Imprimir PDF Republicar

Capa

Spoan: uma nova doença

Uniões consangüíneas provocam uma forma desconhecida de deficiência em cidade do Nordeste

Há quinze anos, Elenara Maria de Queiroz Moura estava grávida – e a cena de uma novela não lhe saía da cabeça. Um casal de primos queria ter filhos e procurara um ginecologista. Quando soube que os clientes eram parentes próximos, o doutor do folhetim televisivo fora taxativo: era melhor evitar a gravidez. Casamentos consangüíneos apresentam maior risco de gerar crianças com alguma doença hereditária. Se queriam descendentes, era mais prudente adotar um, sentenciara o médico. Elenara, então com 20 anos, tinha motivos para se preocupar. Era casada com José Moura Sobrinho, um primo em primeiro grau cinco anos mais velho. Ambos eram naturais de Serrinha dos Pintos, um município de 4.300 habitantes, distante 370 quilômetros a oeste de Natal, no Rio Grande do Norte, onde subir ao altar com um parente é um costume local. E tinham na família “deficientes”, tios confinados a cadeiras de rodas devido a uma misteriosa doença que, paulatinamente, enrijece e enfraquece primeiro pernas e depois braços, além de afetar a postura em geral e, em menor intensidade, a visão e a fala. Apesar dos temores, Isabela, a primogênita do casal, nasceu normal. “Fiquei aliviada e pensei que estava tudo bem”, relembra Elenara. “Engravidei da minha segunda filha sem medo.” Mas a história de Paulinha, a caçula de 10 anos, foi diferente.

A menina nasceu com a síndrome Spoan, uma doença neurodegenerativa recém-descoberta entre os habitantes da localidade potiguar e descrita em maio por pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) num artigo publicado na revista norte-americana Annals of Neurology. Ainda não se sabe em qual gene está a mutação que causa a doença, mas os cientistas analisaram amostras de DNA de 74 moradores da cidade, entre doentes e sadios, e os resultados dos estudos indicam que o gene da Spoan se encontra numa região do cromossomo 11. O problema é que existem ao menos 143 genes nessa região, dos quais 96 são ativados em tecido nervoso. Ou seja, por ora, quase uma centena de genes são candidatos a causadores da doença.

“Mapeamos a região do gene, ou bairro onde ele se encontra”, compara a geneticista Mayana Zatz, coordenadora dos trabalhos com a nova doença e do Centro de Estudos do Genoma Humano, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “Falta achar a casa, o gene ligado à síndrome.” Com sorte, em um ou dois anos, a equipe da USP espera ter isolado o gene e identificado a mutação que provoca a Spoan. Assim que tiverem essas informações, os cientistas vão criar um teste pré-natal capaz de detectar a presença da mutação em bebês ainda em gestação e identificar os indivíduos heterozigotos para essa anomalia genética (pessoas saudáveis, mas que podem ter filhos com a doença). “Até agora não se conhece nenhuma doença neurológica associada a genes dessa região do cromossomo 11”, diz a aluna de doutorado Lucia Inês Macedo-Souza, encarregada de achar a “casa” onde se encontra a base molecular da Spoan.

Em inglês, Spoan significa Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy, nome complicado para um quadro complexo. Para um “problema de família”, no falar simples dos moradores de Serrinha. Até agora os cientistas identificaram 26 pessoas vivas com Spoan, das quais 17 são mulheres e 9 homens. Todos os indivíduos afetados são brancos, caucasianos, provavelmente de ascendência portuguesa ou talvez holandesa, e originários dessa cidade serrana. A maioria ainda mora em sua terra natal e todos descendem de casais aparentados, de 19 uniões consangüíneas. “Examinamos pacientes de várias idades com a síndrome, dos 10 aos 63 anos”, afirma a bióloga Silvana Santos, principal responsável pela descoberta da inédita patologia e bolsista de pós-doutorado da FAPESP. “Pudemos ver a evolução da doença. Com o tempo, as pessoas se fecham como uma flor.”

