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Elliot Kitajima

Elliot Kitajima: Imagens para a ciência brasileira

Especialista em microscopia eletrônica, o engenheiro agrônomo Elliot Kitajima, da Esalq, fala da importância das imagens para a ciência

MIGUEL BOYAYANElliot KitajimaMIGUEL BOYAYAN

Um esteta contra os patógenos de plantas. Assim, de forma talvez reducionista, poderia ser definido o trabalho do pesquisador paulista Elliot Kitajima, que há mais de quatro décadas se dedica ao registro de imagens em microscopia eletrônica de agentes que atacam os vegetais, em especial os vírus. Nissei nascido há 69 anos em Registro, no Vale do Ribeira, região com forte presença da colônia japonesa, Kitajima formou-se em agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, de Piracicaba, em 1958. Em sua longa carreira, trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e na Universidade de Brasília (UnB), onde se aposentou depois de 23 anos de serviços prestados, e fez três pós-doutorados no exterior, dois nos Estados Unidos e um na Holanda. Desde o final da década passada, voltou à Esalq, onde, como professor visitante, continua na ativa, dando cursos de microscopia eletrônica e produzindo belas e importantes imagens dos pequenos inimigos das plantas.

Algumas dessas fotos, que os leitores cativos desta revista já viram com certeza, são flagrantes da bactéria Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais e causa a clorose variegada dos citros (CVC), doença popularmente conhecida como amarelinho. As dramáticas imagens da Xylella em ação, entupindo os canais condutores de seiva nas entranhas da planta, foram usadas no famoso artigo publicado na revista Nature em 2000 pela rede de pesquisadores paulistas que seqüenciou o genoma do patógeno. “Tive muita sorte e a imagem foi bastante divulgada”, afirma Kitajima. Mas esse não é seu único trabalho de peso. Seus outros feitos de relevância são em geral com vírus que causam males à laranjeira, como o da leprose e o da tristeza dos citros. Apesar do reconhecimento ao seu trabalho, o especialista em virologia vegetal diz que os morfologistas da ciência, como ele, estão em declínio. “Na minha área, da microscopia eletrônica, sou praticamente um dinossauro, uma raça em extinção”, reclama, sem perder o bom humor. Abaixo, os principais trechos da entrevista concedida por Kitajima à Pesquisa FAPESP:

Na biologia, quando um vírus ou um outro patógeno qualquer é bonito e dele se consegue um bom registro, essa imagem também vale por mil palavras, como se diz?
De certa maneira, sim. Eu sou suspeito para falar sobre isso, porque meu trabalho baseia-se em imagens. Não tenho nenhuma pretensão de ser um Sebastião Salgado, mas admiro uma pessoa como ele, que procura colocar um pouco de estética e dramaticidade nas imagens. Sempre que possível, procuro fazer assim também. Ao meu jeito. Não tenho obviamente a sensibilidade e o feeling dele, mas procuro sempre a imagem que seja um pouco mais bonita, como aquela da Xylella fastidiosa. Tive muita sorte e a imagem foi bastante divulgada.

O senhor concorda que, às vezes, a biologia atual parece não dar o devido reconhecimento às imagens?
Na verdade, está desaparecendo o morfologista na ciência. Antigamente, quando essa parte morfológica estava mais em voga, eu abria uma revista [científica] e reconhecia pelo tipo de imagem quem era o seu autor. O desprezo à visão morfológica tem resultado em ilustrações medíocres nas publicações. Com boa experiência, é possível, na minha área, distinguir em meio às organelas celulares, em uma secção de célula infectada, as presumíveis partículas dos vírus, ou células bacterianas ou fúngicas. É claro que entre o ser e o parecer há um abismo. Mas, nesses casos, podemos recorrer a técnicas mais sofisticadas para ter a certeza da identificação. Na microscopia eletrônica, sou praticamente um dinossauro, uma raça em extinção. Hoje o aluno de graduação só quer fazer biologia molecular e esquece os fundamentos.

É certo que a biologia molecular e a biotecnologia prestam inestimáveis serviços à humanidade. No entanto, costumo dizer que, se eu der um pedacinho de ácido nucléico, o aluno faz maravilhas, mas não sabe nada sobre o organismo que gerou esse DNA ou RNA. Quer dizer, falta a eles essa visão mais holística. Nunca trabalhei com técnicas moleculares, mas tenho a convicção de que, se fosse necessário, eu o faria um dia. Biologia molecular é em geral uma série de receitas. Tendo os reagentes, a coisa funciona. Até um bom aluno de graduação faz seqüenciamento. Fico preocupado com as pessoas que só aprendem a rotina. Elas não aprendem a pensar no porquê de seus atos e a criar. Felizmente, está havendo agora uma confluência entre técnicas moleculares e morfológicas, de sorte que tem sido possível visualizar moléculas em ação no interior da célula.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar no projeto da Xylella?
Embora houvesse trabalhado na década de 1970 com uma Xylella que ataca a ameixeira, em colaboração com um grupo argentino, nunca havia trabalhado com a da CVC. Mas acabei me envolvendo por causa de um de meus filhos [João Paulo Kitajima, que, na época, estava na bioinformática da Unicamp e hoje trabalha na empresa de biotecnologia Alellyx]. Ele estava montando o site do projeto e disse “ah, pai, me arruma uma imagem boa da Xylella”. Mandei algumas, ele gostou daquela que ilustrou o site do projeto e que acabou saindo na Nature, e o resto é história. Realmente a imagem ficou muito bonita, dramática. Essa é a razão por que me envolvi tanto. Mas foi algo marginal no meu trabalho.

