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Astrofísica

Brilho único

Como a estrela Eta Carinae ganhou importância e atenção de físicos de todo o mundo

EDUARDO CESAREspectrógrafo de um grupo amadorEDUARDO CESAR

Finalmente terminou a jornada solitária de um homem que durante quase 15 anos carregou suas próprias ideias e desafiou reputações científicas sólidas para provar que suas conclusões poderiam estar certas. O astrofísico paranaense Augusto Damineli, professor da Universidade de São Paulo (USP), havia começado em 1989 a observar a Eta Carinae, a maior e mais luminosa estrela de nossa galáxia, a Via Láctea, e nos anos seguintes encontrou um fenômeno que ainda não havia sido descrito: uma brutal redução de brilho dessa estrela, que a cada dia perde uma quantidade de luz equivalente à emitida por centenas de sóis. No início, os especialistas dos Estados Unidos e da Itália que trabalhavam havia décadas com essa estrela não o levaram a sério. Pareciam indignados com a possibilidade de um brasileiro, com o que chamavam de um telescópio da selva, ter observado o que eles próprios nunca viram, com equipamentos bem mais poderosos.

Damineli observou pela primeira vez em junho de 1992 o apagão – a perda de luminosidade – em algumas faixas de radiação e concluiu no ano seguinte que o fenômeno deveria se repetir a cada cinco anos e meio. No final de 1997, quando o apagão se repetiu, atestando suas previsões, contou com o apoio de uns poucos físicos norte-americanos e brasileiros, mas só este ano é que conseguiu mesmo inverter o jogo.

No final de junho, pelo menos 50 astrofísicos do Brasil, dos Estados Unidos e da Argentina, com base nos resultados apurados por oito telescópios de superfície e cinco espaciais, confirmaram a brutal perda de brilho da Eta Carinae e fortaleceram o modelo que o pesquisador brasileiro havia formulado para explicar o apagão: situada a 7.500 anos-luz da Terra, o equivalente a 68 quatrilhões de quilômetros, a Eta Carinae não seria uma, mas duas estrelas – uma menor e mais quente, com temperatura de cerca de 30 mil graus, e outra três vezes maior, mais fria (15 mil graus) e pelo menos dez vezes mais brilhante. As duas vivem envoltas por ventos que colidem e geram temperaturas de 60 milhões de graus e por uma densa nuvem de gases e poeira – uma nebulosa – com uma extensão de 4 trilhões de quilômetros, equivalente a 400 vezes o diâmetro do sistema solar.

Com um raio equivalente à distância do Sol à Terra, essa estrela pode ser vista normalmente por meio de binóculos, à direita do Cruzeiro do Sul, embora o apagão só possa ser registrado com equipamentos mais refinados, por ocorrer em canais específicos de luz – as linhas espectrais -, nas faixas de rádio, raios X e infravermelho. Cogita-se agora que a perda de luminosidade seja uma conseqüência da aproximação máxima entre as duas estrelas, o chamado periastro, que ocorreria a cada cinco anos e meio: é quando a estrela menor encobre quase metade da outra. Os físicos pensaram durante anos que se tratava de um eclipse, mas, em vez de todas as faixas de luz emitidas por diferentes elementos químicos desaparecerem ao mesmo tempo, como acontece num eclipse, somem apenas algumas, e umas antes das outras, como se só alguns canais de televisão saíssem do ar.

Mergulho nos ventos
Pensando com base no modelo binário, a estrela menor, cercada por uma atmosfera rarefeita, mergulha nos densos ventos que formam uma espécie de atmosfera estendida em torno da estrela maior. À medida que a estrela menor entra nos ventos da estrela maior, desaparecem os sinais de alta energia, emitidos por átomos da própria estrela menor, mas permanecem inalterados os canais de baixa energia, vindos da estrela principal.

Seus cálculos indicam que a estrela menor, normalmente distante 4 bilhões de quilômetros da maior, chega a 300 milhões de quilômetros no momento de maior aproximação. “Aparentemente”, diz ele, “nesse momento de máxima aproximação, a atração da gravidade entre as duas estrelas é tão forte que surgem ondas e erupções gasosas na superfície das duas, em conseqüência de um efeito de maré de uma sobre a outra.” Todo esse movimento de entrar na atmosfera da estrela maior e sair dela demora cerca de dois meses. O apagão deste ano, por exemplo, começou vagarosamente em março, atingiu o ápice em 25 de junho e terminou em setembro, após o brilho da estrela ter diminuído o equivalente a 20 mil sóis – algo impressionante, mas que não é lá grande coisa diante de sua luminosidade, de 5 milhões de sóis. Mas os canais de alta energia se reacenderam de modo lento, como uma pessoa que desmaia e recupera a consciência aos poucos. Para Damineli, o fato de a estrela não voltar a brilhar como antesindica que ela arrasta consigo pedaços da outra.

