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Química

Mimetismo no laboratório

Substâncias sintéticas para uso em biossensores imitam o comportamento de compostos biológicos

MIGUEL BOYAYANMinilaboratório avalia saúde com uma única gota de sangueMIGUEL BOYAYAN

Borboletas, mariposas, camaleões e muitas outras espécies animais, ao menor sinal de aproximação do inimigo, mudam de cor ou de forma para se tornar parecidos com o ambiente ao redor e confundir os predadores. Essa capacidade de imitação, conhecida como mimetismo, inspirou pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a criar compostos sintéticos que reproduzem, com vantagem, a atividade de anticorpos, enzimas, células, receptores e outros componentes biológicos, fundamentais para o funcionamento dos biossensores, como aquele que mede o nível de glicose dos diabéticos, o glicosímetro portátil vendido em farmácias. Batizados de sistemas biomiméticos, os compostos sintéticos têm o objetivo de reconhecer íons ou moléculas das substâncias analisadas pelos biossensores, ampliando e facilitando a disseminação desse tipo de análise química. “Outro objetivo é garantir uma estabilidade (manutenção da atividade), por longos períodos, para esses dispositivos, evitando um dos pontos críticos que impede a comercialização desses produtos para um vasto leque de aplicações”, ressalta o professor Lauro Tatsuo Kubota, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, que encabeça a pesquisa com biossensores, dentro de um projeto temático coordenado pelo professor Elias Ayres Guidetti Zagatto, do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba.

A intenção dos pesquisadores é criar dispositivos que emitem respostas químicas traduzidas por componentes físicos que formam o conjunto do biossensor, como eletrodos, fibras ópticas e polímeros condutores. A escolha de enzimas, anticorpos ou células é pautada pela substância que o dispositivo foi programado para identificar em águas, bebidas, alimentos ou em exames de sangue ou urina. Como muitos desses componentes biológicos não são estáveis por um longo período, Kubota decidiu substituí-los por uma substância sintética estável, à base de cobre e de ferro, colocada em forma de monocamadas na superfície do biossensor. A escolha dos dois elementos ocorreu porque a parte ativa das enzimas que serão substituídas é constituída por esses metais.

Estabilidade ampliada
O novo material mostrou ser eficiente em relação à sensibilidade e à seletividade e preservou por mais de um ano a estabilidade do biossensor, diferencial que abre as portas do mercado ao produto. Até agora, os pesquisadores da Unicamp já desenvolveram diferentes compostos sintéticos, de interesse ambiental, farmacêutico e medicinal, que resultaram em três pedidos de patentes. A perspectiva é que os novos biossensores custem bem menos do que os usados atualmente.Os resultados obtidos pelos pesquisadores da Unicamp e do Cena, apresentados em um congresso internacional em Dusseldorf, Alemanha, em 2002, atraíram a atenção de pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos, que fizeram propostas para trabalhos em parceria. Kubota não descarta colaborações em outras linhas de pesquisa, mas diz que no caso dos biomiméticos sua equipe já está muito à frente. Algumas empresas também têm procurado os pesquisadores, mas nenhuma parceria comercial foi fechada até agora porque ainda é necessário investir um pouco mais para se obter o dispositivo no formato final para ser comercializado.

