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Natureza preciosa

Especialistas conseguem exploração econômica da Mata Atlântica sem dano ambiental

MIGUEL BOYAYANFlor de bromélia (Quesnelia sp.) comum na Mata AtlânticaMIGUEL BOYAYAN

A região do Vale do Ribeira, situada entre as cidades de São Paulo e de Curitiba, abriga a maior área remanescente de Mata Atlântica do país. São aproximadamente 600 mil hectares de floresta, em grande parte preservados em unidades de conservação como parques e áreas de proteção ambiental. É um imenso patrimônio natural que contrasta com a precária situação econômica vivenciada por muitos de seus habitantes.

Fora o cultivo da banana e do chá-mate e, em menor escala, a prática da pecuária, a falta de alternativas leva uma parte dos moradores à extração ilegal de madeira, palmito, plantas medicinais e ornamentais, contribuindo assim para a diminuição das populações naturais de espécies nativas da região. Uma das saídas para esse problema é o implemento do chamado desenvolvimento sustentável, em que a exploração econômica da natureza possa ser feita sem a destruição de florestas e de qualquer outro tipo de ambiente natural, trazendo benefícios sociais e ecológicos.

Um bom exemplo da implantação desse sistema está em dois projetos desenvolvidos nos últimos quatro anos pela empresa Atlântica Assessoria Agroambiental, da cidade de Registro, em São Paulo. O primeiro tratou de identificar e extrair da mata, com metodologia científica, plantas medicinais que começam a ser vendidas secas e embaladas. O outro projeto utiliza, por exemplo, gemas (pequenos pedaços do broto) das belas bromélias nativas da região e as reproduzem em laboratório, em milhares de indivíduos idênticos, sem destruição da planta original ou retirada de exemplares da floresta.

Além dos ganhos ambiental,científico e econômico desses dois projetos, há ganhos sociais: a população da região é diretamente beneficiada. O conhecimento adquirido com o projeto de plantas medicinais, tanto no que diz respeito à extração como no processamento da matéria-prima, está sendo repassado a comunidades quilombolas da região, populações formadas por descendentes de escravos.

Na verdade, no caso das plantas medicinais, esse processo é um retorno, em forma de novos benefícios, das informações que esses moradores haviam, no início do projeto, repassado aos pesquisadores da Atlântica. O conhecimento tradicional das comunidades quilombolas sobre o uso dessas plantas como remédio deu origem à escolha das espécies retiradas da mata. O trabalho dos pesquisadores foi dar garantias da regeneração natural das plantas dentro de um ciclo programado de extração.

Para executar os projetos, a Atlântica contou com financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP. O coordenador do projeto de plantas medicinais foi o engenheiro agrônomo Alexandre Mariot, que iniciou alguns trabalhos com a Atlântica há oito anos, quando fez um estágio de conclusão do curso de graduação realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Fundada em 1996, a Atlântica tem como principal atividade desenvolver tecnologia de manejo de espécies nativas da Mata Atlântica com uso sustentável. Um de seus clientes é o Grupo Agroindustrial Eldorado, para o qual a empresa presta consultoria em um trabalho de manejo de palmitos-juçara (Euterpe edulis) em 18 mil hectares da Fazenda Colônia Nova Trieste, no município de Eldorado, distante 259 quilômetros da capital paulista.

Floresta preservada
Como a parceria entre a Atlântica e o grupo empresarial permite o desenvolvimento de pesquisas no local, o levantamento de campo das plantas medicinais escolhidas para serem estudadas no projeto foi feito em 2.500 hectares da área reservada para o manejo de palmito. A fazenda, que tem no total 30 mil hectares com cobertura florestal – correspondentes a 30 mil campos de futebol -, foi comprada na década de 1950 por uma siderúrgica do grupo como reserva de madeira, que seria queimada nos altos-fornos durante uma das etapas do processo de transformação do minério de ferro em aço. As novas técnicas utilizadas na produção de aço dispensaram a madeira e contribuíram para manter preservada a propriedade.

A seleção das espécies começou com visitas aos moradores dos quilombos de Pedro Cubas, Nhungara, Ivaporunduva e São Pedro, localizados em Eldorado, pelo coordenador do projeto. Mariot perguntava quais plantas eram utilizadas, quais as áreas de ocorrência e com que finalidade eram usadas. O reconhecimento de cada uma delas foi feito em volta da casa dos moradores, que as cultivam, e nas áreas de florestas.

O coordenador classifica seu trabalho como um resgate do conhecimento tradicional, porque a região concentra o maior número de comunidades remanescentes de quilombos do Estado de São Paulo. São 52, algumas já com direito à posse definitiva da terra. Com a abolição da escravatura, muitos escravos que trabalhavam na mineração, atividade predominante na região no século 18, permaneceram na área como lavradores.

“As comunidades são importantes para a preservação da Mata Atlântica, porque são vizinhas das unidades de conservação”, diz o engenheiro agrônomo Ronaldo José Ribeiro, um dos sócios da Atlântica. Os outros dois sócios são o também engenheiro agrônomo Joanir Odorizzi e o técnico agrícola Jefferson Viana do Nascimento.