A megaoperação de acompanhamento do apagão deste ano trouxe um pouco de tranqüilidade, além do reconhecimento científico internacional, a esse paranaense turrão, acostumado a desafiar a própria sorte. Quando criança, morou numa tapera de tábuas e chão batido, num sítio à beira de um rio e de uma mata no município de Ibiporã, no norte do Paraná hoje com 20 mil habitantes. Aprendeu a trabalhar na roça aos 7 anos, mas não se conformou com a perspectiva de passar a vida com a mão na enxada e lutou até entrar na escola de freiras da cidade: aprendeu a ler só aos 9 anos. Damineli chegou a São Paulo em 1968, aos 21 anos, para terminar o então colegial. Trabalhou em obras, anotando a produção dos operários e a chegada de material, batalhou uma bolsa de estudos num cursinho e mudou de emprego: foi para um escritório e pôde estudar mais.

Solidariedade
Damineli tropeçou com os primeiros sinais intrigantes da Eta Carinae ao estudar estrelas de grande massa, em 1989. Em 1992 detectou o apagão, ainda sem saber o que era, ao notar que desaparecia um dos canais de alta energia, o de hélio, e dois meses depois voltava ao normal. Contou o episódio a um físico italiano, Roberto Viotti, que já havia estudado essas oscilações, e lhe propôs publicarem juntos essas observações. A reação não foi lá muito amistosa. “Ele disse que não poderia correr o risco de passar vergonha apresentando dados que dificilmente se repetiriam”, conta o físico paranaense. Para ele, as observações e outros estudos que demonstravam o apagão em diferentes faixas de ondas desde 1981 levaram à conclusão de que o fenômeno deveria se repetir a cada 2.014 dias. “Nos congressos, todos diziam que os resultados eram interessantes apenas para serem gentis”, recorda-se Damineli, que contou com o apoio da FAPESP desde 1992, por meio de projetos que somam R$ 60 mil.

As conversas não avançavam porque a Eta Carinae transgredia um dos modelos que rege o comportamento das estrelas, o Limite de Eddington, segundo o qual estrelas tão grandes não teriam outro destino a não ser evaporarem – por isso é que não existem estrelas mais luminosas. Eta Carinae não saía da chamada zona proibida do Limite de Eddington, onde as estrelas entram eventualmente, quando expulsam matéria, depois voltando à situação normal, mas em ciclos irregulares e imprevisíveis. “Mostrar que havia uma periodicidade na variação da luminosidade era como se um meteorologista dissesse que vai chover todos os domingos”, compara Damineli.

O tempo só melhorou em 1996, com a publicação de um artigo com essas ideias no Astrophysical Journal Letters. “Ninguém quis assinar esse artigo comigo”, diz, aparentemente sem ressentimentos. “A partir desse momento, eu não tinha por que acreditar mais nos dados dos cientistas renomados do que nos meus próprios dados.” No ano seguinte, o pesquisador brasileiro aliou-se a Peter Conti, da Universidade do Colorado, e a Dalton Lopes, do Observatório Nacional, do Rio de Janeiro, e, juntos, apresentaram o modelo de estrela binária numa revista eletrônica, a New Astronomy. Duas edições depois, Kris Davidson, astrofísico da Universidade de Minnesota, Estados Unidos, que acompanha a Eta Carinae desde os anos 60, levantou argumentos contrários a essa ideia. Logo após, Mario Livio, do Space Telescope Science Institute, Estados Unidos, pôs no ar outra hipótese: Eta Carinae não seria um sistema de duas estrelas, mas de três.

Como é que Damineli conseguiu ver o que os outros não viam? Ele diz que apenas usou a técnica mais adequada: ao telescópio com espelho de 1,6 metro de diâmetro do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Brasópolis, sul de Minas Gerais – o tal telescópio da selva -, adaptou uma câmera que capta o infravermelho, comprimento de onda próximo à luz visível, e mostra a estrela através da poeira da nebulosa. Este ano, durante quase 30 noites seguidas em junho e julho, Damineli, aos 56 anos, sentou-se à frente desse mesmo telescópio para observar sua estrela predileta, que passava no começo da noite, radiante num céu sem nuvens.

Nessas mesmas noites, apegados a um pequeno observatório construído em Mairinque, a 120 quilômetros de São Paulo, igualmente fascinados pela estranha estrela, estavam dois astrônomos amadores: o engenheiro químico Tasso Napoleão, de 54 anos, e um físico de 30, Rogério Marcon, técnico em óptica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em conjunto com Damineli, haviam planejado como acompanhar a estrela por meio de um equipamento capaz de diferenciar a luz emitida por cada elemento químico – um espectrógrafo – que eles próprios haviam construído. Até mesmo um equipamento menor que o chamado telescópio da selva registrou o apagão.

