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José Ellis Ripper Filho

José Ellis Ripper Filho: Alternativas do saber

Miguel BoyayanUma das biografias mais singulares do mundo da ciência e da tecnologia no Brasil, José Ellis Ripper Filho, 65 anos, é um empresário na área de telecomunicações, como presidente da empresa AsGa, que produz equipamentos para transmissões via fibra óptica. É também um exemplo bem-sucedido de migração da sala de aula para a iniciativa privada. Engenheiro eletrônico por formação, antes de se aventurar no arriscado mundo dos negócios, ele se tornou professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) quando voltou ao Brasil depois de passar alguns anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e como pesquisador do Laboratórios Bell (Bell Labs) da norte-americana AT&T (hoje Lucent), nos Estados Unidos.

Essa experiência como pesquisador, professor, diretor de desenvolvimento de uma indústria eletrônica e, finalmente, empresário de sucesso levou Ripper a ser convidado para integrar conselhos de diversas entidades vinculadas ao setor, inclusive da Unicamp.

Dono de uma visão ampla sobre alguns dos principais temas brasileiros ligados a universidade e sobretudo a produção de inovação e de pesquisa e desenvolvimento nas empresas, o empresário tem opiniões que passam longe do senso comum tanto sobre a universidade brasileira quanto sobre a inovação. Nesta entrevista ele conta um pouco de suas idéias e fala de sua formação no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), onde seu grupo de estudo construiu os primórdios do primeiro computador brasileiro como tarefa de final de curso.

Gostaríamos de saber a sua opinião sobre a proposta dos professores José Fernando Perez e Fernando Reinach apresentada ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNTC), do qual o senhor faz parte, sobre desonerar as empresas que contratarem doutores como forma de incentivar a inovação empresarial.
Acho que ela é útil, mas relativamente colateral. É bom qualquer incentivo para as empresas. Mas a formação de doutor é para a pesquisa acadêmica. Na empresa se faz desenvolvimento. Isso não quer dizer que o doutor não sirva. Se ele for bom, rapidamente aprende a trabalhar de outra forma.

Na AsGa, o senhor emprega doutores? Quantos são?
Hoje são dois, já tivemos três. Mas, na verdade, as empresas brasileiras não têm porte para fazer pesquisa. Poucas empresas no mundo fazem pesquisa. Elas fazem desenvolvimento. E a maneira de fazer desenvolvimento é diferente da que se faz pesquisa. O que não quer dizer que um bom pesquisador não se adapte e seja muito útil. Mas a idéia de que é preciso doutor nas empresas não é realidade. Agora, qualquer incentivo que vier para as empresas, certamente darei todo o apoio. Eu não quero dizer que seja contra a proposta, muito pelo contrário. Ocorre que não é por falta de doutor que as empresas não estão fazendo pesquisa.

Por que não fazem?
Primeiro ninguém sabe o quanto faz. Todos os números são absolutamente chutados. Não existe estatística no Brasil nessa área. Que dados existem? Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)? Esse eu nem sei como é feito. Tem o questionário da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei) que vai para algumas empresas. O que acontece com esse questionário? Primeiro, grande parte não responde. O que acontece, por exemplo, com a AsGa? Pego esse questionário e mando para o meu contador. Se você perguntar exatamente quanto gasto em pesquisa e desenvolvimento (P&D), eu não sei. Talvez a AsGa tenha bons dados porque, como sempre trabalhamos com a Lei de Informática, contabilizamos P&D. Mas não é a melhor forma.

É uma forma diferente de contabilizar?
A Lei de Informática considera que investimento em sistema de qualidade e em recursos humanos é investimento em P&D. A maioria das empresas do Brasil não tem incentivo para isso. Quer dizer, agora foi regulamentada uma lei permitindo que P&D seja considerada como despesa e possa ser descontada para efeitos contábeis. A maior parte das empresas do Brasil, mesmo as que fazem P&D, nem sabem que fazem P&D. Mas algumas, na verdade, fazem.