Além da pesquisa que envolve os compostos sintéticos, a equipe da Unicamp também trabalha em outra frente: o estudo de novos materiais para estabilizar os componentes biológicos, que tem se mostrado bastante promissor. Prova disso é que já conseguiu desenvolver um biossensor para avaliar o nível de álcool no sangue, à base de grafite, sílica modificada com nióbio e azul de metileno como corante, que atinge 99% de precisão e se mantém estável por pelo menos três meses. Prazo bem superior ao alcançado por trabalhos descritos na literatura, que chegaram a uma semana, no máximo. Quanto aos bafômetros existentes no mercado, eles não são totalmente precisos e só conseguem detectar o álcool em concentrações elevadas.Comparada aos métodos tradicionais, em que é necessário adicionar reagentes à amostra para produzir uma cor ou fluorescência que permitam a leitura, a análise com um biossensor é simples, rápida e econômica. Basta colocar uma amostra no dispositivo e fazer a medição, que consiste em converter a reação química em energia mensurável, como a da corrente elétrica. Essa corrente pode ser ainda traduzida por um processador e o resultado aparecer em um visor, que mostra a concentração da substância procurada. Nesse sistema, as quantidades de anticorpos ou enzimas utilizadas são mínimas, o que representa redução de custos, de resíduos poluentes e tempo de análise. Kubota explica que todo o processo é feito de forma muito seletiva. “Dentre várias substâncias presentes na amostra, somente a que se deseja é identificada.”

Controle fitoterápico
Além do glicosímetro, existem outros biossensores à venda no mercado, que avaliam uréia (funcionamento dos rins) e lactato (para avaliação da reação dos músculos após exercício físico). “Trabalhamos com a idéia de juntar vários dispositivos em uma única peça, para determinar lactato, creatinina, glicose e muitos outros parâmetros”, diz o pesquisador. Uma única gota de sangue será suficiente para fazer um check-up em um minilaboratório portátil.

As aplicações estudadas estendem-se por um vasto leque, que inclui a análise de medicamentos durante o processo de fabricação, das propriedades antioxidantes de fitoterápicos e o monitoramento do nível de estresse a partir da análise da atividade da enzima glutationa peroxidase, que atua no sistema de defesa do organismo no combate aos radicais livres. Quanto ao sistema que analisa medicamentos em forma de cápsulas e comprimidos, as pesquisas estão avançadas e resultarão em um pedido de patente. Normalmente essa avaliação é feita por amostragem em meio líquido, com a adição de vários reagentes, o que gera quantidade razoável de resíduos. Sem contar que osresultados não são conhecidos imediatamente. “Da forma como estamos propondo é possível analisar amostras em tempo real diretamente no sistema de produção, sem gerar resíduos”, diz Kubota. Dessa maneira, em vez de o controle ser feito por amostragem, abarcaria toda a produção. No caso de ser detectado algum problema no lote fabricado, seriam descartados apenas alguns comprimidos, e não todo o lote.

Outro biossensor desenvolvido no IQ da Unicamp com grande potencial de aplicação imediata é um dispositivo que analisa o princípio ativo de extratos de plantas, a partir do chá. Kubota ressalta que, embora tenha crescido muito no Brasil o controle de qualidade desse tipo de medicamento, é importante fazer uma análise mais acurada para avaliar se as propriedades apregoadas realmente permanecem no produto comercial, porque a preservação dos princípios ativos das plantas depende de vários fatores, como clima, solo, época de plantio e de colheita.O pesquisador começou a trabalhar na área de sensores e biossensores desde que foi contratado pela Unicamp, em 1994. Desde aquele ano, já trabalhou em várias pesquisas financiadas pela FAPESP, uma das quais envolveu um Projeto Temático, Estudo e Desenvolvimento de Novos Sistemas de Detecção para Aplicações Analíticas, encerrado em 2001. A idéia de participar de outro temático, desta vez com parceiros de áreas distintas, teve como objetivo a troca de conhecimento para tentar chegar a um consenso de qual o melhor sistema de análise para determinar e quantificar diversas amostras biológicas e ambientais.

Contribuição brasileira
Enquanto Kubota trabalha com biossensores, outro pesquisador do IQ da Unicamp, o professor Marco Aurélio Zezzi Arruda, também participante do mesmo projeto temático, dedica-se ao estudo de materiais naturais e sintéticos candidatos a aumentar a sensibilidade dos métodos de análise, com geração mínima de resíduos. Entre os naturais, estão a casca de arroz, a esponja vegetal (bucha) e o vermicomposto, produzido por alguns tipos de minhocas após a digestão de materiais como areia, solo e matéria orgânica. Eles apresentaram resultados promissores na detecção de pequenas concentrações de metais, como cobre, zinco, chumbo e cádmio, com custos operacionais reduzidos.

