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Bioquímica

Perigos mapeados

Estudos comprovam a relação dos radicais livres com uma série de doenças e reorientam tratamentos

SÉRGIO VANIN / USPO pirilampo “Pyrophorys” divergens, com lanternas (pontos amarelos) no tórax que emitem luz verde quando o inseto anda sobre a folhagemSÉRGIO VANIN / USP

Até há pouco tempo, esteve sob suspeita a ação dos radicais livres – moléculas ou fragmentos de moléculas com número insuficiente de elétrons, formados principalmente a partir de oxigênio. Agora, uma série de estudos comprova que eles são responsáveis pelo surgimento ou agravamento de vários problemas, como doenças hereditárias, intoxicação por chumbo, hipertensão, esquizofrenia, transtorno bipolar, diabetes e câncer.

A ponta desse iceberg surgiu em 1978, com os casos de anencefalia – fetos sem cérebro – e doenças respiratórias que apareceram na Vila Parisi, em Cubatão, no litoral paulista. Instigados por notícias de que os elevados níveis de poluição ambiental é que estariam provocando esses dois problemas, os químicos Etelvino Bechara e Marisa Medeiros, ambos da Universidade de São Paulo (USP), foram lá pesquisar. Vencidas as dificuldades, coletaram sangue de habitantes do bairro e verificaram níveis elevados de enzimas antioxidantes – era um sinal do excesso de radicais livres, que pode ser danoso ao organismo. A pista não conseguiu explicar diretamente a anencefalia, ainda hoje de causa incerta, mas pôs os pesquisadores num terreno fértil e elucidou o papel dos radicais livres em uma série de outros males.

Os radicais livres são indispensáveis para a formação do ácido desoxirribonucléico (DNA), o portador do código genético, e atuam na destruição de bactérias e tumores, por exemplo. Mas se comportam como vilões quando produzidos e utilizados de forma desequilibrada – numa condição conhecida como estresse oxidativo -, pois passam a destruir membranas celulares, DNA e enzimas, criando uma situação favorável ao avanço de doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer, e do processo de morte celular.

Poucos anos antes do episódio de Vila Parisi, Bechara conhecera numa palestra em São Paulo o pesquisador francês Adolf Michelson, do Instituto de Biologia Físico-Química, de Paris. Michelson havia constatado que a população rural da França apresentava níveis sangüíneos de uma enzima chamada superóxido dismutase, envolvida na eliminação de radicais de oxigênio, mais baixos que os dos parisienses. Em paralelo, Paulo Naoum, biólogo da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São José do RioPreto, haviadescoberto no sangue dos moradores de Cubatão um excesso de metaemoglobina, um dos compostos formados quando a hemoglobina, molécula que transporta oxigênio no sangue, reage com óxidos de enxofre. “Como havia muito óxido de enxofre no ar, Naoum atribuiu as alterações à poluição ambiental, mas não sabia explicar como modificava a quantidade das enzimas no sangue dos moradores de Vila Parisi”, diz o químico da USP.

Bechara juntou as pontas de cada estudo e mostrou que, no caso de Cubatão, eram os radicais livres que causavam estresse oxidativo, de acordo com o primeiro artigo brasileiro sobre o assunto, publicado em 1983 na Archives of Environmental Health. Depois, descobriu um dos compostos formadores de radicais livres: o ácido 6-hidroxidopamina (Ala). Precursor do grupo heme – pigmento vermelho-acastanhado que faz parte da estrutura de proteínas como a hemoglobina e a mioglobina (estocadora de oxigênio) -, o Ala reage rapidamente com o oxigênio e produz grande quantidade de radicais livres.

Seus achados integraram-se à pesquisa de fototerapia de cânceres de boca, pele e reto, que agora conta com a alternativa de aplicações de Ala diretamente no tecido tumoral, seguidas de irradiação. Também embasaram uma proposta de terapia antioxidante, hoje em fase de experimentação, para a porfiria aguda intermitente, uma doença de origem genética associada ao excesso de Ala.