Embora sem cura, a doença em si não é fatal e mantém intacta a capacidade de pensar dos doentes. Não provoca retardo mental, dor ou surdez. Mas seus efeitos sobre a qualidade de vida dos afetados, que se tornam deficientes físicos, são devastadores. Sobretudo numa população rural e carente de serviços de saúde como a de Serrinha dos Pintos, que credita, de forma folclórica, a origem da nova doença a uma sífilis hereditária de um antigo e mulherengo ancestral que teria se espalhado pelo sangue da família. Ali não há serviço de fisioterapia para minimizar os problemas de postura decorrentes da paraplegia associada à doença e as vítimas da síndrome vivem apartadas do dia-a-dia, recolhidas ao interior de suas casas, totalmente dependentes dos cuidados de familiares. Sem o devido acompanhamento médico, ninguém toma remédios para reduzir a rigidez e o enfraquecimento das pernas e braços. Os pés entortam para fora e a cabeça cai. Dos doentes conhecidos, apenas Paulinha não está em cadeira de rodas. Com a energia interminável que só as crianças parecem ter, a menina consegue se locomover com o auxílio de um andador com rodinhas.

No jargão da biologia molecular, a Spoan se classifica entre as doenças de herança autossômica recessiva. Homens e mulheres têm a mesma probabilidade de apresentar a patologia, a despeito de o número de casos conhecidos em Serrinha ser maior entre o sexo feminino. Uma pessoa só vai desenvolver Spoan se as duas cópias do ainda desconhecido gene associado à síndrome, uma vinda do pai e outra da mãe, carregarem a mutação que leva ao problema de saúde. Portanto, os pais de um doente com Spoan são necessariamente heterozigotos. São portadores da mutação em apenas uma das duas cópias do gene, nunca nas duas, e não manifestam a síndrome. Mas podem transmiti-la para a prole, como atestam os pacientes de Serrinha. Filhos de pais heterozigotos participam involuntariamente de uma roleta-russa biológica. Têm 25% de risco de se tornarem doentes, de herdarem as duas cópias do gene com a mutação; 50% de somente portarem a mutação em uma das cópias do gene, de serem heterozigotos; e 25% de não serem portadores de nenhuma alteração nas duas cópias do gene da Spoan, sendo saudáveis e incapazes de passar adiante a mutação. “Um em cada 250 habitantes de Serrinha tem a doença e um em cada nove é heterozigoto para essa condição”, estima o neurologista Fernando Kok, que fez a descrição clínica e neurológica dos sintomas da Spoan.

Olhos tremidos
Nos primeiros meses de vida, os recém-nascidos acometidos pela doença não manifestam nenhum sintoma clínico da Spoan. Parecem saudáveis, como qualquer outro bebê. A não ser por um detalhe, perceptível apenas por quem tem um histórico de doentes na família: as crianças apresentam “olhos tremidos”, para usar uma expressão corrente em Serrinha. Esses movimentos anormais e involuntários do globo ocular, resultantes da atrofia congênita do nervo óptico, reduzem o campo de visão dos afetados. A essa disfunção ocular os médicos dão o nome de nistagmo. Na recém-descoberta síndrome, o problema não se agrava com o tempo, mas a visão dos pacientes, mesmo com o emprego de óculos, não é das melhores.

“Eles conseguem enxergar os dedos de uma mão a uma distância máxima de 2 metros”, comenta Kok. Casada com um primo em segundo grau de Serrinha, Maria Inês de Queiroz, de 57 anos, teve seis filhos, dos quais três morreram ainda bebês e três estão vivos, dois homens com Spoan, a quem dedica o melhor do seu dia, e uma moça saudável. A dona de casa lembra de ter visto o tremor nos olhos de um de seus filhos mortos quando ele tinha 4 meses de idade. “Eu sabia que ele tinha a deficiência. Seus olhos iam para cima”, conta a ex-feirante, que vendia roupas e morou por uma década na cidade de São Paulo. Suas recordações da vida na capital paulista, aliás, não são nada boas.

“Passei dez anos indo de médico em médico. Houve um pediatra que chegou a me dizer que o Marquinhos era sadio – e que eu é que era doente”, diz Maria Inês. Marquinhos é o tratamento carinhoso que a família e os amigos usam para se referir ao caçula Marcos Roberto, de 27 anos, que, como o irmão mais velho, Francisco, de 39, o Chiquinho, tem Spoan. Provavelmente, os médicos achavam que Marquinhos era normal porque o garoto andava até os 10 anos. Só que andava com dificuldades e sua mãe sabia que, a exemplo de Chiquinho, que caminhara até os 6 anos, ele tinha o mesmo problema do irmão. Relatos assim não são raros entre as famílias de Serrinha que têm parentes com a nova síndrome. São a regra, e não a exceção, entre as pessoas que convivem com doentes de Spoan.

