cerca de 13 milhões de libras para estabelecer um grupo de pesquisa dedicado à informática molecular na Universidade de Cambridge. Na França, a Agência Nacional da Valorização da Pesquisa (Anvar) – que tem 24 escritórios regionais e cinco no exterior – aplicou, de1981 a 1999, cerca de 3,13 bilhões de euros em mais de22 mil empresas e laboratórios, apoiando mais de 34 mil projetos de inovação tecnológica. Os resultados de projetos cooperativos também têm se mostrado bastante promissores em países como Alemanha e Espanha. Neste último, com a promulgação da nova lei de propriedade intelectual em 1986, o número de patentes universitárias saltou de 27 para 306, em 1994.

Situação brasileira
Mudanças profundas vêm marcando, desde a década de 90, o panorama brasileiro na área de patentes, destacando-se especialmente a revisão do Código da Propriedade Industrial, que resultou na lei 9.279, de 1996. Cláudia Chamas observa, porém, que o país ainda “está muito atrasado no que se refere à proteção e exploração econômica da propriedade intelectual na academia e nas pequenas e médias empresas”.

Os longos períodos de turbulência vividos pela economia brasileira nos últimos anos, não encorajaram a geração de inovações. A abertura do Brasil às importações, por sua vez, não trouxe a esperada renovação tecnológica, tendo sido escassos os investimentos das empresas de um modo geral, em pequisa e desenvolvimento.

Hoje, diante de um quadro econômico estável em que há um descompasso entre a crescente produção científica e a limitada produção tecnológica, impõe-se a estruturação e o preparo da área acadêmica para atuar no campo do patenteamento de invenções. “Em nossa pesquisa observamos instituições que têm dificuldades em tomar decisão. Por exemplo, acumulam extensas carteiras de patentes sem promover a sua exploração, pagando taxas de manutenção dos pedidos, que no exterior são muito altas, sem conseguir retorno”, relata ela.

Apenas 45% das universidades e 30% das instituições de pesquisa (a maioria do Sul e Sudeste do país), que integraram a amostra da tese, contam com Epitts em sua estrutura. Para ampliar esse espectro são necessárias, primeiramente, ações de sensibilização e de informação e depois a feitura de um planejamento global, definindo-se metas, estratégias e criando-se arranjos institucionais que respeitem as características de cada região.

Apesar de todas as deficiências – que incluem ainda falta de acervo bibliográfico, de financiamento e de pessoal qualificado -, Cláudia Chamas se declara otimista. “Nos últimos dez anos fizemos avanços fantásticos em termos de debates e legislação. O discurso e a prática governamental estão mudando. Mas é preciso ainda mais: integrar o desenvolvimento científico à inovação e à indústria, gerando renda e emprego”, conclui ela.

A serviço do avanço tecnológico
São três os requisitos básicos para o patenteamento de uma invenção: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. É considerada nova (isto é, não compreendida no estado da técnica), uma invenção ou modelo de utilidade não divulgados até a data do depósito de pedido de patente. A legislação também impõe a descrição clara e suficiente do objeto, o qual deve ser reprodutível por um técnico no assunto. Este é um dos fundamentos do sistema de patentes: revelando à sociedade o conteúdo de sua invenção, o inventor tem, como recompensa, um título, transferível e temporário, contendo uma proteção. Uma prática que alia os interesses individuais aos da coletividade, promovendo o progresso técnico e econômico.

Nos pedidos de patente na área de biotecnologia que envolvam materiais biológicos novos, os quais não podem ser descritos de maneira suficientemente nítida e completa, é preciso fazer também um depósito do microrganismo em uma autoridade internacionalmente reconhecida. A exploração econômica da patente pode ocorrer por licenciamento, cessão ou venda de direitos, aquisição ou criação de firma para fazer o desenvolvimento tecnológico da invenção, entre outros meios.

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