Mas o que fazem? Desenvolvimento? Um novo produto?
Fazem desenvolvimento, coisas que seriam consideradas como P&D, mas não interessam para as empresas. Fazem um produto novo, uma tecnologia nova de produção. Agora, existem outros problemas no Brasil: primeiro, mudanças constantes de lei, e segundo, as taxas de juro, que obrigam o empresário a ter uma visão de curto prazo. Claramente é muito difícil uma empresa, mesmo grande, chegar e dizer “eu vou fazer algo que talvez dê resultado daqui a dez anos”. O que se faz nas empresas é desenvolvimento de produtos. Para isso, não é necessariamente preciso um profissional PhD. Por exemplo, há dois anos, meu chefe da área de desenvolvimento tinha doutorado. Agora o profissional que chefia o desenvolvimento só tem graduação. E é excepcional, um dos melhores profissionais que fazem desenvolvimento no país, mas não tem um currículo acadêmico, não tem doutorado, não tem trabalho publicado.

Fazer inovação nas empresas não é uma das saídas econômicas para o país?
Mas é evidente. Acho que o pessoal da universidade não entende o que é desenvolvimento industrial. Não entende e nem é para entender. Qual o produto da universidade? Gente. A pesquisa na universidade é meio, não fim. Eu diria que poucas pessoas da universidade percebem isso. Então, por que se faz pesquisa na universidade? Porque temos que formar gente que vai trabalhar a maior parte do tempo da vida com o conhecimento que não existe hoje.

Na área tecnológica somente?
Em qualquer área. Até em direito. Tudo evolui. Passados 20, 30 anos, tudo muda. Por isso acho extremamente importante a pesquisa na universidade.

É um aprendizado do método de aprender?
Exatamente. Ao fazer os alunos participarem do processo de criação do conhecimento, a universidade faz com que esses cidadãos se imbuam do processo. O conhecimento é algo contínuo e eles vão ter de continuar nesse processo. Um exemplo disso eu tive na Unicamp, logo que voltei ao Brasil.

Isso foi no início dos anos 1970 , quando o senhor voltou do mestrado e do doutorado no MIT e do trabalho no Bell Labs?
Exatamente, voltei dos Estados Unidos em 1971. Logo em seguida, a Sociedade Brasileira de Física resolveu fazer um estudo sobre os físicos brasileiros e contrataram uma empresa de pesquisa de opinião. Veio uma mulher me entrevistar com um questionário padrão. Acho que fundi a cuca dela, porque havia duas perguntas seguidas. Uma, “a sua formação de graduação foi importante na sua vida profissional?”. Aí existiam alternativas de resposta como “muito”, “mais ou menos”, e eu coloquei “muito”. A seguinte pergunta era: “As disciplinas do seu curso de graduação foram importantes na sua vida profissional?”. Nessa coloquei nota mínima, “não foi importante”. Eu nunca estudei nenhuma disciplina da área de especialização que trabalhei. Agora, tive uma formação extremamente sólida na graduação em engenharia elétrica no ITA e na pós-graduação, no MIT.

Depois migrou para a física?
Na verdade eu nunca decidi ser físico. Fui trabalhar num laboratório do Bell Labs. Aí um grupo brasileiro radicado nos Estados Unidos, que estava mais ou menos ligado informalmente e tinha o Rogério [Rogério Cezar Cerqueira Leite ] como uma espécie de líder, estava querendo voltar para o Brasil.

Isso começou em 1970.
Essa tentativa de voltar para o Brasil começou em 1968. Na primeira tentativa, o Rogério chega ao Rio, entusiasmado, num período de férias. “Vamos para a Universidade de Brasília”, disse. Aí respondi: “Rogério, para a UnB eu não vou”. Ele perguntou: “Como não? É uma mentalidade nova, é formidável”. Eu respondi: “Rogério, a UnB está muito perto da toca do leão”. Passados alguns dias, o telefone toca em casa às 6 da manhã. Era o Rogério: “Já leu o jornal de hoje? Você tinha razão”. [Em 1968 ocorreram invasões da polícia e uma séria crise institucional naquela universidade. ]

Além do professor Rogério e do senhor, quem mais participava desse grupo?
Sérgio Porto, Paulo Sakanaka e o Nélson Parada. Quando voltamos, começamos a atrair muito mais gente do que esse núcleo original.