A paraparesia espástica progressiva dos membros inferiores e superiores – termos difíceis da linguagem médica que significam o contínuo enrijecimento e enfraquecimento das pernas e braços – é uma das assinaturas clínicas da síndrome. Outra são lesões progressivas nos neurônios motores e sensoriais, danos que diminuem ainda mais os movimentos e os reflexos. Paradoxalmente, apesar de não conseguirem mover de forma espontânea as pernas, quase todos os pacientes reagem de forma abrupta quando ouvem sons inesperados: produzem contrações involuntárias nos músculos dos membros inferiores.

Alguns habitantes da cidade dizem que certas crianças afetadas já nascem meio “molinhas”, aparentemente sem muita firmeza para se sentar ou mesmo engatinhar. Mas mesmo esses doentes mais precocemente fragilizados geralmente conseguem se locomover, sozinhos ou amparados, com quedas e tropicões freqüentes, até uma certa idade, em geral em torno dos 10 anos. A paralisia costuma chegar aos braços um pouco mais tarde, no final da adolescência ou perto dos 20 anos. “Com o tempo, as mãos dos doentes, que nunca se submeteram a qualquer forma de fisioterapia, acabam ficando semifechadas, num formato que lembra o de garras”, explica a bióloga Silvana Santos. “Eu colocava sapatinhos com salto alto para ajudar a Sarinha a andar”, lembra Maria Euda de Queiroz, a dona Loló, uma viúva de 67 anos, cujo marido, Francisco Assis de Queiroz, era seu “primo legítimo”, primo em primeiro grau. “Ela andou quase sem tropeçar até os 8 anos.” Quando criança, a filha mais nova de dona Loló, hoje com 21 anos, caminhava equilibrada apenas na ponta do pé, como uma bailarina hesitante, e o emprego do calçado feminino de solado alto lhe servia de apoio.

Deparar com dona Loló na pequena cidade potiguar é fácil. Basta passar em frente à sua casa, que fica ao lado de uma igreja evangélica, quase na saída da cidade em direção a Martins, município vizinho do qual Serrinha dos Pintos se desmembrou em 1993. Ela passa as tardes ali, sentada ao lado de suas meninas: Sara e Eda, ambas com Spoan e em suas cadeiras de rodas; Tranquilina, a Neta, que tem distúrbios psiquiátricos e, a rigor, não fica parada em nenhum lugar por muito tempo; e Iza, a única das cinco filhas sem problemas de saúde.

Sula, a sua primogênita que também teve Spoan, morreu de aneurisma cerebral em 1999 quando tinha 46 anos. “Meu marido, que teve dois irmãos deficientes, dizia que fomos muito sem sorte”, explica dona Loló, que estudou até a antiga quinta série e sabe ler e escrever. Seu pai, José Firmino de Queiroz, casou-se duas vezes e teve 18 filhos, três deles deficientes. “Se eu soubesse do problema, tinha tentado esquecer o Francisco, arrumava outro”, diz, sem muita convicção, a mãe zelosa. Dona Loló acorda todo dia às 5h30 da manhã, faz café, dá banho e penteia as filhas doentes, que estão sempre bem cuidadas. E dá uma “bandinha de diazepam”, ainda no desjejum, para Eda, a filha com Spoan em condição mais delicada que acorda com tremores típicos da síndrome de abstinência.

À noite, para induzir o sono, Eda toma outra dose de tranqüilizante e Sara, o seu primeiro e único comprimido do dia. Dona Loló garante que ela mesma já largou esse hábito, embora não negue que tenha recorrido ao calmante em dias mais difíceis do passado. “As meninas ficam nervosas com qualquer problema”, explica. Nervoso é um adjetivo muito empregado pelos familiares das vítimas de Spoan para descrever o comportamento dos doentes. É impossível saber desde quando pacientes, familiares e outras pessoas da cidade estão consumindo medicamentos de uso controlado. Que a prática é antiga e institucionalizada, não resta dúvida. “Temos 345 pessoas cadastradas na prefeitura para receber, por orientação médica, diazepam”, afirma o pedagogo e ex-agente comunitário José Antonio Queiroz, hoje secretário municipal de Saúde de Serrinha. Quase 10% da população local. Alguns moradores dizem que o número de usuários de tranqüilizantes é, no mínimo, o dobro.

