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Resenhas

O texto infinito

Ensaios de crítica genética detalham o trabalho de construção artística

Entre a mão que escreve e o livro publicado, o prototexto: rascunhos, diagramas, rasuras, esboços. O manuscrito literário é a via sinuosa e labiríntica que figura o rigor e o acaso do processo de escrita – cosa mentale que o traço na folha em branco reveste de afeto e desejo. A crítica genética é, por isso, mais do que uma jovem “disciplina”, uma pontuação significante naquilo que o texto final e acabado deixou como promessa de um outro texto, suplemento aberto ao infinito das possibilidades de realização, ao ir-e-vir do sentido sempre em processo. Por isso também, desfaz a aura do mistério da criação, ao detalhar, às vezes até o limite da exaustão, o trabalho minucioso de construção artística, deslocando a noção de autoria ou gênese discursiva.

Os ensaios reunidos por Roberto Zular são exemplares dessa postura analítica, nascida no final dos anos de 1960 na França e logo acolhida por grupos de pesquisa no Brasil. Franceses e brasileiros traçam em Criação em Processo as trilhas já percorridas e a contribuição decisiva que apresentam para o conhecimento da escritura e do texto. Louis Hay e Almuth Grésillon, Philippe Willemart, Jean-Louis Lebrave e Telê Ancona Lopez, entre outros, oferecem um histórico da discussão e buscam definir os conceitos e procedimentos de uma teoria que dê conta do que Lebrave chama de “poética do processo”, e Grésillon, “estética da produção”. Ao contrário do preceito filológico de fixação na pureza original do texto único ou primeiro, que caberia ao filólogo reconstituir, preferem a aventura do “texto móvel” (Willemart), que pela sua dinâmica institui protocolos diferenciados de leitura do fazer literário, entendido na sua estrutura múltipla como escrita sem fim, na materialidade de suas formas de inscrição.

A perspectiva adotada pelo geneticista não supõe uma concepção histórica evolutiva da criação, análoga à lógica linear que considera o livro como etapa final e definitiva da escrita. A ruptura maior que se instaura no âmbito dos estudos literários nasce aí: “O texto perde pouco a pouco seus atributos mais essenciais. Ele se torna instável, mutável, radicalmente inacabado, indefinidamente acessível ao retoque, à reescritura, à transformação” (Lebrave). O texto confunde-se com o hipertexto, seu novo e inequívoco estatuto operacional e crítico. O rápido desaparecimento do manuscrito na era do computador traz consigo esse revide irônico, que acentua sua possibilidade de rendimento metafórico – a rigor, interminável – diante da nova tecnologia, cujos traços de definição a escritura ilumina por analogia e contraste. O texto aparece, então, “bem mais complexo que nossos modelos antigos, bem mais aleatório que nossos modelos atuais” (Hay).

Não por acaso, diversas instituições do país e órgãos de fomento à pesquisa têm demonstrado interesse crescente pela preservação e pelo estudo de documentos e manuscritos literários, vistos ao mesmo tempo como objetos de investigação e patrimônio cultural. É o que garante à crítica genética não a reclusão na singularidade do objeto, mas sua abertura comparativa e interdisciplinar. Para tanto, a atenção a manuscritos de áreas distintas como a filosofia, a arquitetura, o direito, a religião, entre muitas outras, pode oferecer lugares de passagem e intersemiose que contribuam para a construção da prática teórica proposta.

Como nos alerta Pierre-Marc de Biasi, “a história dos textos demonstra que a verdade, inseparável de suas sempre relativas formulações, não é da ordem do acabamento: é uma exigência, algo que se busca, se aprofunda, se alarga, e cuja definição comunicável, sempre incompleta e provisória, é objeto de uma perpétua reescritura”. O desafio da crítica genética mostra-se, assim, indissociável de uma nova ética e de uma nova política da escrita.

Wander Melo Miranda é professor titular de Teoria da Literatura da UFMG. Coordena o Projeto Integrado de Pesquisa Acervo de Escritores Mineiros (UFMG/ CNPq). É diretor da Editora UFMG.

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