Por que decidiram voltar?
Já me fiz várias vezes essa pergunta e tenho uma resposta que é muito fácil fazer a posteriori, como tudo na vida. Existe uma expressão americana que fala de um grande peixe num lago pequeno, um pequeno peixe em um grande lago. Eu estava no Bell Labs na época – e só no prédio em que eu trabalhava, que não era o mesmo do Rogério, tinha 1.500 Ph.Ds.

O senhor era só mais um.
Se mais um Prêmio Nobel saísse do Bell não faria a menor diferença. Eu pensei: “O dia que eu sair, a sensação que tenho é que a faxineira vai perceber que a lata de lixo está vazia”. Acho que o Brasil oferecia, como certamente ofereceu, uma oportunidade de fazer a diferença. Não sei se foi bom ou ruim, mas muita coisa não teria acontecido se eu não tivesse feito pessoalmente, se o Rogério não tivesse feito pessoalmente… Não que fôssemos menos ou mais importantes, é porque não existiam outros. Isso nos deu uma motivação profissional muito grande.

Como foi o começo na Unicamp?
Comecei a analisar e cheguei à conclusão de que eu fazia mais física que engenharia e resolvi vir para o Instituto de Física. Mas nunca tomei a decisão “vou ser físico”. Se eu não viesse para a Unicamp talvez nunca assumisse a posição de físico.

Quando o senhor entrou no ITA, tinha idéia de ser professor, empresário?
Não tinha muita, não. Pouco tempo atrás dei uma palestra lá no ITA, num seminário sobre inovação. A palestra tinha três títulos. O primeiro era: “Como tomar decisões certas pelas razões erradas”. O segundo: “Como deixar que a vida tome decisões por você”. E o terceiro: “Como virar empresário por acaso”. Analisando as principais decisões profissionais que tomei na minha vida, elas deram certo não pelas razões pelas quais tomei a decisão. Menos de um ano antes de entrar no ITA eu nunca tinha ouvido falar do ITA.

O senhor morava no Rio de Janeiro?
Morava no Rio. Acho que a principal razão pela qual fui para o ITA é que eu queria sair de casa, queria ser independente. Mas isso olhando a posteriori. Escolhi eletrônica porque não queria aeronáutica, as duas únicas opções naquela época. Certamente foi uma das decisões mais importantes da minha vida. A formação do ITA, e principalmente a formação antes do movimento de 1964, era na verdade uma escola de lideranças. Depois, a instituição virou uma boa escola de engenharia porque tinha bons alunos, independentemente dos professores.

Depois de 1968 houve uma mudança de professores lá também?
Em 1964 coincidiu com a saída do marechal-do-ar Casimiro Montenegro Filho [idealizador do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e do ITA ] que estava em via de se aposentar. O brigadeiro que chegou considerou aquele sistema uma loucura e entrou em conflito com os professores. Então, os de nível mais alto saíram. Em seis meses, de 25 saíram 22. E nunca o instituto se recuperou. O ITA ganhou fama porque possui alunos excepcionais, que ficam trancados por cinco anos, num regime puxado de estudos. Mas o que faz uma boa escola é aluno, professor é perturbação.

Não é o contrário?
Não, é verdade. Essa é uma opinião que choca todo mundo. Eu considero que a coisa mais importante da minha formação profissional se chama Centro Acadêmico Santos Dumont. Mais importante que o doutorado no MIT.

Por quê?
Porque o centro acadêmico no ITA – e isso foi destruído pela revolução de 1964 – era o coração da instituição. Quando cheguei lá perguntei: “Onde precisa de gente?”. Disseram: “Lá na rádio”. Os alunos haviam inventado e montado uma rádio, construindo boa parte dos equipamentos. Eles me colocaram para visitar as gravadoras pedindo doação de discos em troca de tocá-los na rádio. Eu tinha acabado de fazer 18 anos e fui para São Paulo, de gravadora em gravadora, conseguir doação de disco. Mais tarde fui presidente da Atlética e tive de gerenciar um orçamento. Precisava tomar cuidado porque aquilo era dinheiro público, tinha de fazer concorrência etc. Acho que essa experiência foi mais importante até do que o próprio curso.