Durante as entrevistas, os moradores apontaram 137 espécies de plantas – nativas e exóticas (não-originárias) da Mata Atlântica – utilizadas e, em alguns casos, comercializadas pelas comunidades. Dessas foram escolhidas inicialmente 14 para estudos. Os critérios de escolha tiveram como base as plantas que as comunidades usam há bastante tempo, as espécies conhecidas pelo mercado e aquelas cujos estudos farmacológicos sustentam os seus usos.

A eficácia, a segurança de uso e o controle de qualidade de algumas plantas foram confirmadas e outras continuam em estudo, por meio de testes farmacológicos, toxicológicos e químicos realizados no Laboratório de Fitomedicamentos coordenado pelo professor Luiz Cláudio Di Stasi, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Botucatu, que atuou no projeto como consultor. Ele participa de estudos de plantas medicinais na região desde 1986.

No decorrer da pesquisa, os estudos concentraram-se em oito plantas: pariparoba (Piper cernuum), cana-do-brejo (Costus spiralis), jaguarandi (Piper gaudichaudianum), apepa-juan (Piper lhotzkianum), embaúba (Cecropia pachystachya), espinheira-santa (Sorocea bomplandii), avenca (Adiantum sp.) e cipó-abuto (Cissampelos sp.). Essas plantas são usadas pelos quilombolas para tratar dor de dente (jaguarandi), dores estomacais (espinheira-santa), bronquite e resfriado (embaúba) e até como diurético (cana-do-brejo).

Os pesquisadores também caracterizaram a distinção da pata-de-vaca verdadeira da falsa, porque uma tem valor medicinal (Bauhinia forficata) e a outra não (Bauhinia candicans). Outras plantas estudadas foram o guaco (Mikania glomerata), usado nas afecções respiratórias, e outra espécie de espinheira-santa (Maytenus ilicifolia), também para problemas estomacais.

Na fazenda do Grupo Eldorado foi realizado um levantamento para avaliar a quantidade e o potencial de exploração de cada espécie. Mesmo sendo uma propriedade particular, a pesquisa foi feita com autorização do Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DEPRN), vinculado à Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo e responsável pelo licenciamento ambiental de espécies nativas. Autorização necessária para qualquer trabalho que tenha como objeto a vegetação nativa da Mata Atlântica no Estado de São Paulo.

O estudo foi efetuado por amostragem no campo, onde são montadas parcelas (quadrados) na floresta para estimar a quantidade de plantas das espécies selecionadas que estarão disponíveis para exploração, de acordo com os critérios estabelecidos. Vários parâmetros da planta são avaliados, como diâmetro e altura, para verificar a dinâmica de crescimento e de reposição da biomassa explorada (folhas, caule, raízes).

O objetivo é determinar os ciclos de corte ideais para cada espécie e, com isso, estabelecer a melhor forma de exploração da área. Também foi feito um acompanhamento do comportamento ecológico das plantas na mata, identificando as fases de crescimento e como elas se multiplicam, além da relação delas com outras espécies. Um dos critérios adotados para a colheita da pariparoba, uma espécie arbustiva com vários ramos por planta, foi manter sempre os de maior diâmetro, porque eles possuem melhor capacidade de produção de sementes.

Mariot afirma ser necessário conservar plantas reprodutivas na área que serão as responsáveis pelas futuras gerações a serem exploradas. É preciso também ter um ciclo definido de corte, para ser possível prever em quanto tempo e em que quantidade a floresta poderá repor o que foi retirado. “O manejo sustentado baseia-se no caráter cíclico da exploração”, diz.

O projeto criou também um padrão de qualidade para as plantas medicinais, que inclui uma unidade de beneficiamento e armazenagem. Nesse local é feita a secagem do material, de acordo com normas de processamento que garantam a qualidade do produto, como a padronização do material vegetal a ser dessecado e os cuidados básicos de higiene e manipulação da matéria-prima. Antes de serem embaladas, as plantas primeiro passam por um processo de desidratação, que consiste em retirar a água dos tecidos vegetais. Isso garante a conservação do produto por um período de tempo maior, evitando a sua deterioração em razão do ataque de fungos e de bactérias.

Algumas plantas com maior teor de umidade passam por um processo de pré-secagem em um ambiente ventilado e protegido do sol antes de ir para o secador a gás, desenvolvido especialmente para essa etapa do processo. Depois de secas, elas são armazenadas em sacos fabricados com papel de cor parda, revestidos internamente com sacos plásticos de polietileno atóxico. A escolha da embalagem teve como objetivo proteger o produto da luz, responsável pela alteração da cor, do ataque de pragas e garantir o teor de umidade e de princípios ativos da matéria-prima. Com essas técnicas o tempo de armazenagem pode chegar a um ano.

O conhecimento adquirido com o projeto, iniciado em 2001 e encerrado em fevereiro deste ano, vai beneficiar imediatamente quatro comunidades quilombolas (Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas e Sapatu). Juntas, elas possuem mais de 5 mil hectares de terras, dos quais mais de 4 mil ainda com floresta. Mariot foi contratado pelas comunidades para fazer planos de manejo de plantas medicinais, em um projeto financiado pelo Fundo da Biodiversidade (Funbio), associação civil sem fins lucrativos que opera a partir dos recursos doados pelo Fundo para o Meio Ambiente Global (GEF, do inglês Global Environmental Facility) sob a administração do Banco Mundial.

