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Festival

Música para Deus

Alunos e professores de São Paulo se reúnem no interior de Minas para celebrar repertório barroco

ANDRÉ FOSSATIMúsicos de São Paulo no festival: interação real com a populaçãoANDRÉ FOSSATI

Em meados de julho, cerca de 30 músicos abandonarão suas férias da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) para internar-se em Prados, pequena cidade 500 quilômetros distante da capital paulista, no interior de Minas Gerais. Durante 16 dias, eles serão parte da localidade. Apresentarão recitais, tocarão com alguns dos 7.700 moradores e darão aulas de música para os interessados. Os eventos serão gratuitos, numa simbiótica interação entre a população e os músicos forasteiros. Entre uma atividade e outra, eles trocarão informações sobre antigas peças musicais sacras escritas por negros e mulatos, guardadas nos arquivos das velhas bandas mineiras. Ainda hoje é possível achar raridades do século 18 que não são tocadas há 200 anos. Em Prados, um parte do passado colonial brasileiro voltará à vida. Não será a primeira vez.

O Festival de Música de Prados ocorre anualmente desde 1977, sempre com o mesmo espírito de integração entre visitantes e moradores. Nenhum dos músicos ganha para participar. A FAPESP banca a maior parte dos custos de viagem e hospedagem de alunos e professores, mas não há, nem de longe, a publicidade que outros festivais têm. Aliás, não há publicidade nenhuma. O evento é conhecido apenas entre poucos estudantes e docentes da USP e em algumas cidades vizinhas de Prados, como São João del-Rei e Tiradentes.

“Esse é talvez o único festival de música em que a população tem uma interação real com os músicos”, diz o maestro Olivier Toni, professor titular (hoje aposentado) e um dos fundadores do Departamento de Música da ECA (1970). Ele também ajudou a criar a Orquestra de Câmara de São Paulo (1956), a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo (1968), a Escola Municipal de Música de São Paulo (1969), a Orquestra Sinfônica da USP (1972) e a Orquestra de Câmara da USP (1995). Toni foi o idealizador do evento de Prados e é, ainda hoje, seu principal motor.

A descoberta da cidade mineira foi resultado da curiosidade do pesquisador. O maestro e alguns alunos visitavam São João del-Rei em 1974 quando decidiram consultar o acervo da Sociedade Lira Sanjoanense. A instituição tem um arquivo musical com grande quantidade de originais e cópias de obras religiosas antigas produzidas na região e até uma boa coleção de outras cidades do país do tempo do Brasil Colônia. Surpresos com a excelência do material encontrado, o grupo pediu autorização da instituição para microfilmar o que fosse possível. À época, a equipe de Toni sempre levava um aparelho portátil de microfilmagem no porta-malas do carro quando se embrenhava em missões exploratórias por Minas Gerais em busca de originais pouco conhecidos. Nunca se sabia o que encontrariam em igrejas e sociedades seculares e convinha estar sempre preparados para não perder a viagem.

Ao perguntar onde havia mais músicas do século 18, como as encontradas na Lira Sanjoanense, foi-lhes indicada Prados, a 26 quilômetros dali. O pesquisador chegou na cidade com dez alunos e encontrou o maestro Ademar Campos Filho, encarregado da banda e responsável pelo arquivo. “Na Semana Santa, ele levava aquela música antiga para as procissões e tocava”, conta Toni. Campos lhes mostrou documentos e peças de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) e Manoel Dias de Oliveira (1764-1837), entre outras, e tudo foi microfilmado. Depois de três dias de conversas e pesquisas, Toni sugeriu a Campos a realização do festival, idéia prontamente aceita.

“Eu quis fazer um evento para que as pessoas participassem e não apenas assistissem pagando por isso”, diz o maestro, ressaltando que é difícil encontrar uma família em Prados que não tenha um músico entre ela. “O projeto é tocar para os moradores, tocar junto com eles e fazer com que eles toquem sozinhos.” Toni e alunos dão aulas de harmonia e música, em geral, explicam particularidades dos instrumentos e no final do festival encenam uma pequena peça teatral. Este ano o tema deverá girar em torno dos 300 anos da cidade. No total, a cada ano os músicos paulistas trabalham com 200 moradores, dos quais a metade é de crianças. São feitos dois concertos por semana.

Todos preferem tocar em uma das duas igrejas da cidade, em especial na do Rosário, a antiga igreja dos escravos, do final do século 18. “É lá que fica o cravo e a acústica é excepcional, sem reverberação”, diz Toni. O encerramento é feito na Igreja Matriz de Santo Antônio. O programa do festival é quase sempre de música barroca, que inclui, com enorme freqüência, o repertório colonial brasileiro. Nesses 26 anos de festival, foi possível descobrir alguns jovens talentos, a maioria deles hoje tocando em orquestras brasileiras. Músicos e pesquisadores de destaque já estiveram em Prados com Toni, como Sílvio Ferraz, Willy Corrêa de Oliveira, Alex Klein, Rubens Ricciard, José Eduardo Martins e Roberto Mincvuk.