Era uma questão de processo criativo também?
Tinha o processo criativo e o cultural. Toda segunda-feira nós tínhamos uma peça de teatro ou um concerto de primeiro nível. Isso é importante no começo da vida dos alunos. Além disso, existia o curso puxado. A nota mínima de aprovação era 6,5, entre 5 e 6,5 em qualquer matéria você ia para a segunda época, abaixo de 5 era desligado. Essa segunda parte se manteve. Com a fama que o ITA adquiriu, fazendo vestibular nacionalmente, ele começou a atrair os melhores alunos do Brasil e continua uma excelente escola apesar de não ter bons professores. Não dá para comparar o corpo docente do ITA com uma Unicamp ou com uma USP.

Eles sabem dessa sua opinião?
Sabem. Eu já disse isso lá. Nunca disse isso para falar mal dos professores, sempre disse que o papel do ITA era o dos alunos. Inclusive esse tipo de análise está ligado a meu trabalho na Unicamp, onde hoje estou no Conselho Universitário. Aliás, tenho uma profissão e um hobby. Meu hobby é ser presidente da AsGa, minha profissão é ser conselheiro de conselhos não remunerados. Estou na Unicamp, no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), no Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), no conselho consultivo da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e no conselho científico do Instituto Uniemp. Até há um mês estava na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

O senhor disse que o grupo que estava nos Estados Unidos veio para a Unicamp. Como isso foi feito?
Tudo estava na cabeça do Zeferino [Zeferino Vaz, criador da Unicamp ]. Ele, no início, teve dificuldades em atrair pessoas de primeiro nível para a Unicamp. Estava tudo mais ou menos certo para a gente ir para a USP, mas aí começaram resistências lá dentro e nós viemos para a Unicamp. O Zeferino percebeu que a vinda de um grupo de alto nível ajudaria a atrair gente de outras áreas. Mas ele já tinha também a idéia da universidade como centro de um pólo para a cidade de Campinas e isso nos entusiasmou. Ele nos ajudou e lembro que, alguns anos mais tarde, quando eu era diretor do departamento de física, soube que em Brasília estavam analisando a decisão do local para a instalação do CPqD e que Campinas estava em segundo lugar na lista.

Qual era o primeiro?
Era São José dos Campos. Aí eu fui para o Zeferino e disse: “Está acontecendo isso e o senhor precisa entrar na jogada, está na hora de conversar com o José Antônio de Alencastro e Silva”, que era o presidente da Telebrás. Na mesma hora ele ligou para o Alencastro, convidando-o para uma visita à Unicamp. O Alencastro chegou e entrou para uma conversa com o Zeferino. Quando ele saiu de lá, o CPqD era de Campinas.

A Unicamp já tinha esse relacionamento com a Telebrás?
Não, não existia. A Telebrás resolveu entrar depois. O primeiro presidente da Telebrás, o Euclides Quandt de Oliveira, que depois foi ministro, quando da criação dessa estatal, no finzinho de 1972, percebeu que se ele criasse imediatamente o CPqD (fundado em 1976) não daria certo. Quem fazia pesquisa em telecomunicações era a universidade, e como ele não poderia matar a galinha dos ovos de ouro… Então a Telebrás adiou a criação desse centro, e o dinheiro que ela gastaria foi investido em projetos nas universidades para criar massa crítica. E um dos primeiros projetos aprovados foi com a Unicamp, no grupo que eu dirigia, para o desenvolvimento de comunicação via fibra óptica. Anos depois encontrei com o Quandt de Oliveira num aeroporto. Ele estava aposentado, e aí aproveitei e perguntei: “Ministro, quando o senhor aprovou aquele projeto, imaginava que a fibra óptica fosse tão importante quanto é hoje?”. Ele disse: “Não, eu achava aquilo uma loucura completa”. “Então por que o senhora provou esse projeto?” Ele respondeu: “Disseram que o senhor ia formar gente boa, isso é o que interessava”.

