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Biologia

De volta à vida

Produção antecipada de enzimas reduz os perigos da saída da hibernação

MIGUEL BOYAYANFôlego de jacaré: embaixo d´água, só o cérebro e o coração recebem oxigênioMIGUEL BOYAYAN

Biólogos de Brasília conseguiram explicar como répteis e anfíbios resistem à brutal transformação por que passam ao sair da hibernação, após muitas semanas vivendo congelados. É um momento delicado. Os animais descongelam em poucas horas, acompanhando o aumento da temperatura, que sobe de alguns graus negativos para cerca de 20º Celsius (C). O oxigênio volta a circular pelo corpo, mas em quantidades elevadas, e gera formas muito reativas, os radicais livres, prejudiciais ao organismo.

Marcelo Hermes-Lima e sua equipe da Universidade de Brasília (UnB) descobriram que os animais se preparam durante a hibernação de modo a reduzir os prejuízos causados pelo excesso momentâneo de radicais livres. Mesmo congelado, funcionando num ritmo lento, o organismo de algumas espécies de sapos, tartarugas, cobras e moluscos produz e armazena enzimas antioxidantes, em especial a catalase, o superóximo dismutase e a glutationa peroxidase, que desfazem compostos como o peróxido de hidrogênio (H2O2), formados em abundância em conseqüência da enxurrada de oxigênio. As pesquisas que explicam a tolerância ao frio extremo ou à falta de oxigênio estão ajudando a aperfeiçoar as técnicas de conservação de órgãos, que ainda têm de ser transplantados em poucas horas, após serem, retirados do doador, para evitar a morte dos tecidos.

Os seres humanos passam por uma situação semelhante à de um sapo que descongela no fim da hibernação, quando a circulação sangüínea do coração ou do cérebro fica obstruída momentaneamente. Com a volta do oxigênio, há um risco alto de surgirem radicais livres em excesso e danos graves durante um infarto ou um derrame. “O organismo humano faz o possível para se defender dos radicais livres, mas não contamos com uma resposta antecipada, como outros animais”, diz Hermes-Lima.

Neve e deserto
Répteis, anfíbios e moluscos produzem enzimas com antecedência quando passam com regularidade por três tipos de situações extremas, segundo Hermes-Lima. A primeira está ligada ao frio intenso, que leva os animais, em especial os do Hemisfério Norte, a hibernarem, como forma de economizar energia. A outra é o calor exagerado, na chamada estivação ou hibernação de verão: diante da falta de água, caramujos das terras semi-áridas do norte da África, entre elas algumas espécies comestíveis de escargot, escondem-se na concha – e lá ficam por até dois anos,com o organismo parcialmente ressecado, até a chuva voltar.

Por fim, alguns vertebrados como a tartaruga-da-orelha-vermelha (Trachemys scripta elegans) ou a rã-leoparda (Rana pipiens) enfrentam a escassez ou mesmo a falta completa de oxigênio, juntamente com o inverno e a hibernação em lagoas congeladas. Répteis como os jacarés e mesmo mamíferos como focas e leões-marinhos passam por uma situação mais corriqueira – a falta de oxigênio nos músculos e órgãos como rins e fígado – quando mergulham e ficam até uma hora sem respirar embaixo d’água.

Em resposta às temperaturas extremas e à falta de oxigênio, o organismo começa a funcionar em ritmo lento, um estado conhecido como depressão metabólica. Nessas horas, a síntese de proteínas, a queima de açúcares, a freqüência de batimentos cardíacos e o ritmo da respiração caem bastante: num caso extremo, o metabolismo do esquilo ártico (Spermophilus parryii) permanece em 5% e o consumo de oxigênio em 2% do habitual durante o inverno. “Mesmo que quase tudo esteja parado, as enzimas antioxidantes são uma prioridade e continuam a ser produzidas”, diz Hermes-Lima. Essa capacidade é resultado da evolução: só sobreviveram os animais que conseguiram estocar enzimas capazes de deter a inundação de oxigênio.”Descobrimos uma tendência na natureza”, diz Hermes-Lima.

Seus estudos – feitos em conjunto com o grupo de Kenneth Storey, especialista em depressão metabólica da Universidade Carleton, no Canadá – mostraram que a enzima produzida em maior intensidade antes de o oxigênio voltar é a glutationa peroxidase. A conclusão se apóia na análise dos mecanismos de defesa antioxidante desenvolvidos por animais como a cobra-garter (Thamnophis sirtalis parietalis), a rã-leoparda e a rã-da-floresta (Rana sylvatica), o peixe-dourado (Carassius auratus) e em dois tipos de escargots, os caramujos terrestres Otala lateaHelix aspersa.