A cidade é atraente porque permite tocar, ensinar e fazer pesquisa. A equipe comandada por Toni microfilmou pela primeira vez arquivos musicais de várias outras cidades mineiras, como Piranga, Aiuruoca e Itabira e de municípios paulistas, como Pindamonhangaba. Às vezes, desses estudos surgem descobertas surpreendentes, que demoram para ser aceitas. Uma das mais importantes diz respeito ao período mais remoto em que se fez música sacra no Brasil. Até os anos 1940, tinha-se como certo que o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) fora o primeiro compositor brasileiro. De acordo com todos os especialistas, padre José Maurício, carioca, mulato e pai de cinco fihos, era um grande compositor. Mário de Andrade considerava sua Missa de réquiem como “a obra-prima da música religiosa brasileira”.

“No século 18, quem fazia e executava música eram escravos libertos”, explica Olivier Toni. Como, em geral, os brancos brasileiros e portugueses não faziam nada (e se orgulhavam disso), negros e mulatos arrumaram um modo de ganhar dinheiro ao tocar suas músicas sacras na igreja e eventos religiosos. Isso também era usado pelo negro na tentativa de ganhar uma certa consideração na sociedade (não havia condições de se importar artistas o tempo todo da Europa). “Eles faziam uma música européia sui generis, muito característica das colônias. Era mais simples, mas espontânea”, observa o pesquisador. “De qualquer modo, ela tinha de ser o mais parecida possível com a música européia, isto é, com a música de seus antigos donos.” Se não fosse assim, ela não seria aceita.

O primeiro compositor
Quem derrubou o mitodo padre José Maurício como o primeiro compositor brasileiro foi Francisco Curt Lange (1903-1997), pesquisador alemão naturalizado uruguaio que realizou intenso trabalho pelo interior brasileiro. Em 1944, em uma de suas passagem pelo país, adquiriu um pequeno lote de músicas em Minas Gerais. Entre elas, deparou-se com Antífona de Nossa Senhora, de Lobo de Mesquita. Inicialmente, Curt Lange pensou se tratar da obra de algum autor português e decidiu investigar. Antigamente, era comum as igrejas guardarem os documentos dos que nasciam e morriam – e Lange acabou descobrindo que Lobo de Mesquita havia sido batizado em uma igreja onde só eram registrados os pardos. “Graças a Curt Lange, a musicologia brasileira recuou 40 anos e ficou claro que houve outros compositores antes do padre José Maurício”, conta Toni.

Mesmo com essa prova, o pesquisador alemão foi muito contestado. Até que, em 1958, o historiador e musicólogo Régis Duprat, hoje professor titular da ECA, achou na coleção “Alberto Lamego”, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), os manuscritos originais de Recitativo e ária, datados de 1759. Escrita na Bahia, de autor anônimo, a obra era profana e, mais espantoso, com texto cantado em português. Havia sido dedicada a uma autoridade enviada pelo Marquês de Pombal ao Brasil. “A obra é magnífica, escrita para voz, violino e baixo e talvez seu autor seja o padre Caetano Mello de Jesus”, diz Toni, que a estreou em 1960. Com essa descoberta de Duprat, acabou-se de vez a polêmica. Recitativo e ária havia sido composta antes mesmo do nascimento do padre José Maurício.

A morte da música sacra
A música religiosa começou a morrer com a Independência, em 1822. Com ela, se extingue a capela de música, uma função da Igreja para se produzir e tocar música sacra com o objetivo de acompanhar os ofícios religiosos. Com a Independência, o músico teve de passar a viver cada vez mais com a música profana, abandonando a prática da música religiosa. “A separação definitiva entre Estado e Igreja alterou a concepção vigente até 1822. Esse é um fenômeno interessante que ocorreu após as independências de quase todas as nações latino-americanas”, diz Toni.

Se depender desse regente, professor, pesquisador e músico (foi fagotista), a obra sacra brasileira não será esquecida. “Tenho enorme fascínio pela música religiosa porque ela permite ao compositor se identificar dentro de uma gama enorme de expressividade em uma mesma peça”, afirma. Tanto a missa como as obras religiosas musicadas propiciam grandes momentos: começam tranqüilas, ficam mais rápidas, tornam-se introspectivas e, no caso das missas, terminam doce, em paz com Deus. Tal paixão é motivo suficiente para fazer o ateu Olivier Toni amealhar alunos para continuar, aos 78 anos, todos os anos, a internar-se por 15 dias na colonial Prados para fazer e ouvir música dentro de suas igrejas.

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