Quando vocês fizeram o Zezinho, o primeiro projeto de computador no Brasil?
Isso foi em 1961. No ITA, o aluno precisa fazer um trabalho no último ano, que pode ser em grupo. Nas férias do quarto para o quinto ano fiz uma viagem à Europa com quatro colegas e dois professores do ITA. Estava na França, visitando algumas instituições, entre elas a estatal Companie des Machines Bull que o governo francês tinha criado. Lá eles nos apresentaram alguns computadores. “Se os franceses podem fazer, por que a gente não pode? Vamos fazer um computador”, dissemos logo depois. Quando começamos a trabalhar ficou óbvio que não conseguiríamos nem recurso nem tempo para fazer a nossa idéia original, algo que pudesse ser industrializado depois. Mudamos o foco do projeto para fazer algo para uso em laboratório. Na época não existia software e a única solução foi fazer um programa muito simples. Ele apenas somava, subtraía, coisas que hoje uma maquininha de calcular das mais simples faz com uma capacidade mil vezes maior.

Quem estava nesse grupo?
Alfred Voeffner, André Massareli e Fernando Vieira de Souza. Aí vocês poderiam perguntar “qual foi a repercussão?”. Nenhuma! Ninguém pensou naquilo, nenhum de nós tinha a idéia de que aquilo fosse algo pioneiro.

Diferente do Patinho Feio (considerado o primeiro computador brasileiro, finalizado na USP em 1972)?
Sim, mas o Patinho Feio foi feito em outro esquema, quase uma década depois, com a consciência de investimento nessa área. Além de mais recursos, já estava inserido num processo. Não era um trabalho de curso.

Por que o nome Zezinho?
Nunca foi o nome formal. Era o nome carinhoso. Nem pensávamos em siglas ou números. Era um computador didático, transistorizado. Quando chegou o final do ano, virou ponto de honra deixá-lo funcionando. Trabalhamos nos fins de semana, no Natal e até depois da formatura. Parece que dois anos depois um outro aluno – eu já estava nos Estados Unidos – pegou o Zezinho como trabalho individual para fazer uma série de melhorias, mas depois acho que ele foi canibalizado.

Como o senhor foi para o MIT?
Eu ganhei uma bolsa da fundação da GE (General Electric). A fundação da GE dava dez bolsas para dez países. Nunca estudei tanto como naquela época nos Estados Unidos. Como passei a me sair bem nos estudos, começaram a me pressionar para fazer doutorado. Envolvido por aquele ambiente, liguei para minha mulher, em novembro, e propus: “Topa casar no Natal?”. Depois escrevi para minha mãe, dizendo que se ela me desse de presente de casamento uma passagem eu casava no Brasil, senão casava por procuração. Na volta, consegui uma bolsa do CNPq e fiquei até o doutorado. Acho que eu deveria estar no Guinness. Fiz mestrado e doutorado em quatro anos. Comecei solteiro e terminei com três filhos. Depois fui trabalhar no Bell Labs, onde fiquei cinco anos.

Foi aí que conheceu a fibra óptica?
Exatamente. Em 1970 ocorreram dois desenvolvimentos fundamentais: o primeiro, o grupo da Bell de que eu participava conseguiu fazer um laser semicondutor que funcionou à temperatura ambiente. Antes, para ele funcionarera preciso refrigerá-lo a baixa temperatura. Isso não era prático. E o segundo, a empresa Corning Glass anunciou a primeira fibra óptica produzida em laboratório. Para a gente, que trabalhava na área, se tornou óbvio que esse sistema iria ser dominante. Mas isso levaria ainda muito tempo para ser economicamente importante. Depois que voltei ao Brasil comecei a vender a idéia de iniciar um programa nessa área para chegarmos junto dos outros porque tínhamos tempo e poderíamos formar gente.

