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Pecuária

O avanço da boiada

Genoma funcional bovino deverá ampliar vantagem competitiva do Brasil no mercado internacional de carnes

Em 2002, o Brasil contabilizou 183 milhões de cabeças de gado e passou a ter o maior rebanho comercial do mundo. Neste ano, vai assumir o primeiro lugar entre os países exportadores de carne bovina. Com vendas previstas de 1,2 milhão de toneladas, passará à frente da Austrália – cujas vendas externas não devem ultrapassar 950 milhões de toneladas por conta de uma forte seca – e dos Estados Unidos – que têm mantido a marca histórica de 1,05 a 1,1 milhão de toneladas. Essa performance, nada desprezível para um país que há 25 anos registrava déficit na balança comercial do produto, deve ser creditada, em larga medida, à pesquisa científica desenvolvida por universidades e institutos especializados em parceria com associações de criadores, que garantiram o melhoramento genético, o aumento da produtividade e da sanidade do rebanho, agregando valor às exportações brasileiras. Só no ano passado, o comércio externo da carne bovina correspondeu a US$ 1,1 bilhão.

Se a essa cifra forem somados os resultados das exportações de toda a cadeia produtiva – couro e calçados de couro -, chega-se à receita de US$ 3,2 bilhões, num total de US$ 60,3 bilhões de exportações brasileiras no período.Essa vantagem competitiva obtida pelo país deverá se ampliar com os resultados das pesquisas do Genoma Funcional do Boi, lançado no dia 7 maio. O projeto vai identificar genes bovinos dos animais da raça nelore, variedade zebuína (Bos indicus) – que representa 80% do rebanho brasileiro – para desenvolver produtos e tecnologias que permitam superar limitações relacionadas ao crescimento, qualidade da carne, sanidade e eficiência reprodutiva que impedem uma ainda maior competitividade da pecuária nacional.

“É um salto histórico para o país”, afirmou o governador paulista Geraldo Alckmin, presente ao lançamento do projeto. Os estudos serão desenvolvidos por pesquisadores do Programa Genomas Agronômicos e Ambientais (AEG), em 20 laboratórios de pesquisas. O projeto está orçado em US$ 1 milhão, financiado pela FAPESP em parceria com a Central Bela Vista de Genética Bovina (veja revista Pesquisa FAPESP, edição nº 87). “O objetivo final é melhorar a qualidade da carne para conseguir bons preços e novos mercados”, diz Jovelino Mineiro, da Central Bela Vista. “A biotecnologia abre uma janela de novas oportunidades para o país”, acrescenta José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP.

Além de ampliar a produtividade do rebanho e sustentar a posição de destaque do Brasil no comércio internacional de carnes, os estudos do genoma do boi vão permitir que o país se adiante às exigências da Organização Mundial do Comércio (OMC), responsável pelo estabelecimento de regras sanitárias, genéticas ou zootécnicas. Essas normas se baseiam em pesquisas desenvolvidas por países com conhecimento científico mais adiantado. “Com o genomafuncional, poderemos nos antecipar e até estabelecer novas regras que garantirão ainda mais vantagens no mercado mundial de carnes”, prevê o secretário estadual de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo, João Carlos de Souza Meirelles. Pecuarista, o secretário é um observador qualificado: foi presidente do Conselho Nacional de Pecuária de Corte, do Comitê Nacional de Saúde Animal, vice-presidente do Secretariado Mundial de Carnes e coordenador do Fórum da Cadeia Produtiva da Pecuária Bovina do Mercosul, entre outros.

Dos catálogos à pesquisa
O estudo do genoma funcional representa um extraordinário avanço nas pesquisas com bovinos, iniciadas no século passado, quando foram criados os primeiros livros de registro genealógico do rebanho brasileiro. “A primeira informação necessária para fazer melhoramento genético é saber quem são o pai e a mãe do animal”, comenta Antônio do Nascimento Rosa, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Gado de Corte, com sede em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O primeiro desses livros, datado de 1904, foi lançado em Bagé, no Rio Grande do Sul, e catalogava bois e vacas de origem européia (Bos taurus).

Em 1918 foi publicado o livro de registro da marca zebuína (Bos indicus), pela Sociedade Rural do Triângulo Mineiro, atual Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), raça original da Índia introduzida no país no começo do século por um grupo de criadores. A partir dos anos 50, começaram a ser realizadas no Brasil as chamadas Provas de Ganho de Peso (PGP). “Animais de diferentes rebanhos eram reunidos em regime de confinamento ou no pasto e expostos às mesmas condições para saber quem ganhava peso mais rapidamente”, diz Rosa. A partir daí, era feita a seleção dos melhores animais, usados para reprodução.

