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Zootecnia

O boi inesperado

Graças a um equívoco, nasce o primeiro clone brasileiro de célula somática de feto

EDUARDO CESARMarcolino, o clone: desenvolvido por engano, antecipou objetivo de grupo da USPEDUARDO CESAR

Sexta-feira, 27 de abril de 2002, fazenda Panorama, Campinas. Na sala de parto, todos a postos e grande expectativa. Estava em curso algo mais que uma cesariana: tratava-se de trazer ao mundo a primeira bezerra clonada a partir de uma célula adulta de vaca nelore. Responsável pelo projeto, a equipe de José Antônio Visintin, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), aguardava impaciente. Finalmente nasceu: só que, em vez da esperada bezerra, era Marcolino, um forte e saudável macho. Estavam todos eufóricos com o sucesso e atônitos pela surpresa. “É impossível gerar um clone macho a partir de uma célula adulta de fêmea, pois o sexo já está definido na célula somática”, esclarece Visintin, que coordena duas pesquisas de clonagem bovina: uma de célula adulta e outra de célula de feto.

A equipe trabalhou duro por dois anos, revezando-se 24 horas por dia para checar células e fases do processo de clonagem a cada duas horas. Com esse empenho e os dados controlados, Visintin descobriu logo a razão de tudo: “Chequei todos os procedimentos usados nesses dois anos e descobri que, no dia 20 de junho, foram congelados dois grupos de células: um de células adultas de fêmea e outro de células de feto. Apesar de todos os cuidados, provavelmente alguém mais afetado pela rotina estafante do processo embalou células de feto achando que fossem células de adulto.” São ossos do ofício, a ciência exibindo sua realidade. Como a equipe faz fecundação in vitro há seis anos, sem problemas anteriores, só podia ter havido uma troca acidental. Mas era preciso comprovar.

Descartada a possibilidade de a vaca ter sido coberta por um touro, fez-se exame de DNA em amostras da nelore doadora, da vaca receptora, do recém-nascido, da cultura de células da doadora e da cultura de células de feto. Com o suporte da equipe de José Fernando Garcia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araçatuba, integrante do Projeto Genoma, e os exames feitos pelo laboratório LinkGen, o mapeamento genético confirmou: Marcolino é um clone provindo de célula de feto, o que comprova a troca involuntária.

Antecipação
“Nossa idéia era desenvolver primeiro o clone de célula adulta: teríamos até o final de 2002 para fazer isso. Só depois partiríamos para a clonagem da célula somática do feto”, revela Visintin. Assim, o engano inverteu as pesquisas e antecipou objetivos. “O mais importante”, acentua o pesquisador, “é que fizemos o primeiro clone de célula somática no Brasil e provamos que temos tecnologia para produzi-lo. Um resultado diferente do alcançado pela Embrapa de Brasília, que produziu uma fêmea clonada de célula embrionária.”

Para ele, o objetivo da clonagem é reproduzir animais em extinção ou de alta produção, além de multiplicar animais transgênicos mais facilmente. Pode-se, por exemplo, reproduzir vacas leiteiras mais produtivas e transgênicos que produzam altas quantidades de componentes de interesse farmacológico – caso dos fatores 8 e 9 de coagulação, muito importantes no tratamento de hemofílicos, e que podem ser produzidos no leite. “Dado que a vaca não tem Aids, esses fatores poderiam ser retirados e fornecidos ao homem sem os riscos das transfusões de sangue.”

O processo
O primeiro passo da equipe foi colher e cultivar células da orelha de uma vaca nelore adulta. Paralelamente, foi feita a cultura de células de fetos sem raça definida, com 45 a 60 dias de gestação e de 20 a 30 centímetros de comprimento, recolhidos em matadouros logo depois da retirada das vísceras de vacas abatidas. Os fetos foram postos em solução e recipiente próprios para a conservação das células e levados ao laboratório da Faculdade de Veterinária, no máximo até 3 horas depois da morte da vaca. Depois de limpos e picotados, foram colocados em meio de cultura. Os fibroblastos obtidos nas duas culturas foram congelados em separado.