Com prevalência maior na Escandinávia e na Inglaterra, a porfiria aguda intermitente tem características sutis: na maioria das vezes, os portadores não manifestam a enfermidade. Durante toda a vida, podem ter apenas uma ou duas crises agudas, com fortes dores abdominais, fraqueza muscular, alucinações e um sinal característico: a urina fica cor de vinho. Podem também desenvolver câncer hepático, mais freqüente quanto maior o número de ataques, principalmente entre as mulheres. A porfiria é atribuída à deficiência na produção de uma enzima chamada Ala desaminase e ao acúmulo de Ala no sangue, no cérebro e no fígado.

Da porfiria à esquizofrenia
Bechara decidiu estudar esse tipo de porfiria após conhecer outro trabalho do francês Michelson, que mostrava uma exacerbação dos níveis de radicais livres em crianças francesas autistas e em portadores de esquizofrenia e distúrbio bipolar. O químico testou a hipótese de o excesso de Ala ser a causa desses transtornos mentais num trabalho feito em colaboração com o médico Paulo Marchiori, do Hospital das Clínicas (HC), e com a bioquímica Dulcinéia Abdalla, ambos da USP. Avaliaram tanto os pacientes com porfiria aguda intermitente sob crise aguda, quando manifestam sintomas neurológicos e alucinações, quanto os portadores de esquizofrenia e de bipolar tratados no HC e no Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Os exames de sangue exibiram um aumento das enzimas antioxidantes, que procuram deter o excesso de radicais livres – o mesmo quadro dos moradores de Vila Parisi.

Aos poucos, tornava-se claro que os radicais causavam danos químicos a outras moléculas. Quando exposta ao Ala, a oxiemoglobina se transforma em metaemoglobina, a ferritina (proteína que estoca ferro no organismo) libera íons de ferro, e a molécula de DNA se quebra sob o ataque dos radicais livres. Sob ação do excesso de Ala, a mitocôndria, um dos compartimentos da célula, incha e pára de produzir adenosina trifosfato (ATP), composto essencial para a produção de energia. Passo a passo se comprovava a hipótese de Bechara de que radicais livres derivados do Ala estão ligados às bases moleculares das porfirias.

Maistarde, outras evidências: estudos feitos em conjunto com Paolo Di Mascio, do Instituto de Química da USP, mostraram que ratos tratados com Ala apresentavam de cinco a seis vezes mais bases do material genético danificadas que um roedor normal, além de acumularem ferro no fígado e no cérebro. “Isso pode estar envolvido na gênese do câncer de fígado, uma característica da porfiria aguda intermitente”, observa Bechara. Há pouco tempo, Bechara e seus colaboradores demonstraram que flavonóides, substâncias naturais encontradas na uva e no chá verde, podem cooperar com a vitamina C na proteção das mitocôndrias contra o ataque de peróxidos, substâncias geradoras de radicais livres. Propuseram ainda que a aminoacetona, um derivado do aminoácido treonina, funcionava como fonte de radicais livres e mobilizadora de ferro no diabetes melito.

A pesquisa novamente se ramificou em março, quando Cassius Stevani, ex-aluno de Bechara durante o pós-doutorado e pesquisador da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (Unifieo), descobriu cogumelos luminescentes no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), sul do Estado de São Paulo – há tempos a bioluminescência, um processo químico por meio do qual se produz luz, havia se mostrado um bom modelo de estudo da ação dos radicais livres. Stevani descobriu cinco espécies ainda não descritas cientificamente no Brasil, que vivem em árvores ou sobre folhas em decomposição. Segundo Stevani, ainda não se conhecem seus mecanismos químicos de produção de luz: “É algo totalmente novo”.

