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Extinção de peso

Teoria propõe que umidade excessiva alterou vegetação e eliminou grandes mamíferos na América do Sul, mas os preservou na África

EDUARDO CESARDê uma boa olhada nos dois paquidermes desta página, uma anta e um elefante. Apesar da visível diferença de porte, ambos são animais superlativos em seus continentes. Com no máximo 300 quilos e 2 metros de comprimento, a anta é o maior mamífero terrestre da América do Sul. Em seu habitat natural, suas medidas não são igualadas por ninguém. Ainda assim, sua configuração física é tímida perto da exibida por seu vizinho de página. Até 20 vinte vezes mais pesado que seu colega sul-americano, e com pelo menos o triplo do seu tamanho, o elefante é o ser não-marinho mais colossal da África – na verdade, de todo o mundo.

Na savana, a pescoçuda girafa é mais alta, o feroz leão carrega o título de rei dos animais, mas majestoso mesmo é o elefante. Por que o maior mamífero terrestre da América do Sul é tão menor do que o seu congênere africano? Porque aqui, como na maior parte do planeta, a chamada megafauna se extinguiu por completo, de forma ainda não muito bem explicada, em algum momento da história recente, enquanto lá algumas de suas linhagens, como as que geraram os atuais elefantes, girafas e rinocerontes, encontraram formas de se preservar ao longo do tempo. Certo, mas aí vem a verdadeira pergunta: se a América do Sul tinha, há uns 15 mil anos, uma fauna de mamíferos com diversidade e porte semelhantes à da África, por que, afinal, nossa megafauna pereceu e a deles não?

Segundo uma nova teoria, formulada pelo pesquisador Mario de Vivo, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), com a colaboração da bióloga e estudante de doutorado Ana Paula Carmignotto, uma significativa mudança climática pode ter sido o elemento-chave para explicar tanto o desaparecimento da megafauna na América do Sul como a sua razoável preservação na África: a quantidade acima do normal de água que despencou sobre os dois continentes no meio do Holoceno, época geológica (mais quente) iniciada há cerca de 11 mil anos, após o fim da última Era do Gelo, e que se estende até os dias de hoje. Choveu demais, as antigas áreas de savana-cerrado – o habitat por excelência dos grandes e médios mamíferos, geralmente situado em áreas tropicais de umidade moderada para baixa – tornaram-se extremamente densas e fechadas, com muitas árvores, e praticamente viraram extensões das vizinhas florestas tropicais.

Na África, a maioria dos mamíferos de grande porte, geralmente herbívoros que viviam em bandos, conseguiu migrar para novas zonas de vegetação aberta, com poucas árvores e alguma pastagem. Em função da alteração climática, esse tipo de formação vegetal surgiu em áreas hoje desérticas, situadas nas extremidades norte e sul do continente. Aqui os maiores bichos, concentrados na porção centro-norte da América do Sul, não encontraram um ambiente próximo compatível com seu estilo de vida. Faltou savana para eles. “A maioria dos autores costuma dizer que a manutenção de exemplares da megafauna na África se deu por um motivo que não teve nada a ver com o seu desaparecimento na América do Sul”, afirma De Vivo. “Discordo dessa visão e acho que os dois processos foram conseqüência da mesma causa, o excesso de umidade que alterou a vegetação em ambos os continentes.”

Clima e vegetação
Para bolar sua teoria sobre a megafauna, que será publicada em breve num artigo científico no Journal of Biogeography, professor e aluna da USP fizeram uma detalhada pesquisa multidisciplinar sobre os mamíferos, extintos e vivos, da América do Sul e da África. Também levantaram dados sobre como eram – ou podem ter sido – o clima e a vegetação nesses dois continentes nos últimos 20 mil anos. Grande parte dos trabalhos se deu no âmbito de um projeto temático financiado pela FAPESP e coordenado por De Vivo, que estuda a evolução e a conservação dos mamíferos presentes atualmente no leste do Brasil. O zoólogo é o primeiro a admitir que seu modelo não é perfeito, tampouco é capaz de responder a todas as perguntas sobre a megafauna. Ainda assim, acredita que sua teoria, apesar das limitações, pára em pé. “A explicação faz sentido quando se olha para o passado e o presente dos mamíferos na África e na América do Sul”, diz ele.