Mais surpresas
Durante o dia, a astrofísica Zulema Abraham e a pós-doutoranda Tânia Dominici, da USP, seguiam a Eta Carinae em outra faixa, a de rádio, por meio do radiotelescópio de Itapetinga, em Atibaia, a 60 quilômetros da capital paulista. Analisando os dados, Zulema descobriu algo incomum: a emissão em rádio resultante do choque dos ventos das estrelas, que se tornou visível devido ao apagão do gigantesco disco de gás ionizado (eletricamente carregado) que circunda a estrela, com uma extensão da ordem de cem vezes a órbita de Plutão. “Outras estrelas também têm regiões ionizadas, mas não tão intensas”, comenta Zulema, que colabora com Damineli desde o apagão de 1998. Em outra linha de pesquisa do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), Vera Jatenco-Pereira e seu aluno de doutorado Diego Falceta Gonçalves simularam a colisão dos ventos para explicar a produção de poeira.

De acordo com o que descobriram, a poeira pode se formar mais perto das estrelas e em muito menos tempo do que se acreditava: a colisão faz com que a temperatura dos gases dos ventos passe de 60 milhões de graus e os grãos de poeira se solidifiquem, a 1 mil graus, em menos de um dia. Cogita-se que esse processo de formação de poeira possa ser uma das razões do apagão da Eta Carinae. As informações que chegam abastecem também os estudos sobre a densa nuvem de gás e poeira – a nebulosa – que ganhou o nome de Homúnculo por lembrar um boneco primitivo.

Na verdade – será que nada é simples com essa estrela? -, existem dois homúnculos: o maior, formado a partir de uma gigantesca erupção de matéria ocorrida em 1843, e o menor, com um quarto desse tamanho, criado em outra erupção, bem mais discreta, em 1890. Também no IAG, Elisabete Gouveia Dal Pino, um de seus pós-doutorandos, Ricardo Gonzalez, e um colega da Universidade do México, Alex Raga, concluíram por meio de simulações numéricas como o homúnculo menor se formou, ao redor da região central da estrela, aproveitando os espaços deixados pelo homúnculo maior, que parece ter resultado da colisão dos gases da grande erupção de 1843 com o gás que já envolvia a estrela.

O que ninguém consegue explicar é como a Eta Carinae sobrevive a erupções tão intensas sem se virar do avesso. Em 1843, a estrela liberou uma quantidade de matéria equivalente a pelo menos três sóis e brilhou tanto que ficou visível à luz do dia, rivalizando com Sirius, a estrela mais brilhante do céu, a apenas 10 anos-luz da Terra. De acordo com a teoria, seria preciso explodir o núcleo para liberar tanta energia. No entanto, a estrela continuou a brilhar.

Eta Carinae está morrendo. Formada há cerca de 2,5 milhões de anos, deve apagar-se no máximo em 500 mil anos. Estima-se que a estrela maior de Eta Carinae tenha nascido com 120 massas solares e hoje, após tantas erupções, tenha cerca de 70, com uma margem de erro de 20 massas para mais ou para menos. Os astrofísicos querem descobrir sua massa com a maior precisão possível porque, a partir daí, pode-se estimar quanto tempo ainda tem de vida. Se morrer logo – daqui a 10 mil anos, talvez -, ainda com muita massa, poderá emitir uma brutal carga de raios gama, capaz de acabar com a vida no Hemisfério Sul da Terra.

Relógios e corações
É provável que mais astrofísicos se interessem pela estrela e decidam estudar o próximo apagão, cujo data de início Damineli já cravou: 15 de janeiro de 2009, com um dia para mais ou para menos. O estudo da maior estrela da Via Láctea agora faz parte de um projeto prioritário – um Tresaury, ou Tesouro – da Nasa, a agência espacial norte-americana, integrado por Damineli e por outros 12 astrofísicos norte-americanos, com um orçamento de US$ 10 milhões que cobre os custos das 72 órbitas do telescópio espacial Hubble ao longo do ano 2003. O que chegou do Hubble forma uma base de dados com 240 gibabytes de informações, equivalente a 340 CDs lotados de números, sobre o comportamento da luz, em todos os seus comprimentos de onda emitida por cada tipo de elemento químico da estrela – uma base de dados que aos poucos se torna pública e deverá alimentar os estudos sobre essa estrela.

Damineli chamou a atenção para essa estrela, mas o fato de suas ideias terem sido reconhecidas em outros países, ironicamente, pode gerar um efeito inverso ao que ele esperava. O pesquisador principal do projeto da Nasa é Kris Davidson, que quer provar justamente o contrário: os apagões não seriam periódicos e exatos como um relógio, mas apenas cíclicos e repetitivos como os batimentos cardíacos – uma diferença sutil no enfoque adotado até agora, mas capaz de derrubar a hipótese de estrela dupla. Para ele, só estrelas menores e mais jovens que a Eta Carinae poderiam apresentar oscilações tão rítmicas de luminosidade. Uma estrela de massa muito grande perderia o passo facilmente – como ele teria dito a Damineli em 1997, seria como um elefante tentar dançar samba.

O Projeto
Equipamentos Computacionais para Projeto em Astronomia Infravermelha
Modalidade
Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa
Coordenador
Augusto Damineli Neto – IAG/USP
Investimento
R$ 9.856,00

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