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Cinema

Retratista do Brasil

As muitas faces do país presentes na cinematografia do diretor Humberto Mauro

Testemunha de praticamente metade da história do cinema brasileiro, Humberto Mauro (1897-1983) deixou para a historiografia bons motivos para figurar entre as principais fontes de quem se ocupa das relações entre cinema e história. Não somente pela extensão de sua obra – produziu filmes de 1925 a 1974 -, mas pelo teor de suas fitas, todas voltadas para as coisas do país. A mais conhecida delas, O descobrimento do Brasil (1937), com música de Villa-Lobos, foi definido pelo próprio diretor como uma “ilustração detalhada da carta de Pero Vaz de Caminha”.

Um estudo completo sobre as imagens do Brasil na obra de Humberto Mauro acaba de chegar às livrarias, pela Editora da Unesp. Humberto Mauro e as imagens do Brasil, de Sheila Schvarzman (399 páginas, R$ 49,00), é resultado de uma tese de doutorado defendida (no Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp) após seis anos de intensa e árdua pesquisa, devido à inexistência de um acervo Humberto Mauro e ao desaparecimento da documentação escrita do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), onde o cineasta trabalhou entre 1936 e 1964.

Dos 357 filmes dirigidos por Mauro no Ince, Sheila pôde ver 90 – entre a Cinemateca Brasileira em São Paulo e o acervo do Centro Técnico Áudio Visual no Rio de Janeiro (CTAV) -, e a análise dessas obras lhe permitiu fazer uma revisão historiográfica sobre os motivos que levaram Humberto Mauro a ser considerado o mais nacionalista dos cineastas brasileiros. O trabalho deu origem a um pós-doutorado, em andamento na Unicamp, com o tema Octávio Gabus Mendes e as imagens da modernidade nos anos 20, no qual o trabalho conjunto com Mauro se insere.

Alimentos
“Quando pela primeira vez assisti a alguns filmes da época do Ince, logo percebi na cinematografia de Mauro questões que me interessavam como historiadora”, conta Sheila.”Paulo Emílio Salles Gomes já tinha escrito Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, sobre a primeira fase cinematográfica de Mauro, então eu resolvi me ater ao período do Ince, em que o cineasta fez desde filmes sobre os bandeirantes até roteiros sobre preparo e conservação de alimentos.”

Conforme avançou em suas pesquisas, Sheila percebeu, no entanto, que seria difícil compreender a fundo o rótulo de autenticidade nacional atribuído a Humberto Mauro se não estudasse toda sua trajetória cinematográfica e, sobretudo, a construção crítica e historiográfica feita sobre o autor. Assim retrocedeu aos primeiros anos de atuação do cineasta, no chamado Ciclo Regional (1925-1930), para depois lançar-se aos anos de Getúlio Vargas e do Ince e, finalmente, à convivência de Humberto Mauro com o Cinema Novo.

Em cada uma dessas três fases do cinema maureano Sheila identificou a construção de utopias em que se buscava fazer do cinema um agente de mudanças no país e no qual o diretor contribuía com seu trabalho.Durante o ciclo de Cataguases, no interior de Minas Gerais, o cineasta, junto com Adhemar Gonzaga, procura garantir a implantação e aceitação do cinema brasileiro pelo público, por possíveis investidores e pelo Estado. O cinema deveria ser um veículo de exibição da modernidade, a partir dos modelos bem-sucedidos dos estúdios norte-americanos. Crítico carioca e fundador da revista Cinearte, Gonzaga partilhou com Mauro a vontade de criar um cinema nacional moderno, fruto de um país que abandonava o paradigma rural em busca dos ideais urbanos.

Para tanto, a Cinearte criou a “Campanha pelo cinema brasileiro”. Aproveitando-se do interesse de intelectuais, políticos e eventualmente do próprio Estado e de parcelas do público, além do vácuo causado pela instabilidade temporária na exibição de filmes norte-americanos com os problemas colocados pelo cinema sonoro, a Cinearte procurava contribuir para a realização de filmes, tentando fazer do cinema brasileiro, definitivamente, uma expressão artística e uma atividade econômica possível e desejável.

Adhemar Gonzaga foi figura central nas ficções Lábios sem beijos (argumento), Voz do Carnaval (produção) e Ganga bruta (produção), feitos por Mauro já na Cinédia, no Rio de Janeiro. Também esteve nos documentários Ameba (produção) e Como se faz um jornal moderno (produção). A parceria manteve-se entre 1930 e 1933, e o rompimento se deu após o fracasso do longa-metragem Ganga bruta , cuja produção foi tão arrastada que o som se tornou indispensável, sob o risco de tornar o filme anacrônico. Adhemar Gonzaga já tomara contato com a inovação em Hollywood, em 1929, onde percebera que, com o uso de discos, seria possível fazer uma adaptação.

Em 1936, Humberto Mauro viu-se desempregado no Rio de Janeiro. Foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar como diretor técnico do Ince, dirigido por Roquette-Pinto (1888-1954). Figura de destaque na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação, Roquette-Pinto formou-se em medicina, mas transitava tranqüilamente por áreas como antropologia, etnografia e história. Foi presidente do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, embora não tenha compartilhado de idéias racistas como as do advogado paulista Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica Paulista.