Segredos dos vaga-lumes arco-íris
Químicos e biólogos da USP passaram muitas noites no cerrado mato-grossense revirando troncos apodrecidos, barrancos e cupinzeiros em busca de vaga-lumes diferentes, que emitem luzes cuja cor varia do verde intenso ao vermelho. Para a equipe de Etelvino Bechara, a pesquisa sobre as origens da bioluminescência desses insetos corria em paralelo à dos radicais livres. As linhas de trabalho finalmente se juntaram quando a bioluminescência se revelou um modelo biológico para estudar o acúmulo de radicais livres nos organismos, o chamado estresse oxidativo: a produção de luz depende diretamente de oxigênio, bastante escasso no interior dos troncos apodrecidos onde vivem as larvas de insetos luminescentes.

Ao estudar larvas de vaga-lume, a equipe de Bechara descobriu que a bioluminescência é fenômeno auxiliar das enzimas antioxidantes, que protegem as larvas contra os efeitos do excesso de oxigênio, a principal fonte de radicais livres. Como os químicos da USP demonstraram, a substância luminescente produzida pelo vaga-lume, chamada luciferina, provavelmente tem um papel antioxidante, além de emitir luz. Quando se encontra em uma atmosfera rica em oxigênio, o inseto aumenta a produção de luciferase, uma enzima que acelera a produção da luz, da própria luciferina e de enzimas antioxidantes. “Essa é uma forte indicação de que, nos vaga-lumes, a luciferina pode funcionar como antioxidante natural contra os radicais livres”, comenta Bechara. Ao mesmo tempo, pesquisadores belgas demonstraram um comportamento similar da celenterazina, a luciferina de celenterados (águas-vivas) luminescentes, que também sofrem com os radicais livres.

Nos últimos anos, os biólogos da equipe de Cleide Costa, do Museu de Zoologia da USP, e do Museu de História Natural da Basiléia, na Suíça, que faziam parte desse grupo, descreveram três espécies novas de uma família muito rara de besouros luminescentes, os fengodídeos, entre eles o Phrixothrix viviani. Esse inseto é um modelo único para o estudo químico da relação entre a estrutura da luciferase e a cor da bioluminescência, por emitir duas cores diferentes ao mesmo tempo: vermelha da lanterna cefálica e verde das lanternas abdominais (lanterna é o órgão emissor da luz luminescente). De uma das expedições mais produtivas, realizada no ano passado, os pesquisadores trouxeram 700 larvas e adultos de Pyrearinus termitilluminans. Bechara e Graham Timmins, da Escola Médica Dartmouth, nos Estados Unidos, demonstraram que o consumo de oxigênio está diretamente associado à emissão de luz nas larvas dessa espécie.

Cor variável
Em outro artigo, publicado no Insect Biochemistry, Bechara e Marcelo Barros, também do Instituto de Química, registraram a variação na produção de enzimas antioxidantes nessas larvas e concluíram: a atividade enzimática está associada não apenas à produção de luz, mas principalmente aos momentos de atividade física intensa, como cavar túneis ou procurar alimentos. E há caminhos bioquímicos coordenados que permitem minimizar o excesso de radicais livres resultantes da oxigenação dos tecidos. Também observaram um fenômeno inédito que ocorre com o Macrolampis omissa, uma espécie de vaga-lume que se distingue pelo tamanho da lanterna, que ocupa quase a metade do abdômen. Naturalmente amarela, a lanterna fica alaranjada e a luz emitida é amarela durante o vôo nupcial e a cópula, que se dá na grama de charcos, na hora do lusco-fusco. Mas, à noite, eles se acasalam no terreno seco – e a luz emitida é verde-amarelada.

O Projeto
Estresse Oxidativo Associado a Porfirias Caracterizadas por Sobrecarga de Ácido5-Aminolevulínico (nº 96/00154-0); Modalidade Projeto temático; Coordenador Etelvino José Henriques Bechara – Instituto de Química da USP; Investimento R$ 62.495,20 e US$ 216.148,80

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