A Atlântica também está fazendo parcerias com moradores da região para o manejo de plantas nas terras deles, ou em áreas arrendadas, dentro dos padrões estabelecidos no projeto. Para colocá-las no mercado, ela tem procurado grandes revendedores de chá a granel e fabricantes de fitoterápicos.

Biofábrica de flores
Dentro da mesma estratégia de trabalhar com desenvolvimento sustentável, a empresa também preparou, nos últimos três anos, um projeto de produção de bromélias, coordenado pelo agrônomo Lírio Luiz Dal Vesco. Como resultado desse projeto, a empresa montou uma biofábrica e já está colocando no mercado plantas cultivadas em laboratório a partir de matrizes coletadas na Mata Atlântica com autorização do DEPRN. O grande número de espécies de bromélias, que chega a cerca de 2.500 no planeta, garante uma ampla diversidade de flores e formas dessas plantas ornamentais, embora o abacaxi tenha sido transformado no membro mais famoso da família botânica das bromeliáceas.

Nas últimas décadas, o aumento da demanda, resultado da escolha de diversas espécies ornamentais para projetos paisagísticos, levou também à retirada ilegal de grandes quantidades de espécies nativas da Mata Atlântica. E motivou a empresa a implantar a biofábrica, porque na região não existe nenhum projeto de produção de bromélias de caráter comercial. Assim, depois da coleta na mata das plantas matrizes, elas são selecionadas e multiplicadas.

Para fazer o processo de micropropagação das mudas de bromélias, os pesquisadores utilizam duas formas: pela extração de sementes ou por multiplicação por gemas, que são os brotos das plantas recém-nascidas, método mais utilizado pela Atlântica. Com luvas e bisturi, as gemas são extraídas e levadas para um ambiente totalmente esterilizado no laboratório, onde são colocadas em um meio de cultura com nutrientes. Quando os brotos começam a se desenvolver, é feita a separação por tamanho e as novas plantas seguem para um ambiente com temperatura, umidade e luminosidade controladas. Depois que atingem cerca de 7 centímetros de altura, são transferidas para ambientes adequados com condições controladas e irrigação intermitente.

Grande escala
Conforme vão crescendo, as bromélias são transferidas para vasos pequenos e para viveiros em ambiente externo. A partir daí as mudas estão prontas para serem vendidas a produtores, que somente as revendem ao consumidor final quando já estão floridas. Um dos clientes da empresa é a prefeitura de Ilha Comprida, que utiliza as bromélias em projetos de paisagismo. Para multiplicação em grande escala, as gemas são repicadas a cada dois meses, o que permite a proliferação de brotos múltiplos. “Com apenas uma muda é possível produzir outras 50 mil mudas”, diz Dal Vesco, que deve finalizar o projeto neste mês de agosto.

A importância das bromélias como plantas ornamentais não foi abalada nem durante as campanhas contra a dengue, em anos anteriores, quando foram associadas aos nascedouros do mosquito Aedes aegypti, principal difusor da doença. Dizia-se que as larvas se proliferavam na água da chuva acumulada entre as folhas da planta. Essa ligação está sendo agora rebatida pelos especialistas na fisiologia das bromélias com o argumento de que na base de suas folhas são liberadas enzimas que tornam a água não receptiva para o desenvolvimento das larvas.

Esse líquido, portanto, torna-se uma fonte de nutrientes de “água suja”, ao contrário da preferência do Aedes por água límpida. Isso não significa que as larvas do mosquito não proliferem nas bromélias, mas, segundo pesquisa realizada pela Comissão Executiva do Plano Municipal de Erradicação do Aedes, da cidade do Rio de Janeiro, esse tipo de depósito representa cerca de 10% dos focos ante 70% das larvas encontradas nos pratos que servem de suporte às plantas.

A exploração da Mata Atlântica de forma racional, tanto com o manejo de plantas medicinais como de bromélias reproduzidas em laboratório, possibilita ao Vale do Ribeira utilizar seus recursos naturais sem devastar o ambiente. Mariot acredita que a manutenção do que sobrou dos remanescentes da Mata Atlântica do Brasil só será possível com o manejo sustentado de um conjunto de espécies. “O dono da terra pode obter renda da própria floresta e por isso terá interesse em mantê-la de pé.”

Os projetos
1. Levantamento de Parâmetros Técnicos para o Manejo Sustentável de Espécies de Plantas Nativas da Floresta Tropical Atlântica com Potencial Medicinal (00/07623-3); Modalidade: Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador: Alexandre Mariot – Atlântica; Investimento: R$ 148.185,00 (FAPESP).
2. Estudo de Viabilidade Técnica para a Instalação de Biofábrica de Bromélias no Vale do Ribeira (00/07624-0); Modalidade: Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador: Lírio Luiz Dal Vesco – Atlântica; Investimento: R$ 175.880,00 (FAPESP).

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