Quer dizer: o desenvolvimento aqui no Brasil foi muito menos atrasado nessa área do que normalmente acontece?
O nosso laboratório na Unicamp foi o terceiro do mundo a fazer a segunda geração desse tipo de laser, antes do Bell Labs. Bom, por que fizeram antes, seria o caso de perguntar. Se eu quero falar de gozação, digo “eu tinha dois alunos que não sabiam que era difícil”.

Mas, na realidade, como isso acontece?
Como o produto da universidade é gente, ela tem uma grande vantagem: abandonar um projeto praticamente sem trauma. O mesmo não acontece num centro de pesquisa de uma empresa, por exemplo, onde para começar um projeto é preciso muitas decisões e pará-lo torna-se um processo traumático.

Como o senhor largou a universidade e se tornou empresário?
Essa é das muitas decisões certas tomadas pelos motivos errados. Na época que começou a Lei de Informática, a Secretaria Especial de Informática (SEI) contratou a Unicamp para criar o Instituto de Microeletrônica, e eu iria dirigi-lo. Então comecei a me afastar aos poucos do meu laboratório na Unicamp. Quando finalmente o projeto foi aprovado, ocorreram injunções políticas e resolveram nomear outra pessoa para a direção. Aí me vi com a brocha na mão. Psicologicamente, eu já tinha saído da universidade e era muito difícil voltar a ter motivação, além de ter passado a chefia para outro colega. Nesse caso, tinha de decidir se mudava de profissão ou mudava de país. Com a família radicada aqui, resolvi mudar de profissão.

Começou por onde?
A minha idéia era ir para a área de microeletrônica. Eu estava nesse processo quando o presidente da Elebra me convidou para dirigir a área de desenvolvimento da empresa. Porém disse a ele que não entendia mais nada de eletrônica, nem de computador e nada de desenvolvimento industrial. O mais perto que já estive da indústria foi o Bell Labs, que não é tão perto assim. Aí a resposta dele me entusiasmou: “Sabemos disso. Chegamos à conclusão de que desenvolvimento como nós queremos fazer nunca ninguém fez no Brasil. E se trouxermos alguém de fora para trabalhar aqui, ele também não vai entender”. Eu disse que, se o conceito era esse, então aceitava.

Isso foi em 1983. A Elebra produzia o que nessa época?
Equipamentos de telecomunicações e periféricos de computadores, impressoras, discos. Fui contratado para desenvolver outros equipamentos de telecomunicações, de transmissão etc. Depois a empresa foi reorganizada como uma holding com várias subsidiárias, inclusive uma empresa de componentes, a Elebra Microeletrônica, da qual passei a ser presidente, além de diretor de tecnologia da holding. Mas no fim do Plano Cruzado a Elebra estava muito endividada. Eles resolveram se desfazer da área de microeletrônica e me perguntaram se eu acreditava no projeto. Disse que sim e eles pediram para eu arranjar sócios. Depois de muito bater pernas, fui ao casamento de uma filha de um colega em São Paulo. Lá encontrei outros colegas de turma do tempo do ITA, começamos a beber e, depois de contar minha trajetória, um deles virou para mim e disse: “Quanto dinheiro você precisa?”. Eu respondi que, se não tivesse no mínimo US$ 1 milhão, não daria para conversar. Isso já era fim dos anos 1980. Aí ele falou: “Você não quer negociar comigo?”. Foi assim que nasceu a AsGa.

Quem era o sócio?
João MacDowell. Ele tinha uma indústria de autopeças. Uma tia minha resolveu fazer um adiantamento de uma herança e nós pudemos fazer a AsGa. Ele foi muito importante não só pelos recursos, mas porque tinha experiência em tocar uma empresa. Depois, mais tarde, resolveu vender a parte dele no negócio.

A AsGa nasceu para fazer o quê?
Para fazer componentes, lasers e detectores. São coisas que vão na ponta da fibra óptica. O nome AsGa vem de arseneto de gálio, um composto usado como matéria-prima de semicondutores e de lasers. Na época, o nosso sonho era evoluir para fazer semicondutores. Mais tarde, durante o Plano Collor, o governo acabou com o mercado de componentes no Brasil. Quiseram acabar com a reserva e acabaram com o mercado. Porque nós não perdemos para o componente importado, nós perdemos para o equipamento importado. Ficou mais barato importar um kit para montar o equipamento aqui. Então começamos a migrar para fazer equipamento.