Às vezes, algumas enzimas são produzidas menos intensamente. Em um estudo publicado no ano passado no Canadian Journal of Zoology, Hermes-Lima e seus alunos Marcus Ferreira e Antonieta Alencastro demonstram que em uma espécie de caramujos de água doce, os Biomphalaria tenagophila, há uma produção menor da enzima catalase quando os animais ficam sem oxigênio por 24 horas, no fundo de um frasco com água, e de superóxido dismutase quanto passam 15 dias em estivação, sob uma temperatura contínua de 26°C. Em ambos os casos, houve um pequeno aumento da quantidade da enzima glutationa peroxidase. “Ninguém consegue explicar muito bem por que aumenta a produção de algumas enzimas e a de outras cai”, diz Hermes-Lima. “Mas uma delas subindo deve ser o bastante.”

Cobras do gelo
Hermes-Lima começou a conviver com animais congelados no final de 1990. Foi quando visitou Storey em seu laboratório no Canadá, meses depois de o ter conhecido em São Paulo, e lhe propôs a busca de mecanismos antioxidantes assoaciados ao congelamento e à falta de oxigênio, algo que o biólogo canadense ainda não havia estudado. Storey gostou da proposta. No ano seguinte, o pesquisador brasileiro desembarcava em Ottawa, a capital do país, para uma temporada de dois anos e meio. Começou trabalhando com as cobras-garter, encontradas em quase toda a América do Norte, até ao norte das províncias canadenses. São os primeiros répteis a acordarem da hibernação, no final do inverno. Só que, quandochega a primavera, os rios descongelam em poucos dias e muitas vezes cobrem os buracos em que as cobras haviam se alojado.

Mas elas podem ficar até dois dias sem oxigênio antes de saírem de suas tocas inundadas. Também suportam algumas horas congeladasHermes-Lima imaginou que haveria enzimas antioxidantes em abundância nesses animais, como forma de evitar os danos do excesso de oxigênio. Mas não foi o que descobriu. As cobras tinham, na verdade, pequenas quantidades de enzimas antioxidantes, quando comparadas com os ratos, mas essas quantidades aumentavam, de acordo com a situação.

A glutationa peroxidase era a predominante sob um congelamento de cinco horas a 2,5°C, enquanto no experimento seguinte, com as cobras sob ausência de oxigênio durante dez horas a 5°C, a enzima encontrada em maior quantidade era o superóxido dismutase.Storey, no início, não acreditou. “Ele dizia ‘Too cold, it’s not possible’ e passou meses sem me dar atenção, por achar que eu tinha feito tudo errado”, recorda Hermes-Lima. Refeito o experimento, emergiram os mesmos resultados. Finalmente convencido, mas ainda intrigado, por achar que toda célula deveria ter uma quantidade menor dessas enzimas nessas condições extremas, Storey aceitou assinar com o brasileiro o artigo com essas descobertas, publicado em 1993 no American Journal of Physiology.

Vinte minutos sem ar
Desde 2001 a equipe de Brasília estuda o estresse do mergulho em animais da fauna brasileira. Em duas expedições ao Pantanal, os pesquisadores coletaram amostras de tecidos de embriões de jacarés-do-pantanal (Caiman yacare) e também de animais recém-nascidos, jovens e adultos. Quando mergulham e param de respirar, esses répteis priorizam a circulação do oxigênio, que se torna escasso. O sangue deixa de ir para os músculos e órgãos como o fígado e segue para alvos prioritários como o coração e o cérebro, de modo a maximizar o tempo que ficam lá embaixo – até 20 minutos.

Impossibilitada de fazer experimentos com os jacarés em laboratório, já que se trata de animais um tanto maiores que os habituais camundongos, a equipe da Universidade de Brasília construiu um mapa dos danos causados pelo excesso de radicais livres em lipídeos (gorduras) e proteínas ao longo do desenvolvimento desses répteis. “Os danos são maiores em tecidos com maior taxa metabólica, como cérebro, fígado e rim”, informa Hermes-Lima. Sua equipe trabalha ainda, desde o ano passado, com amostras de pele e da capa gordurosa de baleias jubarte (Megaptera novaengliae), que passam uma parte do ano ao longo do litoral do sul da Bahia e ficam embaixo d’água, sem respirar, por até 20 minutos.

O Projeto
Fisiologia Molecular de Radicais Livres em Sistemas-modelo; Coordenador Marcelo Hermes-Lima – UnB; Investimento R$ 97.000,00 (CNPq)

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