Paralelamente, ovários de vacas abatidas foram recolhidos no matadouro e seus oócitos (óvulos), aspirados em laboratório. Dos já amadurecidos, foram retirados os núcleos, obtendo-se células enucleadas (sem DNA nuclear). Um fibroblasto de cultura, privado de soro fetal bovino por dois dias, em estágio G zero (início de desenvolvimento da célula), foi em seguida inserido no óvulo enucleado. Foi dado um estímulo elétrico, o que desencadeou uma reprogramação celular do citoplasma: as células começaram a se dividir. Transcorridos de sete a oito dias de cultura, atingiu-se o estágio de blastocisto, com início de formação das células da placenta e do botão embrionário. Então, o futuro clone foi transferido para o útero da vaca de aluguel, dando seqüência à gestação de nove meses.

Ocorrem perdas em todas as fases desse processo. De cada 100 oócitos recolhidos, por exemplo, só cerca de 80% maturam. Na retirada do núcleo, há uma nova perda de cerca de 50%, restando cerca de 40 óocitos enucleados. Depois da inserção do fibroblasto e do choque elétrico, só metade dos oócitos se funde, o que permite a cultura de 20 deles. Destes, finalmente, apenas uns cinco se desenvolvem e atingem a fase de blastocisto para implantação nas vacas. Depois de iniciada a gestação, também há perdas. Os períodos mais críticos – com grande incidência de má fixação e abortos – são os primeiros 20 dias de gestação, a fase seguinte entre 20 e 50 dias e aos 90 dias. E às vezes o bezerro morre logo ao nascer, por má formação de órgãos. “O Marcolino é o primeiro sucesso em dois anos de pesquisa”, diz Visintin.

“De 16 implantes de blastocistos, conseguimos quatro gestações. Uma delas resultou em um aborto e temos outras duas vacas prenhes de clones produzidos por minha equipe: uma com seis meses e outra com dois meses de gestação.” Ele lembra que o índice de perdas leva a reflexões importantes, já que as pesquisas com humanos sempre resultam de pesquisas com animais: “Se hoje a fecundação humana in vitro está bem desenvolvida, é porque esse processo é corriqueiro em animais há muitos anos”. Com uma diferença essencial: “Na clonagem bovina, ainda em fases iniciais, se algo sai errado, pode-se sacrificar o animal”.

Dois laboratórios
Obtidos os clones de célula adulta e fetal, o grupo vai comparar o desenvolvimento de ambos para responder a certas questões: “O clone originado de célula adulta já nasce velho? Se de uma célula faço duas ou três, essas células clonadas obtidas a cada repique também envelhecem?” Para saber, é preciso obter o mais rapidamente possível o clone de célula adulta. “Vamos disponibilizar os clones para estudos de fisiologia (bioquímica e sexual) e genética.” A equipe de Maria Angélica Miglino, do Departamento de Anatomia da Faculdade de Veterinária, analisará as placentas de cada gestação para verificar forma, composição e função, em relação a placentas de gestação normal, o que deve contribuir para a descoberta das razões dos insucessos.

Para garantir que não haja nenhum novo acidente, o pesquisador da USP providenciou a separação total dos laboratórios: um só para clonagem de células adultas e outro para a de células fetais. Ele espera que, com o sucesso da segunda fase antecipado, os artigos sobre Marcolino e seu estudo molecular possam estar prontos para publicação até o fim do ano.

Os Projetos
1. Maturação e Fertilização de Oócitos e Co-Cultivo de Zigotos Bovinos em Cultura Primária de Células Epiteliais de Oviduto de Bovinos e Linhagens Permanentes (nº 96/10634-0); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador José Antônio Visintin – Universidade de São Paulo; Investimento R$ 127.290,00
2. Clonagem de Embriões Bovinos: Desenvolvimento da Técnica de Transferência Nuclear; Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa;
Coordenador 
José Antônio Visintin – Universidade de São Paulo; Investimento R$ 312.716,01

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