Queiroz, Fernandes e Dias
Situada numa região de montanhas de porte modesto, com cerca de 750 metros de altitude, Serrinha dos Pintos tem um clima ameno para um lugar que os mapas colocam no interior da Caatinga nordestina, em geral inferior a 25°C. Apesar dos quase 400 quilômetros que a separam de Natal, a cidade é de fácil acesso. Da capital do estado, chega-se nesse pedaço pouco conhecido do Rio Grande do Norte por estradas asfaltadas e os buracos não passam a ser um problema durante a viagem. Em sua origem, há uns 200 anos, quando ainda era um pedaço da vizinha Martins, Serrinha não passava de uma grande fazenda. Dos moradores iniciais dessa extensa propriedade rural descende praticamente toda a sua população atual, cheia de Queiroz, Fernandes e Dias nos sobrenomes.

Em Serrinha a chuva não é tão escassa, a vegetação nesta época do ano é abundante e as plantas apresentam tons de verde normalmente não associados pelos habitantes do sul a uma área semi-árida. É uma cidade pobre, sem dúvida. Mas seu núcleo urbano é limpo e as ruas estão calçadas com pedras. Não há sinais de miséria. Provavelmente nos sítios sertão adentro a situação seja mais precária. “Temos oito escolas públicas”, diz o professor Leidmar Fernandes de Queiroz, vice-prefeito da cidade, pai de Léia, para os da família Leinha, uma menina de 20 anos com Spoan e um sorriso lindo.

Para a gente hospitaleira e humilde de Serrinha, de cujas casas não se sai sem provar um gole de café ou experimentar uma pamonha de milho ou uma carne-de-sol, o trabalho que existe é na agricultura, em geral de subsistência. Eles plantam milho e feijão e tiram castanha do caju. Para os mais graduados, ou influentes, existe a alternativa de arrumar um emprego na prefeitura. Não há bancos na cidade e a agência mais próxima fica em Martins. A aposentadoria dos moradores mais velhos e o dinheiro que vem de programas federais, como o Bolsa Família, também são importantes fontes de renda das famílias. Em sua maioria, os deficientes com Spoan (e outras patologias) são aposentados e também ajudam a reforçar o caixa doméstico. Mas a maior parte da receita da prefeitura não deriva de alguma atividade econômica local. Vem do repasse federal do Fundo de Participação dos Municípios, um valor anual que gira em torno dos R$ 2 milhões. Nos registros de 2003 do Departamento Nacional de Trânsito havia cerca de 300 veículos com a matrícula da cidade, quase dois terços deles eram motocicletas. Mais do que os animais de transporte e os carros, as motos se destacam na paisagem local.

Desde o final do ano passado, Serrinha conta com um hospital. Ou melhor, conta e não conta. O prédio da Unidade Mista Terezinha Maria de Jesus, concebido para ser um híbrido de hospital e posto de saúde, ficou pronto em novembro passado e opera parcialmente. A rigor, é subutilizado e a cidade não tem dinheiro para fazê-lo funcionar em sua totalidade. Motivo: construído com verbas federais conseguidas com o apoio de um político potiguar de alguma influência em Brasília, o estabelecimento, segundo o secretário municipal de Saúde, José Antonio Queiroz, foi concebido para uma cidade de 20 mil habitantes, cinco vezes maior do que a população local. Em suma, é muita castanha para o pequeno cajueiro de Serrinha. Quase todo o seu equipamento mais sofisticado, como o aparelho de raios X, está encaixotado. A atual rede de luz do prédio não daria conta para suprir o equipamento.

A maioria das alas médicas está vazia. “Vai ser difícil fazermos todo o hospital funcionar”, diz, com franqueza, o secretário municipal de Saúde. Não se pode dizer que a unidade mista não funciona porque dois clínicos-gerais e dois dentistas dão expediente durante a semana na ampla construção, também freqüentada pelo pessoal do posto de saúde e por um cardiologista que quinzenalmente atende os moradores da cidade. Há ainda seis leitos, dois para homens, dois para mulheres e dois para crianças, que podem abrigar pacientes durante o dia, até as 17 horas. Para consultas das demais especialidades, os munícipes têm de recorrer aos serviços das cidades vizinhas, ou nem tão vizinhas, como no caso de Natal. A cada 15 dias sai uma van com pacientes para a capital do estado.