Genética clássica
Na década de 60, registra-se o primeiro grande impulso oficial à produção brasileira com a criação do Programa Nacional de Desenvolvimento da Pecuária, quando o país desenvolveu um ciclo frigorífico e passou a investir em tecnologias de produção para melhorar as condições sanitárias do abate. Dez anos depois tiveram início as pesquisas clássicas de genética quantitativa aplicada, implementadas por universidades, instituições de pesquisa e associações de criadores para o melhoramento do rebanho. Esses programas tinham por objetivo produzir animais com características comerciais superiores, ou seja, com crescimento mais rápido, reprodução precoce e carne de melhor qualidade.

“Hoje, depois de mais de três décadas de pesquisa, podemos dizer que o Brasil é um centro mundial de referência em pesquisa de melhoramento genético”, afirma Irineu Umberto Packer, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). O Centro Avançado de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio de Bovinos de Corte (antiga Estação Experimental de Zootecnia de Sertãozinho), pertencente ao Instituto de Zootecnia da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, um dos pioneiros nas pesquisas para a redução da idade de abate, tem registrado resultados científicos e práticos excelentes. “Constatamos um ganho de peso da ordem de 1% ao ano, ou 3 quilogramas, nos animais selecionados. Com isso, a garrotada, com 1 ano de idade, pesa cerca de 60 quilogramas a mais do que há 20 anos”, diz Alexander George Razook, que lidera o programa de seleção de bovinos zebuínos (nelore, guzerá e gir) com base no peso pós-desmama e seus efeitos sobre a conversão alimentar, reprodução e carcaça, iniciado em 1976. “Essa diferença se traduz no peso de abate e de carcaça”, diz ele.

Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, também vêm realizando, desde 1991, pesquisas para acelerar a precocidade dos animais. “No Brasil, os bovinos levam, em média, de três a quatro anos para serem abatidos. Com as nossas pesquisas sobre novilho superprecoce, reduzimos esse tempo para 13 meses. Quanto mais novo o animal vai para o abate, maior a maciez de sua carne”, explica Antônio Carlos Silveira, que coordena o projeto temático Crescimento de Bovinos de Corte no Modelo Biológico Superprecoce, financiado pela FAPESP. Iniciado em 1999, o projeto conta com a participação da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinária (FCAV) da Unesp de Jaboticabal, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, da Esalq e do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu. “Agora, queremos fazer o novilho superprecoce usando apenas animais da raça nelore, que, reconhecidamente, são considerados tardios. Temos que descobrir como acelerar a velocidade de crescimento dos tecidos ósseos e musculares do animal e, para isso, o Genoma Funcional do Boi vai nos ajudar muito”, diz o pesquisador.

A Embrapa Sudeste Pecuária também tem trabalhado para elevar a produtividade da pecuária nacional a partir de cruzamentos entre diversas raças, mantendo a base do nelore, explica Maurício Mello de Alencar. Estão sendo avaliados cinco sistemas de cruzamento, envolvendo machos das raças nelore, canchim, angus e semental e fêmeas da raça nelore ou de alta mestiçagem de nelore. A pesquisa faz parte do projeto temático Estratégias de Cruzamentos, Práticas de Manejo e Biotécnicas para Intensificação Sustentada de Produção de Carne Bovina, igualmente financiado pela FAPESP.

“Trata-se de um projeto de produção animal que envolve melhoramento genético baseado em cruzamentos comerciais”, afirma Alencar. “Nosso objetivo é produzir bezerros biologicamente diferentes para estudar sua eficiência.” Depois do nascimento, os animais são avaliados em vários aspectos (genéticos, nutricionais, reprodutivos, sanitários e econômicos) ao longo de sua vida. O pesquisador explica que os bezerros são produzidos em épocas diferentes do ano para que seja possível estudar técnicas de alimentação e manejo distintas. É um trabalho longo, cujos primeiros resultados deverão sair no próximo ano.

Melhoria das pastagens
Além dos esforços para aumentar a produtividade dos rebanhos, também se busca a melhoria das pastagens. “A média da produtividade animal no país é de 5 arrobas por hectare anuais e 1.000 litros de leite por hectare ao ano. Esses números poderiam chegar, respectivamente, a 58 arrobas e 45 mil litros de leite, dependendo do grau de intensificação do uso dessa pastagem”, revela Moacyr Corsi, da Esalq, que há 35 anos investiga formas de incrementar as pastagens brasileiras e que coordena o projeto temático Caracterização e Avaliação de Pastagens Irrigadas e seu Manejo (Capim), financiado pela FAPESP.

