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Genética

Assinatura molecular

Método usa um pequeno fragmento de DNA para identificar espécies animais

No supermercado não há produto sem um código de barras, forma de identificação composta na verdade por uma combinação de 11 dígitos. Mas cada variedade de mercadoria apresenta uma seqüência numérica específica, única e distinta da encontrada em todas as demais. Dois tipos de artigos ainda que muito parecidos, ostentam séries diferentes de algarismos. O sistema reconhece, com precisão e de forma rápida, qualquer gênero de item presente na loja. Na natureza não há animal sem o gene citrocromo C Oxidase I (COI), um dos mais estudados pela genética e localizado no genoma da mitocôndria, a usina de energia das células. Mas, segundo alguns biólogos, cada espécie tem um pequeno fragmento do COI característico, particular e diverso do achado em todas as outras. Duas variedades de organismo, ainda que extremamente semelhantes, exibem, nesse gene, distintas seqüências de nucleotídeos, a unidade química que compõe o DNA. Tal pedaço do COI, de cerca de 650 nucleotídeos, dizem esses pesquisadores, contém a assinatura molecular de cada espécie e pode ser a base para a criação de um código de barras da vida: um sistema rápido, acurado e (relativamente) barato de identificar espécies em larga escala, sobretudo as de animais.

A idéia de implementar a taxonomia genética foi proposta há cerca de dois anos pelo biólogo Paul Hebert, da Universidade de Guelph, no Canadá. Desde então a nova forma de caracterizar e catalogar organismos ganha adeptos na comunidade científica. Em fevereiro, o Museu de História Natural de Londres sediou a primeira conferência internacional promovida pelo Consórcio para o Código de Barras da Vida, criado no ano passado para difundir a metodologia. Cerca de 200 pesquisadores de museus, zoológicos, herbários, universidades e instituições de pesquisa dos cinco continentes, inclusive do Brasil, participaram do evento. O encontro serviu para alavancar dois projetos internacionais de peso para os próximos cinco anos: a iniciativa que vai determinar a assinatura genética das 10 mil espécies conhecidas de aves do planeta e o esforço que visa determinar o código de barras da vida de 23 mil espécies de peixes, 15 mil do mar e 8 mil de água doce. Há também iniciativas locais, como o projeto de caracterização genética das espécies de árvores da Costa Rica. “Estimamos que custaria cerca de US$ 1 bilhão para implementar uma biblioteca digital com o código de barras dos 10 milhões de espécies animais que devem existir, das quais conhecemos hoje apenas 10%”, afirma Hebert. “Seria prematuro calcular os custos da montagem de um sistema semelhante com dados de organismos de outros reinos.”

Embora faça parte do Consórcio para o Código de Barras da Vida, o Brasil ainda não está formalmente engajado em nenhum projeto de larga escala que utilize a taxonomia molecular. “Temos apenas iniciativas pontuais, como os estudos que fazemos em nosso laboratório com morcegos e pássaros brasileiros”, comenta o geneticista Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que integra o consórcio e esteve na conferência de Londres. “Mas precisamos de uma rede nacional, como ocorreu nos projetos Genoma, que estimule a participação de várias instituições em trabalhos mais abrangentes sobre certos grupos de animais, plantas e microorganismos.”

Aves e borboletas
A geneticista Ana Maria de Lima Azeredo Espin, diretora do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da Universidade Estadual de Campinas (CBMEG/Unicamp), que também participou do encontro na Inglaterra, é igualmente favorável à formulação de iniciativas na área de taxonomia molecular. “Estamos pensando em propor um projeto que use o código de barras de DNA, talvez dentro do programa Biota-FAPESP”, diz Ana Maria, que usa a técnica em estudos  genético-evolutivos com espécies de moscas.

A nova metodologia mostrou ser útil em duas grandes frentes: gerar uma assinatura molecular para animais já identificados pela ciência e descobrir novas espécies que não foram até agora flagradas pela taxonomia tradicional. Num estudo publicado em outubro passado na revista científica PLoS Biology, Hebert e colegas canadenses e norte-americanos mostraram que o seqüenciamento de apenas 648 nucleotídeos do gene COI foi suficiente para discriminar corretamente 260 espécies conhecidas de aves da América do Norte. Cada animal tinha um código de barras no DNA mitocondrial próprio, diferente da seqüência presente nos demais. As distinções na região analisada do gene COI eram 18 vezes maiores entre aves de duas espécies próximas do que entre dois exemplares da mesma espécie. Uma evidência de que somente com a informação genética, sem se recorrer a dados anatômicos e ambientais, era possível discriminar todas as espécies. Também em outubro, num artigo publicado na revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences, Hebert e Daniel Janzen, da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, apresentaram dez novas espécies de borboletas tropicais, todas derivadas da Astraptes fulgerator. Nesse caso, os cientistas usaram informações geradas pela técnica do código de barras de DNA para confirmar uma antiga suspeita fomentada por anos de estudos de campo com essa borboleta na Costa Rica: a de que A. fulgerator não era uma única espécie, mas sim um complexo de ao menos uma dezena de espécies ocultas. Embora gerem borboletas adultas praticamente idênticas, cada espécie exibia cores e traços físicos diferentes em sua forma larvar e se alimentava de distintas plantas – além, é claro, de apresentar uma seqüência particular no gene COI.

Alguns biólogos, acostumados a classificar os organismos por meio da comparação de traços anatômicos e do estudo de hábitats, torcem o nariz para a abordagem molecular. E questionam: como um pedaço de um único gene pode identificar todos os bichos? Apesar da crítica, a nova técnica não surgiu para combater a taxonomia convencional. Ao contrário. Quer ser uma ferramenta para dinamizar o trabalho dos profissionais das espécies. “O código de barras não vai substituir a taxonomia clássica”, explica Santos. “É apenas a incorporação de mais informação taxonômica, só que na forma de caracteres de DNA.” Como toda técnica, tem suas limitações. O gene COI, por exemplo, pode não ser o melhor para identificar certos animais. No caso das plantas, há quase um consenso de que um gene do cloroplasto, organela encarregada da fotossíntese, deve ser o escolhido como assinatura molecular dos vegetais.

PARA SABER MAIS ACESSE:

www.barcodinglife.com
www.barcoding.si.edu

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