“Ser médico no Brasil no início do século 20 significava participar do debate em que se encontrava a elite nacional, dividida sobre os destinos e a identidade de uma nação marcada pela diversidade étnica”, explica Sheila. Roquette-Pinto, um mendeliano convicto, se recusava a ver nos cruzamentos entre brancos e negros fator de degeneração de raça, como muitos de seus contemporâneos.

Ciência
“Imerso nesse ideário e no próprio evolucionismo então vigente, Roquette-Pinto queria apressar o tempo histórico, chegar rápido e longe com suas mensagens de iluminação da ciência e do saber”, diz a pesquisadora. Daí seu empenho em ajudar a desenvolver, no país, o telégrafo, o rádio e o cinema.

Pois foi nesse ambiente que Humberto Mauro dirigiu grande parte dos 357 filmes do Ince. “A filmografia do Ince pode ser dividida em duas fases”, explica Sheila. “Num primeiro momento, de 1936 a 1947, os filmes têm claramente o objetivo de construir a imagem de um país extraordinário”, diz. Trata-se do período do Estado Novo e, segundo a autora, Vargas sabia e pretendia usar o poder do cinema para a educação. “Nessa fase, o homem comum não existe no cinema de Mauro. Estamos imersos no universo do positivismo, do cientificismo de uma noção romântica de nação. Tudo é grandioso, a natureza é portentosa e a ciência funciona como âncora da nação”, complementa Sheila.

São desse período documentários como Prática de taxidermia, O telégrafo no Brasil, Preparação da vacina contra a raiva e Os Lusíadas, títulos que mostram claramente alguns objetivos do Ince: divulgação técnica e científica, prevenção e sanitarismo, conteúdo escolar. Mas Mauro também era encarregado, muitas vezes, de registrar cenas nacionais, como paradas militares, corridas de automóveis e inaugurações de espaços públicos.

“Quando comparamos esses filmes de ‘reportagem’ da vida nacional com os científicos, percebemos a verdadeira vocação de Humberto Mauro”, comenta Sheila. “Mauro registra uma parada militar como qualquer um de nós registraria, a câmera usada de maneira simples, sem nenhum entusiasmo ou intervenção mais contundente”, analisa a pesquisadora. “Em compensação, quando o assunto é o corpo humano, a natureza, a vitória-régia – temas que o desafiavam -, Mauro mostra que o seu interesse era antes de tudo filmar, o que fazia com maestria.”

Terminado o Estado Novo, a produção cinematográfica do Ince tomou outros rumos. No Estado democrático, o país extraordinário dá lugar a expressões do homem comum, mostra-se um “país ordinário” na escala dos homens. É o tempo de filmes como O preparo e conservação de alimentos, o primeiro a chamar a atenção de Sheila Schvarzman, antes mesmo do início de seus estudos. “Esse filme tem uma linguagem simples e coloquial”, diz a historiadora. Pois foi essa simplicidade e a imensa capacidade de produzir um cinema realista, apesar das dificuldades do cinema nacional, que levaram Humberto Mauro a ter um papel significativo na terceira utopia de transformação nacional empreendida pelo cinema, descrita por Sheila.

Sujeito
Se no ciclo de Cataguases Humberto Mauro produziu um cinema que buscava expressar a modernidade no país e, nos anos do Ince, um cinema que pretendia educar e transformar as populações através do saber que viria da ciência ou da história, no terceiro momento, a partir do fim dos anos 1950, Humberto Mauro deixou de ser sujeito para ser objeto. “Humberto Mauro exerceu fascínio sobre os cineastas do Cinema Novo e se tornou um modelo de como fazer cinema nacional: um cinema realista, artesanal, de baixo custo, em oposição aos gastos do cinema de estúdio”, diz Sheila. “Embora politicamente os cinemanovistas discordassem de Mauro.”

Quanto a um projeto de nação, a pesquisadora define cada uma das fases da seguinte forma: “Com Adhemar Gonzaga e a ‘Campanha do cinema brasileiro’ da Cinearte, tratava-se de definir como o Brasil deveria aparecer para si mesmo. A trajetória de Humberto Mauro pode ser comparada também às aparentes contradições da modernidade mutante dos 50 anos em que atuou como cineasta”.

Vindo do interior de Minas Gerais, Mauro viveu a opulência do Rio de Janeiro moderno de Getúlio Vargas e fez sua obra cinematográfica servir de registro e instrumento desse universo. Nos anos 1950, porém, ele apostou na possibilidade de realizar um cinema rural. Voltoupara Minas, onde abriu o Estúdio Rancho Alegre, com o qual levou às últimas conseqüências seu cinema artesanal e onde realizou seu último longa-metragem, a que chamou de Canto da saudade. “Esse retorno às origens mostra um homem que viveu de perto a modernidade, mas que ao fim percebeu que talvez o caminho fosse outro”, afima a pesquisadora.

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