A lógica do ponto de vista defendido pela dupla da USP baseia-se numa seqüência relativamente simples, mas engenhosa, de deduções e conclusões a partir da análise de uma série de dados e trabalhos sobre as megafaunas sul-americana e africana. De Vivo viu que os maiores mamíferos terrestres de ambos os continentes – aqueles extintos na América do Sul e os de grande porte ainda presentes na África, como elefantes, rinocerontes e girafas – precisam de grandes áreas abertas, com pastagem e sem muitas árvores, para manter o seu modo de vida. “Na África, ainda existem espécies de elefantes e de búfalos que moram dentro da floresta, na verdade em áreas de clareiras no meio da mata fechada”, pondera o zoólogo. “Mas esses animais vivem em bandos pequenos e são bem menores do que os típicos elefantes e búfalos da savana.” Portanto, se hoje os grandes mamíferos habitam pradarias com árvores esparsas, esse também deve ter sido há alguns milhares de anos o ambiente natural da megafauna.

Até aí não há nada de muito novo. Todos os registros fósseis levam a esse tipo de raciocínio. O passo seguinte foi criar um modelo climático-vegetativo razoavelmente confiável que indicasse onde pode ter havido savanas, ou algo próximo disso, na África e na América do Sul entre o final da época geológica chamada Pleistoceno – mais ou menos entre 20 e 13 mil anos atrás, no auge da última grande glaciação – e o meio do Holoceno, há cerca de 5 mil anos. O único parâmetro encontrado por De Vivo foram os índices de umidade, de pluviosidade, dos dois continentes, um dos fatores, ao lado da temperatura, mais importantes na caracterização do clima – e, por extensão, da vegetação – de uma região durante um período de tempo. Com os indícios pré-históricos sobre a quantidade de chuva que atingiu os dois blocos de terra firme separados pelo Atlântico sul, o pesquisador construiu dois cenários esquemáticos e radicalmente opostos sobre como as variações climáticas podem ter promovido mudanças radicais em seus tipos de vegetação. Essa é grande contribuição do seu trabalho.

O primeiro cenário se situa no chamado Último Máximo Glacial, entre aproximadamente 20 mil e 13 mil anos atrás, no final do Pleistoceno. Dentro da Era do Gelo, quando boa parte do globo foi coberta por geleiras, esse é o momento em que, tomando por base os índices contemporâneos de pluviosidade, registrou-se a menor quantidade de umidade na África e na América do Sul. Foi o ápice da estiagem (e do frio). O ambiente extremamente seco garantia a existência de vastas áreas de savana aberta, com árvores esparsas e muitas gramíneas, e de mosaicos de floresta aberta com enclaves de savana na maior parte do território dos dois continentes (veja mapas acima). Se em algumas regiões a seca foi extremamente forte, em outras ainda choveu bastante para manter muita vegetação, mesmo que aberta. Não faltavam, portanto, comida e espaço para a manutenção do estilo de vida da megafauna tanto na África como na América do Sul. “Não é possível precisar qual era o nível exato de umidade no último Glacial Máximo”, comenta De Vivo. “Mas deve ter chovido anualmente menos do que 1.500 milímetros em muitas áreas.”

Hoje áreas com esse índice de pluviosidade não comportam florestas tropicais extremamente densas – e o mesmo deve ter acontecido no passado. Alguns autores acham que o frio e a seca ainda mais intensa dessa fase glacial podem ter sido os responsáveis pela morte da megafauna na América do Norte. Para o pesquisador da USP, isso pode ter sido verdade lá em cima, mas não aqui em baixo. Na verdade, ele pensa justamente o contrário. “Nessa fase, as condições de vida para os grandes mamíferos na América do Sul e na África devem ter sido ótimas, pois deveria haver muitas áreas de savana para esses animais”, diz De Vivo. Não se deve esquecer que, devido à sua posição geográfica eminentemente entre os trópicos, os dois continentes austrais foram menos afetados pela glaciação do que, por exemplo, a Europa e a América do Norte, situadas em zonas temperadas.

O segundo cenário localiza-se no Ótimo Climático do Holoceno, entre 8 mil e 3 mil anos atrás. Nesse momento, tudo mudou em relação à fase anteriormente descrita: o clima é úmido como nunca, talvez uns 30% a mais do que hoje, e a vegetação da América do Sul e da África sofre mutações radicais. Segundo De Vivo, é agora que o cerco sobre a megafauna se fecha de vez, em especial aqui. O excesso de umidade transformou a América do Sul, quase de ponta a ponta, num continente com formações vegetais tão densas e fechadas que inviabilizaram a manutenção das maiores linhagens de mamíferos terrestres. Expulsa de seu ambiente original pelo avanço da mata cerrada, a megafauna teve de procurar novas áreas de savana para garantir a sua sobrevivência.