A qualidade do pasto depende do aumento da produtividade da planta forrageira e de seu manejo. “No Brasil, a média de eficiência no pastejo está ao redor de 30% a 50%, o que significa que de 70% a 50% da forragem produzida é perdida. É possível elevar o nível de eficiência para 70% ou 80%”, prevê Corsi. O aumento da produção do pasto pode ser feito com a melhora das condições do solo, com o uso de calagem e a aplicação de fertilizantes, como nitrogênio, potássio e micronutrientes. No Paraná, em Goiás e em São Paulo, tem-se alcançado produtividade ao redor de 60 arrobas por hectare ao ano em pastagens não irrigadas e acima de 70 arrobas em pastagens irrigadas”, afirma Corsi.

Os resultados econômicos e comerciais das pesquisas científicas são incontestáveis. Em 20 anos, o índice de natalidade medido na desmama – geralmente aos 9 meses de vida do bezerro – caiu de 72% para 50%; a idade média do abate foi reduzida de cinco para três anos e meio; e o rendimento da carcaça – medido pela quantidade de carne e ossos depois de o animal ter sido eviscerado e seu couro retirado – aumentou de 190 quilogramas para 220 quilogramas. Esse ganho de produtividade permitiu ao país produzir, no ano passado, 8,2 milhões de toneladas de carne, registrar um consumo interno de 37 quilogramas de carne per capita, “um dos mais altos do mundo”, de acordo com Meirelles, e exportar quase 1 milhão de toneladas. Foi esse aumento constante da produtividade do rebanho que permitiu ao Brasil, em 1978, mudar a inflexão da curva de importação e exportação.

Até então, o país exportava carne bovina para a Europa, principalmente para a Inglaterra, mas importava um volume ainda maior da Argentina e do Uruguai. “Em 1979 nos tornamos exportadores líquidos e começamos a pensar de maneira estratégica a pecuária brasileira”, lembra o secretário. A partir do início da década de 80, organizou-se a Cadeia Produtiva da Pecuária de Corte, no âmbito do Conselho Nacional da Pecuária de Corte. O conselho organizou os setores produtivos – “do bezerro ao bife, passando pelo calçado”, resume o secretário -, alavancou a pesquisa científica, a produção de insumos, os frigoríficos abatedouros, os curtumes e o setor de artefato e calçados de couro. “Hoje, esse conjunto de atividades constitui a cadeia produtiva com o maior número de empregos diretos do país: 8,5 milhões de trabalhadores”, afirma Meirelles. A pecuária bovina representa, atualmente, 2 de cada 3 hectares ocupados com atividades rurais, ou seja, dos 3,8 milhões de quilômetros quadrados em que sedesenvolvem atividades agrícolas no país, 2,6 milhões se destinam à pecuária.

Epopéia zoossanitária
Mas, para conquistar o mercado externo de carne bovina, o Brasil teve que declarar guerra à tuberculose, à brucelose e, sobretudo, à doença que aterroriza os pecuaristas: a febre aftosa. Vários países não importam carne in natura de regiões onde há febre aftosa, entre eles a União Européia, que é atualmente o principal importador da carne brasileira. As pesquisas científicas e campanhas oficiais de vacinação contra a febre aftosa garantem, hoje, que 140 milhões de cabeças, de um rebanho de 183 milhões, cresçam em zonas livres da doença, num circuito produtor que vai do Rio Grande do Sul à Bahia, passando por Tocantins, Mato Grosso, Rondônia. A expectativa é que a doença esteja completamente erradicada em 2005.

Pesquisas recentes também prometem avançar o combate à brucelose bovina, que provoca aborto em vacas a partir do quinto mês de gestação. A vacina mais usada no Brasil é produzida a partir de microrganismos vivos, mas Sérgio Costa Oliveira, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolveu uma vacina de DNA, já aplicada com sucesso em camundongos, que começa a ser testada em bovinos. “Na pesquisa genética, evoluímos de forma espetacular. Do ponto de vista sanitário, a evolução do rebanho bovino brasileiro talvez tenha sido a maior epopéia zoossanitária da história, considerando a escala de rebanho e as dimensões do território nacional”, comemora Meirelles. “Deixamos, definitivamente, de ser vendedores de balcão.”

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