Dica da vizinha
Confundida por leigos e médicos com outros tipos de paraplegia e até com a paralisia infantil, a síndrome Spoan só foi identificada graças ao faro de cientista de Silvana Santos. E a uma dose de sorte. É possível dizer que, num primeiro momento, foi a doença que a achou, e não o contrário. Depois ela foi ao encontro da mesma. Uma de suas vizinhas no Butantã, um bairro de São Paulo, Zilândia Dias de Queiroz, uma moça de uns 20 anos, era de Serrinha dos Pintos e tinha uma forma diferente de deficiência física. As duas se tornaram amigas e a pesquisadora começou a tomar contato, de maneira informal, ainda sem nenhum projeto de pesquisa em mente, com a realidade da cidadezinha potiguar. “Ela me disse que havia mais deficientes em Serrinha e que lá todo mundo era aparentado e casava com primos”, relembra Silvana. Em 2001, por conta própria, ao lado de suas duas filhas pequenas, a bióloga foi ao interior do Rio Grande do Norte, numa viagem que foi um misto de trabalho e férias em família. Ficou espantada com a quantidade de uniões consangüíneas na localidade e o número de deficientes. Voltou convencida de que ali havia muito a ser pesquisado.

Desde então a bióloga visitou Serrinha em outras três ocasiões, a última no mês passado, e envolveu nos trabalhos com os doentes da cidade um grupo razoável de pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. Do ponto de vista científico, o resultado mais visível desse esforço concentrado foi a descoberta de que a forma de deficiência física de Zilândia é, na verdade, um novo tipo de doença neurológica, a síndrome Spoan, que ainda não havia sido descrita pela ciência e deve desencadear uma série de estudos sobre a patologia. “Temos de estudar agora e com urgência essas doenças de origem consangüínea, que aparecem em pequenas cidades do interior do Brasil”, afirma Fernando Kok. “Esses lugares hoje não estão mais isolados do país e, daqui a pouco, não será mais possível descobrir a origem de certos problemas de saúde.” Famílias numerosas, com muitas uniões entre pessoas aparentadas, como as de Serrinha, são cada vez mais raras. No Brasil, estima-se que 2% dos matrimônios sejam entre cônjuges consangüíneos. E é justamente nesse tipo de ambiente que se encontram novas doenças hereditárias, como a Spoan, ou genes de patologias já conhecidas.

Nos anos 1990, a pesquisadora Maria Rita Passos-Bueno, também do Centro de Estudos do Genoma Humano, descobriu em dois genes mutações associadas a problemas de saúde quando analisava o DNA de uma grande família de Euclides da Cunha, município baiano de 55 mil habitantes. Uma das alterações genéticas, identificada em 12 indivíduos, causava a síndrome de Knobloch, uma forma progressiva de cegueira. A outra, presente em seis pacientes, levava a uma forma de distrofia muscular. “Essa cidade da Bahia também se formou a partir de uma fazenda, como Serrinha dos Pintos”, diz Maria Rita. Além dos ótimos resultados científicos, a pesquisa rendeu dividendos práticos. Hoje há testes preditivos, desenvolvidos na USP, capazes de dizer se a gestante carrega um bebê com essas duas doenças  ou se um casal tem risco de vir a ter descendentes com esses problemas. Espera-se que o mesmo possa ser feito em breve no caso da síndrome Spoan. Enquanto isso não ocorre, a mera presença de pesquisadores na Caatinga potiguar, ainda que ocasional, serve de estímulo para os deficientes locais e seus familiares se organizarem.

Há cerca de um ano foi fundada a Associação dos Deficientes Físicos de Serrinha dos Pintos, um dois-cômodos com um banheiro situado bem em frente à prefeitura. Quase 300 pessoas, entre doentes e saudáveis, contribuem mensalmente com a entidade. As doações variam de R$ 2 a R$ 5. Com o dinheiro arrecadado foram compradas cinco cadeiras de rodas especiais para banho e reformada uma cadeira. Embora não faltem laços de parentesco entre seus habitantes e o lugar seja pequeno, Serrinha parece estar descobrindo os seus deficientes físicos, com Spoan e outras patologias, só agora. “Só quando voltei para cá vi que havia tanto deficiente em Serrinha”, admite Gilcivan Geraldo da Costa, um filho da cidade que virou paraplégico em São Paulo ao cair de um telhado e agora preside a associação de deficientes em sua terra natal. “A gente só conhece o problema quando tem o problema.” Um dos trabalhos mais notáveis da entidade foi um levantamento sobre o número de deficientes no município, que se aproxima das 140 pessoas. Quer dizer, há muito mais deficientes ali do que as 26 vítimas conhecidas de Spoan. “Tem muita gente com problema mental, síndrome de Down e surdo-mudo”, diz Odi dos Santos de Queiroz, voluntária da entidade que cuidou dessa sondagem.