Como foi a mudança?
Quase falimos, mas estávamos com um projeto no BNDES que foi aprovado. Investiram US$ 1 milhão na AsGa. Metade em ações e metade em empréstimo. E aí conseguimos sobreviver e crescer outra vez com base nos multiplexadores, que fazem a transmissão de vários sinais elétricos ou de luz ao mesmo tempo.

Vocês quase atingiram os R$ 100 milhões de faturamento.
Com a regra de metas que fez as empresas de telecomunicações anteciparem os investimentos, aconteceu uma bolha muito grande entre o meio de 2000 e o de 2001. Todo mundo sabia que aquilo era uma bolha, só que a queda foi muito mais violenta do que se esperava quando ela estourou, porque o mercado de telecomunicações no mundo estava desabando, e isso criou uma crise mais profunda. Caímos de R$ 90 milhões de faturamento, em 2001, para R$ 27 milhões em 2002, valor repetido em 2003. Mas dessa vez estávamos muito mais preparados.

E a questão da Lei de Inovação, do famoso pressuposto que um professor da universidade vai poder sair e montar sua empresa, trabalhar na indústria e continuar com um certo vínculo na universidade. O que o senhor acha disso?
Eu acho que a Lei de Inovação, além de trazer várias coisas muito boas, pode corrigir outras. Por exemplo, hoje um órgão do governo brasileiro não pode contratar uma empresa para desenvolver um produto. Porque pela lei atual o governo só pode emprestar dinheiro para as empresas, não pode fazer mais nada. Se, por exemplo, o governo quiser ter um produto que a AsGa vai ter de desenvolver, ele não pode me contratar para fazer esse desenvolvimento. Nenhuma Embraer seria possível hoje.

É o tal chamado poder de compra do governo?
Não, não é de compra, é de desenvolvimento. Nos Estados Unidos, o governo gasta, contratando desenvolvimento em empresas, duas vezes o que gasta em pesquisa na universidade. Esse é o principal instrumento de desenvolvimento dos países desenvolvidos e é permitido pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

E o trabalho do professor?
Em todos os países do mundo, dar consultoria é parte do trabalho do professor. A consultoria é a maneira de a universidade entender a sociedade para a qual ela forma gente. Manter os professores trancados na universidade não adianta. Quando estava na Unicamp, vocês sabem quais eram os professores mais bem remunerados? Os do departamento de música.

Porque tocavam por aí?
Porque na legislação da época a única coisa que se podia ganhar fora era direito autoral. Só que ela aceitava o cachê como um direito autoral. Então o músico ganhava a mesma coisa que eu ganhava como professor, além do cachê. Você vai querer que um aluno de música siga os ensinamentos de quem nunca se apresentou em um concerto na vida? Não defendo o caso do professor que trabalha meio período na universidade e meio fora. Isso não é bom. Ele está mais num e menos no outro. Mas, se ele for para fora e não der certo, volta com um aumento de conhecimento. Nos Estados Unidos, você não pode cobrar menos de xis por hora para não desmoralizar a universidade.

O senhor tem se manifestado contrário à expressão “fundo perdido”. Por quê?
Odeio esse termo. Se você dá dinheiro para a universidade fazer pesquisa, para o bem público, não pode ser fundo perdido. É um investimento. Nos Estados Unidos, qualquer agência do governo que faz contrato com uma grande empresa tem que reservar, acho que é 2% ou 2,5% do seu orçamento, para micro e pequenas empresas. Se a Nasa contrata uma grande empresa para fazer um ônibus espacial, ela tem que arranjar contratos em pequenas empresas de 2,5% do custo daquele veículo. Não é financiamento, é contrato de desenvolvimento. E não é um dinheiro que é dado, é preciso apresentar resultados. Isso vale para a universidade e vale para a empresa.

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