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Bioquímica

Trabalho extra

Triturador de moléculas dentro das células também cria proteínas que reduzem eficiência de vacinas

EDUARDO CESARRepresentação do splicing: proteínas novas com retalhos das antigas EDUARDO CESAR

A natureza não pára de dar exemplos de que pode ser bem mais complicada do que parece. Dois artigos recentes, um publicado na Nature e outro na Science, revelam um fenômeno que dificulta um pouco mais a já atribulada vida dos pesquisadores que estudam proteínas – no Brasil, há cerca de 300 grupos dedicados a essa área. Ao redor do núcleo da célula, na porção chamada citoplasma, há uma estrutura cilíndrica, formada por proteínas, que age como um triturador: desfaz as proteínas velhas e defeituosas em suas unidades, os aminoácidos.

Pensava-se que esses aminoácidos ficassem livres e fossem reaproveitados na produção de novas proteínas – que formam as células e os tecidos, enfim o organismo de plantas e animais – somente em outro compartimento celular, o ribossomo, a partir de receitas contidas no material genético das células, a molécula de ácido desoxirribonucleico (DNA). O que agora aparece claramente é que as proteínas responsáveis por essa desmontagem também são capazes de formar outras proteínas. Essa produção paralela identificada este ano mostra que as proteínas que se acreditava fossem capazes apenas de cortar outras proteínas por inteiro não executam o serviço completo. Algumas delas, além de cortar, também reagrupam trechos distantes da proteína parcialmente desmontada, modificando-a antes que entre em ação.

A recombinação ou splicing de proteínas, como é chamado o processo recém-descoberto, ajuda a entender por que algumas vacinas não funcionam como deveriam. As vacinas são feitas a partir de antígenos, fragmentos de proteínas que acionam as células de defesa e preparam o organismo para enfrentar os vírus e as bactérias que os produzem. Mas, como é amplo o conjunto de possibilidades de recombinação dos trechos de proteínas, podem surgir antígenos contra os quais o organismo não está preparado. “Esse mecanismo exerce uma clara influência sobre os antígenos, cuja diversidade deve aumentar de modo significativo”, disse a Ricardo Zorzetto, de Pesquisa FAPESP, Benoît Van den Eynde, do Instituto Ludwig para Pesquisa do Câncer, em Bruxelas, Bélgica, coordenador do estudo publicado on-line pela Science em 4 de março e apresentado na versão impressa da revista em 23 de abril.

“Certamente esse não é um fenômeno raro, uma vez que dois outros exemplos já foram descritos desde a publicação de nosso artigo”, disse a Pesquisa FAPESP James Yang, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos (NCI), o primeiro a identificar esse mecanismo no organismo humano. Depois de seu estudo, feito com células de tumores de rim e noticiado em 15 de janeiro na Nature, essa forma alternativa de produção de proteínas foi observada pela equipe de Van den Eynde em células de tumor de pele e por outro grupo de pesquisadores do NCI, em umestudo a ser publicado em breve.

Descrito há quase 20 anos em células de plantas e, mais tarde, em organismos unicelulares, só agora o splicing de proteínas foi observado em animais. É uma descoberta que ajuda a explicar por que o organismo humano produz cerca de 90 mil proteínas distintas, embora possua apenas cerca de 30 mil receitas registradas no DNA. Mas, por ora, a identificação do splicing de proteínas gera mais dúvidas que respostas, afirma o imunologista Hans-Georg Rammensee, da Universidade de Tübingen, Alemanha, em comentário sobre o trabalho de Yang, publicado também na Nature de janeiro.

Regra ou exceção?
“Ainda não sabemos se, em mamíferos, os peptídios (fragmentos de proteínas) produzidos dessa forma têm uma função diferente (daqueles fabricados a partir do DNA)”, reconheceu Yang. Mesmo assim, Rammensee aponta outra possível conseqüência do mecanismo recém-descrito: embora não se conheça a freqüência da produção de proteínas a partir da quebra de uma molécula original e a ressoldagem de suas partes, existe a possibilidade de que essa recombinação ocorra não apenas com proteínas de células tumorais, mas também com as proteínas de células normais, de vírus e de bactérias que infectam o organismo, tornando mais difícil a obtenção de vacinas contra algumas doenças.

A descoberta desse mecanismo sugere que as exceções ao modelo criado há 40 anos – a produção de proteínas a partir, tão-somente, do DNA – são mais comuns do que se poderia imaginar. Uma pista da complexidade da fabricação de proteínas surgiu há mais de duas décadas, com a identificação do splicing de RNA. Copiada do DNA, a molécula de RNA, ou ácido ribonucleico, transporta a receita de produção de proteínas do núcleo para o citoplasma. No caminho, pode perder alguns de seus segmentos internos. Como resultado, a proteína feita sob o comando desse RNA encurtado não poderia ter sido antecipada apenas pelo exame do trecho do DNA que lhe originou.

Foi por acaso que Yang chegou ao splicing de proteínas. Há alguns anos, ele verificou que os linfócitos T, um tipo de célula do sistema imunológico, estavam bastante ativos em uma pessoa com câncer de rim. Os linfócitos T reconheciam um fragmento de uma proteína fabricada em quantidades elevadas pelas células cancerosas, o fator de crescimento de fibroblastos 5 (FGF-5). Com o objetivo de chegar a um medicamento contra tumores, Yang decidiu investigar quais aminoácidos compunham esse fragmento do FGF-5. Ele constatou que esse trecho resultava da quebra e reorganização aleatória da molécula depois de pronta: de um segmento de 49 aminoácidos, 40 aminoácidos da porção intermediária foram excluídos e cinco de uma extremidade foram unidos a quatro da outra.

Pesquisadores do Instituto Ludwig, em Bruxelas, e da Universidade de Liège, também na Bélgica, concluíram que essa recombinação ocorre no triturador de proteínas – o proteassomo. Van den Eynde observou esse fenômeno ao estudar um fragmento – peptídio – derivado de um antígeno produzido por células de melanoma, o mais agressivo dos tumores de pele. Depois de prontos, só um em cada 10 mil peptídios sofre splicing, que aproveita a energia gerada na própria quebra das proteínas descartadas pelo organismo.

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