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Engenharia de materiais

Drible no radar

Blindagem torna aviões militares imperceptíveis aos detectores e elimina interferências eletromagnéticas

MIGUEL BOYAYANNo CTA, câmara para testes de material absorvedor de radiaçãoMIGUEL BOYAYAN

Dentro de pouco tempo, fazer aeronaves invisíveis aos radares não será mais exclusividade de países detentores de conhecimento avançado na área militar. O Instituto de Aeronáutica e Espaço do Centro Técnico Aeroespacial (IAE/CTA), de São José dos Campos, está desenvolvendo vários tipos de um produto chamado Material Absorvedor de Radiação Eletromagnética (Mare), tradução brasileira para o termo Radar Absorbing material (RAM). Trata-se do mesmo material utilizado na pintura de aviões da força aérea dos Estados Unidos, como o F-117 e o B-2, conhecidos por se tornarem imperceptíveis a radares. A técnica baseia-se na absorção, pelo material, da energia eletromagnética emitida pelo radar, que é transformada em energia térmica, facilmente dissipada, impedindo assim a reflexão de sinais e a conseqüente detecção. Embora o Mare tenha fins militares, porque foi solicitado pelo Ministério da Defesa, existe um grande potencial de uso em aplicações civis.

No setor aeronáutico, o produto pode ser empregado na blindagem interna de aviões civis, no isolamento dos cabos elétricos e na vedação das cabines de comando, evitando interferências na instrumentação das aeronaves como as provocadas por aparelhos celulares. Da mesma forma, antenas de radiotransmissão podem receber anéis absorvedores para eliminar ondas eletromagnéticas indesejáveis que interferem nos sistemas de comunicação. Antenas de transmissão e recepção e os próprios aparelhos de telefonia celular também podem ser revestidos com esse material absorvedor de energia eletromagnética.

Outros exemplos de usos do Mare estão no revestimento interno dos fornos de microondas, com o objetivo de impedir o vazamento da radiação, e na blindagem eletromagnética de marcapassos. Na pesquisa científica e na indústria é útil no isolamento de câmaras anecóicas, usadas para testar a reflexão de ondas eletromagnéticas. O isolamento desse tipo de radiação pode ser feito também na construção civil, utilizando-se revestimentos do material em salas ou edifícios com material eletrônico sensível a interferências.

Atualmente, o material que cumpre funções semelhantes ao Mare ainda é importado pelo Brasil. Mas ele pode ser analisado e caracterizado no próprio CTA, que possui laboratório apropriado para testes. Desde o início das pesquisas com o Mare, o IAE já recebeu cinco prêmios nacionais, solicitou nove pedidos de patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e despertou o interesse de empresas para a produção do material, embora nenhum contrato tenha sido fechado.

Borracha e espuma
Sob a coordenação da pesquisadora Mirabel Cerqueira Rezende, chefe da Subdivisão de Compósitos da Divisão de Materiais do IAE, o Mare está sendo desenvolvido na forma de tintas, mantas de borracha e espumas, que recebem a adição de absorvedores com grande capacidade, como ferritas, materiais carbonosos e, mais recentemente, polímeros condutores de microondas, que são mais leves e ideais para a pintura de aeronaves. Para o setor militar aeronáutico, o produto é estratégico e poderá ser empregado no revestimento de aviões, armamentos e antenas. Além de tornar invisíveis os aviões aos radares, o material absorvedor vai auxiliar na eliminação de radiações eletromagnéticas nocivas a esses equipamentos.

A tecnologia desse material absorvedor é utilizada pelos Estados Unidos, Rússia e Inglaterra em aviões, navios, submarinos, plataformas e veículos terrestres e já está em desenvolvimento também em Israel, Espanha e França. De acordo com Mirabel, o Brasil é o primeiro a investir nesse tipo de pesquisa na América Latina. Até hoje, o país importou material absorvedor, principalmente à base de espuma, que é aplicado, por exemplo, na blindagem de câmaras anecóicas.

Algo mais arrojado, como o que está sendo desenvolvido no IAE, nunca foi sequer importado, por tratar-se de uma tecnologia estratégica, relacionada à questão da soberania nacional pelos países que a detêm. Para entender esse aspecto, é preciso compreender que um radar capta as ondas rebatidas de uma aeronave e detecta não apenas o tipo, mas até mesmo o país de origem. Quando revestida com material absorvedor, a radiação que incide sobre o alvo é absorvida, tornando o sinal fraco e impedindo sua identificação pelos sistemas de dados dos radares.

A tecnologia do Mare em desenvolvimento no IAE/CTA é efetiva em freqüências acima de 2 gigahertz (GHz), não impedindo, porém, a detecção de aeronaves por radares mais antigos, que operam, por exemplo, na faixa de 500 megahertz (MHz). Contudo, sua eficácia consiste no fato de, atualmente, cerca de 90% dos radares do mundo trabalharem em freqüências acima de 1 GHz ou ainda, preferencialmente, de 8 GHz a 12 GHz, na chamada banda larga. “Procuramos desenvolver o material a partir da combinação de aditivos que aumentem a absorção de radiação em larga faixa de freqüência, como os polímeros condutores, elevando sua qualidade e eficiência”, avalia Mirabel.

Para a pesquisadora, o desafio atual é fazer as medições utilizando protótipos revestidos com Mare em campo aberto, emitindo, recolhendo e interpretando os sinais dos radares. “Isso é muito importante porque, embora o desenvolvimento do Mare envolva um controle rígido, é preciso fazer medições em ambientes naturais, controlando a umidade e a temperatura do material, pois esses parâmetros podem alterar a permeabilidade do sistema e, conseqüentemente, seu comportamento de absorção de microondas”, explica Mirabel. “Por isso, estamos iniciando um sistema de medição completo do material, antes de pintarmos as aeronaves, porque o potencial dos absorvedores de radiação eletromagnética só será totalmente conhecido se conjugado com outros fatores, como a geometria dos aviões.”

Em 2004, está prevista a montagem de um reator para a produção do Mare em maior escala, viabilizando ensaios de campo, caso seja aprovado um projeto com recursos de R$ 2,2 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Nessa etapa, será firmado também um acordo com uma empresa do setor aeronáutico para que os materiais produzidos em escala piloto sejam utilizados pelo setor privado.

Sem segredos
Para a pesquisadora, a grande conquista do Mare não está apenas no domínio da técnica para tornar as aeronaves invisíveis a radares, mas na capacitação tecnológica. “Como não trabalhamos em segredo, mas em parceria com universidades e agências de financiamento, formamos pesquisadores nessa área, o que é um diferencial para o país.” Além de seis bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, o Laboratório de Caracterização Eletromagnética do CTA foi reformado com financiamento da FAPESP.

Durante as pesquisas, o IAE formou parcerias com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), a Universidade Federal de Goiás (UFG), a Universidade Estadual de Maringá (UEM) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de um convênio internacional com o Instituto de Engenharia de Energia de Moscou, da Rússia, na área de materiais absorvedores, inclusive com intercâmbio entre pesquisadores.

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