“Mas na América do Sul, ao contrário do que ocorreu na África, não restaram áreas de cerrado-savana próximas aos locais onde viviam os grandes mamíferos”, afirma a bióloga Ana Paula Carmignotto. “Nessa fase, a única região com essas características era a Patagônia, no sul da Argentina e Chile, mas essa área era muito fria e de difícil acesso.” E os maiores mamíferos não devem ter conseguido fazer a migração e ficaram pelo caminho. Por falta de espaço físico para se mover e de gramíneas para comer, fabulosos animais pereceram em terras sul-americanas. Adeus preguiças gigantes, gliptodontes (que lembravam grandes tatus), mastodontes e tigres-dentes-de-sabre. Sobraram apenas bichos de tamanho médio para baixo, o que explicaria o fato de a modesta anta ser atualmente o maior mamífero do continente.

Salvos pelo Saara
Na outra margem do Atlântico Sul,houve um processo semelhante, mas as conseqüências foram bem menos trágicas. Na África Central, a chuva abundante do Holoceno médio também metamorfoseou as savanas e florestas abertas em matas mais cerradas, impróprias para a vida das espécies que compunham a megafauna. Mas, em compensação, a umidade extra do período conferiu feições mais amenas, de savana, a duas áreas então áridas e semi-áridas do continente, os desertos do Saara, ao norte, e do Kalahari, ao sul. Na prática, sempre segundo o modelo proposto por De Vivo, as extremidades da África serviram de refúgio, durante esse período mais chuvoso, para os mamíferos de maior porte que tinham sido expulsos da porção central do continente pelo avanço da floresta sobre as antigas savanas. “Uma série de pinturas rupestres de até 8 mil anos de idade mostra que o Saara (com áreas de savana) já abrigou populações de girafas”, comenta De Vivo. Anos mais tarde, quando a umidade deixou de ser excessiva, e o clima assumiu feições parecidas com as atuais, os desertos que haviam virado savana voltaram a ser desertos e as savanas que haviam se transformado em floresta retornaram à condição de savana. Então, as linhagens sobreviventes de megafauna e de outros mamíferos de porte médio, que haviam encontrado seu oásis nos desertos do Ótimo Climático do Holoceno, puderam retornar ao seu ambiente clássico, as savanas da África Central. Segundo o modelo de Vivo/Carmignotto, é por isso que hoje há elefantes, rinocerontes, girafas, hipopótamos na África – e não na América do Sul.

Não é a primeira vez que um especialista atribui o desaparecimento da megafauna sul-americana a alterações climáticas – e não a outras razões, como a chegada do homem ou de novas doenças ao continente. Isso não quer dizer que as idéias dos pesquisadores da USP sejam exatamente iguais às de outros estudiosos do assunto. Na verdade, pelo menos dois pontos em sua teoria são distintos das demais hipóteses que apontam o clima como maior vilão dessa história. Diferença número um: o momento em que foi dado o golpe final nos grandes mamíferos da América do Sul. Para De Vivo, o último sopro de vida desses animais ocorreu entre 8 e 3 mil anos atrás, no meio do Holoceno, depois do término da última grande glaciação. Para outros autores, a extinção se deu um pouco antes, há mais de 11 mil anos, ainda no Pleistoceno, época geológica que antecedeu ao Holoceno e popularmente é chamada de a Era do Gelo. Diferença número dois: a mudança climática que inviabilizou a vida da megafauna daqui foi o excesso de umidade do meio do Holoceno, época em que vivemos hoje – e não a sua falta do final do Pleistoceno, como advogam outros pesquisadores.

“Muitos pesquisadores acreditam que foi o período mais seco e frio (do Pleistoceno) que matou a megafauna da América do Norte, mas acreditamos que, na América do Sul, ocorreu justamente o contrário”, afirma Ana Paula.As hipóteses formuladas para explicar a extinção da megafauna na maior parte do globo podem ser agrupadas em três grandes categorias, que formam um jogo de palavras em inglês: overkill (os homens caçaram em demasia os bichos), overill (a culpa foi do surgimento de novas e letais doenças) e overchill (o intenso frio seco no fim da última glaciação congelou os bichos). No Brasil, é difícil encontrar quem defenda as duas primeiras teorias. “Já vi 150 mil peças (ossos e artefatos) do Pleistoceno brasileiro e só encontrei indícios de marcas intencionalmente causadas pelo homem em uma delas”, diz o paleontólogo Castor Cartelle, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-MG), um dos maiores especialistas em megafauna do país. “Honestamente, essa história de overkill é uma idiotice. Também não conheço nenhum caso histórico de zoonose que tenha eliminado uma espécie (de megafauna) de um continente inteiro.”