Ranking da deficiência
As informações da associação batem com dados do IBGE sobre Serrinha dos Pintos. Numa lista dos 50 municípios nacionais com maior porcentagem de portadores de deficiências físicas ou mentais, o lugar onde se descobriu a nova doença neurológica ocupa o 38º posto. Quase 6% de seus habitantes apresentam alguma forma de deficiência. “Há outras seis cidades do Rio Grande do Norte nesse ranking”, afirma o neurologista Fernando Kok, fazendo referência aos municípios de Riacho de Santana, Cruzeta, Timbaúba dos Batistas, Olho-d’Água do Borges, São Miguel e Pilões. Os pesquisadores acreditam que também pode haver casos de Spoan não diagnosticados – e de outras doenças – nessas localidades potiguares, algumas vizinhas de Serrinha dos Pintos. “De imediato, temos de concentrar os estudos com a Spoan em Serrinha e tentar melhorar a qualidade de vida dos afetados com a síndrome, em especial dos mais jovens, que podem manter uma boa postura com um trabalho adequado de fisioterapia”, diz Silvana Santos. “Mas, em breve, teremos de olhar para outras cidades.” E não só as do Rio Grande do Norte. Dez dos 50 municípios com mais deficientes no Brasil ficam em Minas Gerais.

Um “problema de família”

Se os pesquisadores não têm mais dúvidas de que a síndrome Spoan é uma doença genética recessiva, herdada por alguns filhos de casais consangüíneos de Serrinha dos Pintos, os parentes dos doentes ainda não pensam assim. Eles atribuem a gênese de todos os casos da síndrome a um “problema de família” — a uma hipotética sífilis hereditária que teria acometido, há cerca de 150 anos, um antepassado comum, “o velho Maximiniano”, e se disseminado pelo sangue de seus descendentes. “Meus avós diziam que o problema vinha dos Dias da Cacimba da Vaca”, conta Laurita Firmino de Queiroz, 65 anos, fazendo referência ao ramo da família que, às vezes, é apontado como o depositário da origem da deficiência. Os pais dos afetados pela Spoan também sugerem que seus filhos só começaram a ter dificuldades maiores de locomoção depois de terem sido vítimas de algum evento traumático na infância, como um febrão ou um sarampo. Dona Laurita recorda que seu filho com a síndrome, Esdras, de 43 anos, teve uma forte inflamação na garganta. “Cresci e o corpo não acompanhou”, diz o falante Esdras, tentando explicar a sua própria dificuldade de locomoção. “Acho que perdi a prática de andar.”

Baseada no senso comum, a tese de que o sangue familiar poderia ser o agente de transmissão hereditária de uma doença como a Spoan podia fazer sentido no século 19. Nessa época, pesquisadores sérios pensavam assim. Hoje a idéia não conta mais com o aval da ciência, que atribui a causa da patologia a uma mutação genética. No entanto, esse tipo de concepção, abandonada pela academia, ainda persiste na mente de muitas pessoas, sobretudo num local de gente simples como Serrinha. “Um dos nossos desafios é explicar para a população da cidade, de forma simples, o significado das nossas pesquisas”, diz a bióloga Silvana Santos, que lança em agosto um livro a respeito de como os leigos compreendem os conceitos da herança genética. “As pessoas precisam entender o significado de ser heterozigoto para uma doença como a Spoan e também quais são as repercussões do eventual desenvolvimento de um teste pré-natal capaz de identificar, ainda na barriga da mãe, os bebês que portam a síndrome.”

O Projeto
Conhecimento cotidiano sobre herança biológica (03/06012-9); Modalidade: Bolsa de Pós-doutorado; Supervisor: Paulo Alberto Otto – IB/USP; Bolsista: Silvana Santos – Centro de Estudos do Genoma Humano da USP

Republicar