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Carta da editora | 98

Cenas do passado e do futuro

A reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP aborda uma nova e fascinante teoria ecológica elaborada no Brasil. Ela propõe que uma significativa mudança climática no meio do Holoceno, época geológica iniciada há cerca de 11 mil anos, seria o elemento-chave para explicar o desaparecimento, na América do Sul, e a razoável preservação, na África, de algumas das linhagens dos grandes mamíferos que geraram, entre outras espécies, os atuais elefantes, girafas e rinocerontes. Nos dois continentes, choveu horrores naquele período. Mas, segundo a nova teoria, que o editor especial Marcos Pivetta detalha, enquanto na África os formidáveis bichões conseguiam escapar das antigas áreas de savana-cerrado – seu habitat por excelência, que o excesso de água tornara inóspito – e migrar para novas zonas de vegetação aberta nas extremidades norte e sul do continente, na América do Sul eles não tiveram essa chance – não encontraram nenhum ambiente próximo compatível com seu estilo de vida e pereceram. O resultado é que hoje o maior mamífero no continente em que nos encontramos é a anta, grande, sem sombra de dúvida, com seus até 300 quilos, mas apenas um bichinho diante do imponente elefante africano, que pode ser 20 vezes mais pesado que ela. A teoria é, claro, polêmica, mas até por isso vale a pena mergulhar no delicioso texto que a apresenta.

Fronteiras que desafiam o desejo muito humano de conhecer e transformar a realidade nem sempre estão situadas a enormes distâncias no tempo ou no espaço. Às vezes é o mais próximo, mesmo o que nos constitui, que longamente resiste às investidas da razão científica. Um bom exemplo? O cérebro humano. Mas talento, persistência e uma determinação quase obsessiva de decifrar o que de fato se guarda por trás da fortaleza da caixa craniana vêm lançando novas luzes sobre a fisiologia, a potência e os males que acometem com freqüência o mais nobre dos órgãos do corpo humano.

É de algumas dessas luzes que trata o bloco de reportagens sobre neurociências. Na primeira, Pivetta, que no começo de março esteve em Natal acompanhando o simpósio de lançamento do ambicioso projeto de construção de um instituto internacional de neurociências naquela cidade, capitaneado por Miguel Nicolelis, relata as experiências de ponta desse cientista paulistano, radicado há 15 anos nos Estados Unidos, onde comanda um laboratório com 40 pesquisadores na Universidade de Duke, Carolina do Norte. A mais recente e fantástica delas, já divulgada pela imprensa brasileira, sugere que o homem, em tese, pode controlar robôs e próteses por meio da atividade elétrica de seus neurônios. Na segunda reportagem, o editor-assistente de Ciência Ricardo Zorzetto mostra avanços promissores na pesquisa brasileira de novos compostos destinados a reduzir os danos provocados pelo mal de Alzheimer, doença que devasta o cérebro e a vida de 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos no mundo inteiro, atingindo 40 milhões de pessoas, das quais 1,5 milhão no Brasil. Na terceira reportagem do bloco, o repórter Francisco Bicudo narra as experiências cirúrgicas que, valendo-se dos raios gama, vêm sendo feitas desde dezembro passado no país para tratar portadores de manifestações graves do transtorno obsessivo-compulsivo. Mais conhecido por TOC, esse problema psiquiátrico que transforma em inferno o cotidiano de seus portadores, afeta cerca de 3 milhões de pessoas no Brasil.

Para finalizar, é leitura altamente recomendável, para não dizer obrigatória, a entrevista com o crítico de literatura Roberto Schwarz, feita por Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor de filosofia da USP, coordenador científico do projeto da revista Pesquisa FAPESP, e por mim. A lucidez, o vasto conhecimento, a inteligência aguda de Schwarz, que lhe permitem atravessar questões polêmicas modulando com mestria o tom de sua fala entre o incisivo e o suave, transformam em genuíno prazer o ato de ouvi-lo – ou ler suas palavras.

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