Paleontólogo aposentado da Universidade Federal do Acre (Ufac), Alceu Ranzi acredita, a exemplo de Cartelle, que o elemento – chave para o sumiço da megafauna sul-americana foi algum tipo de alteração climática, durante o Pleistoceno ou na transição desta época para o Holoceno. “Como a entrada do homem nas Américas (há cerca de 11 mil anos) foi mais ou menos contemporânea à extinção dos grandes mamíferos, alguns pesquisadores dizem que uma coisa levou necessariamente à outra”, afirma Ranzi. “A megafauna até pode ter sido alvo de caça, mas não deve ter sido isso que a levou à extinção. Não há cemitério desses bichos cheios de flechas humanas.” Anos atrás, Ranzi encontrou camelídeos (guanacos, alpacas, lhamas) de 18 mil anos de idade na Amazônia, uma evidência de que deve ter havido ali, pouco antes do fim do Pleistoceno, um tipo de ambiente mais próximo das savanas do que da atual floresta tropical. Mais ou menos como afirma De Vivo em seu modelo climático-vegetativo para aAmérica do Sul e África.

Os mamíferos surgiram provavelmente há cerca de 220 milhões de anos, no período geológico denominado Triássico Superior, mais ou menos no mesmo momento da pré-história em que apareceram os dinossauros. Seus primeiros exemplares eram animais muito pequenos, de uns poucos centímetros, parecidos com modernos ratos ou esquilos selvagens. Aparentemente comiam insetos e tinham hábitos noturnos. Sua evolução foi lenta e durante aproximadamente 150 milhões de anos viveram aos pés dos grandes répteis. Somente depois do misterioso desaparecimento dos dinossauros, há 65 milhões de anos, no final do período Cretáceo, passaram a assumir formas e tamanhos variados. Com o tempo, os maiores se transformaram em criaturas quase tão avantajadas quanto os colossais répteis que os precederam, como preguiças e camelídeos gigantes, mamutes, mastodontes e gliptodontes, às vezes com alguns metros de altura e toneladas de peso.

A literatura científica mostra que, embora sempre tenham contado com espécies particulares, próprias de seus continentes, a América do Sul e a África tiveram faunas de mamíferos terrestres com semelhante grau de diversidade até um passado relativamente recente. Ao longo de todo o período Terciário (entre 65 milhões e 1,8 milhão de anos atrás) e de boa parte do Quaternário (entre 1,8 milhão de anos atrás até os dias de hoje), havia até, segundo alguns autores, mais formas de mamíferos não-voadores e não-aquáticos aqui do que lá. “A América do Sul tinha 20 ordens de mamíferos (terrestres) e a África, apenas 13”, conta De Vivo. Na linguagem dos taxonomistas, uma ordem é uma categoria de classificação de organismos que compreende uma ou várias famílias similares ou intimamente relacionadas de seres vivos. Dentro da ordem dos primatas, por exemplo, figuram várias famílias de mamíferos, como a dos Hominidae (grandes macacos e humanos), dos Callitrichidae (sagüis e micos) e dos Lemuridae (lêmures), entre outras. Hoje, a África apresenta 11 ordens de mamíferos terrestres, uma a menos do que a América do Sul.

Por algum motivo, ou mesmo vários, oito ordens desaparecem da margem esquerda do Atlântico Sul, sobretudo as de animais de grande e médio porte que moravam em áreas de vegetação aberta, e somente duas na margem direita. Não por acaso, se for adotado o peso dos animais como um indicador de seu tamanho, a categoria dos mamíferos terrestres com menos de 5 quilos é a única em que há mais espécies na América do Sul do que na África (622 contra 587). Em todas as demais, o continente das girafas e elefantes apresenta mais espécies de animais de sangue quente do que o Brasil e seus vizinhos hispânicos. “Ficamos basicamente com os bichos de floresta, pequenos, e eles com os de savana, maiores”, resume De Vivo.

O Projeto
Sistemática, Evolução e Conservação de Mamíferos do Leste do Brasil (98/05075-7); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Mario de Vivo – Museu de Zoologia/USP; Investimento: RS$ 789.083,78

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