Os materiais naturais são colocados em pequenas quantidades (20 a 25 miligramas) em minúsculas colunas (tubos) de polietileno. Esses tubos são inseridos nos sistemas de análise em fluxo, ou flow-injection analysis (FIA), e todo o conjunto é acoplado à técnica de espectrometria de absorção atômica, que se baseia na absorção da radiação proveniente de lâmpadas específicas para cada elemento a ser determinado. A absorção é proporcional à concentração do metal presente na amostra. Dessa forma, pode-se quantificar metais presentes em alimentos, bebidas, materiais inorgânicos, biológicos, águas e efluentes (resíduos domésticos ou liberados pela produção industrial). Arruda explica que os materiais naturais conseguiram pré-concentrar os metais em pequenas quantidades, aumentando a sensibilidade do método analítico. A próxima etapa da sua pesquisa prevê o uso desses materiais em biossensores, para avaliar se efetivamente melhoram a eficiência dos métodos eletroquímicos.

Os materiais naturais para análise química, além dos compostos sintéticos desenvolvidos por Kubota, estão sendo avaliados também pelo professor Zagatto, que trabalha no aperfeiçoamento dos sistemas de análises por injeção em fluxo, aplicados pioneiramente nos laboratórios de Química Analítica do Cena nos anos 1970 pelo professor Henrique Bergamin Filho (1932-1996) e adotados atualmente em laboratórios de todo omundo. Zagatto, que fazia parte da equipe liderada por Bergamin, conta que essa contribuição permitiu a automação do processo de análises e a miniaturização desses sistemas.A tecnologia consiste em injetar a amostra em tubos capilares, que correm como água dentro de tubulações fechadas. Durante o transporte, ela se dispersa, e pode também sofrer diluições, o que permite a execução das diferentes etapas associadas ao método analítico, como adição de reagentes, separação e concentração. Tudo funciona como se o sistema analítico fosse um laboratório hermético, sem contaminação. A amostra processada passa por um medidor, que monitora o produto das reações químicas envolvidas. O resultado da análise é obtido em poucos segundos, o tempo necessário para a amostra percorrer os capilares, e o ritmo de amostragem é alto, em geral acima de cem amostras por hora.

Zagatto ressalta que a exploração dessa tecnologia tem descortinado um novo campo de conhecimento para a química analítica, como a monitoração de espécies químicas instáveis, ou seja, produtos que se decompõem em pouco tempo. Antes, os principais reagentes para análises químicas à venda eram fruto da seleção de matérias-primas, guardadas como um precioso segredo industrial, produzidas desde o século 18 com o objetivo de formar um composto estável no final. A estabilidade era imprescindível para o sucesso do método analítico, já que a coloração produzida deveria ser estável e refletir a concentração a ser determinada. Ocorre que, durante algumas aplicações, a amostra torna-se turva, mas na análise em fluxo a deterioração em nada compromete os resultados, pois a amostra é monitorada poucos segundos após sua inserção no analisador. Além disso, as amostras e os reagentes empregados situam-se na faixa de microlitros, o que significa economia de matéria-prima e pouca geraçãode resíduos, mesmo nos casos de produtos tóxicos.Até o final de outubro deste ano, data prevista para o encerramento do temático, ainda há muito trabalho pela frente, mas os resultados já obtidos com os compostos biomiméticos e materiais naturais mostram que eles já estão prontos para serem utilizados em vários tipos de análise química.

O projeto
Emprego de Novos Materiais e Diferentes Ambientes Reacionais para Melhoria em Sensibilidade e Seletividade na Análise de Amostras Biológicas e Ambientais (nº 99/12124-7); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Elias Ayres Guidetti Zagatto – Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena)/USP; Investimento R$ 221.063,00 e US$ 163.470,00

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