O senhor sabe quantas imagens de patógenos de plantas já fez com a microscopia eletrônica?
É difícil fazer uma estimativa. Certamente foram milhares, mas nunca fui suficientemente organizado para manter um portfólio decente. Além disso, como trabalhei em instituições diferentes, aqui e no exterior, a maioria dos negativos ficou arquivada nesses locais. Hoje, com a digitalização, a tarefa ficou mais simplificada. A maioria daquelas que podemos considerar as melhores se encontra nos artigos científicos que publiquei. Diria que algumas das minhas pequenas glórias foi ver algumas delas reproduzidas nas capas de revistas científicas.

Pior que o senhor se interessou por virologia de plantas, e mais especificamente por microscopia eletrônica?
Fui contratado pelo IAC em 1959 para fazer microscopia eletrônica em vírus de planta. Por que o microscópio eletrônico é importante para a virologia? Ao contrário de fungos e bactérias, os vírus não podem ser vistos no microscópio comum. Às vezes, vemos um agregado de vírus no microscópio comum, mas não conseguimos visualizar individualmente cada vírus. A virologia sempre foi o poço de ignorância. Quando não se conseguia isolar o agente que causava uma doença numa planta ou animais, o bode expiatório eram os vírus. Muitas doenças que hoje sabemos que são causadas por bactérias, fitoplasmas /espiroplasmas [bactérias sem parede celular] ou por viróides [patógenos menores que os vírus, compostos de pedaços de RNA] foram consideradas como de origem viral. Gradativamente, o homem foi desfazendo esses mal-entendidos. Salvo raras exceções, viroses de planta não destroem extensivamente as culturas, embora possam causar pequenas mas consistentes perdas, que acabam sendo ignoradas. Daí a razão de os produtores e os leigos desconhecerem a relevância da virologia vegetal.

O senhor poderia citar um caso relevante de perdas ou custos extras causados por vírus na agricultura?
A leprose dos citros, por exemplo, é uma das doenças mais importantes que atacam os pomares. No Estado de São Paulo não tem causado danos maiores aos laranjais, mas isso se deve a investimentos da ordem de US$ 80 milhões por ano em acaricida, para controlar o ácaro Brevipalpus phoenicis, vetor que transmite o vírus da doença para a planta. Controlando o ácaro, controla-se a doença. Se o citricultor não fizer isso, o custo para ele e para a sociedade vai ser muito maior. Aliás, meu Projeto Temático na FAPESP se baseia no grupo de vírus ao qual pertence o da leprose.

A resolução de um microscópio eletrônico atual é muito maior do que quando o senhor iniciou seus trabalhos, há mais de 40 anos?
De lá para cá, em termos de resolução, não mudou muito. O que mudou foi a facilidade de operar. Nos aparelhos antigos os ajustes eram manuais. Nos de hoje tudo é eletrônico e informatizado. Os microscópios mais velhos eram projetados para americanos grandões de braços longos. Sou baixinho e sofri muito para operar esses equipamentos. Mas, de tanto insistir, aprendi a contornar tais dificuldades. No início da minha carreira, por volta de 1961, recebemos o primeiro microscópio eletrônico usado em pesquisa agronômica no IAC. Como não tínhamos muitos recursos, na maioria das vezes fazia eu mesmo a manutenção do instrumento. Aprendi com o técnico da empresa a montar e desmontá-lo. A parte eletrônica era bem mais simples, pois se usavam ainda válvulas. Era fácil saber quando havia um problema. Era só procurar pela válvula queimada e trocá-la. A complexidade dos aparelhos de hoje requer conhecimentos de eletrônica. Por isso não me atrevo mais a tentar fazer reparos.

Quais são os seus trabalhos mais importantes na área de microscopia eletrônica?
Minha primeira realização relevante foi em 1963 ou 1964, quando fomos os pioneiros em visualizar o vírus da tristeza dos citros e a publicar um artigo sobre o patógeno. Quer dizer, é até possível que alguém tenha visto o vírus antes de nós, mas fomos os primeiros a associar as partículas longas encontradas em extratos de plantas doentes ao patógeno. Foi meu único artigo na Nature, na verdade, uma pequena nota. A tristeza quase acabou com a citricultura no Estado de São Paulo na década de 1940 até que se descobriu que bastava substituir o porta-enxerto da laranjeira por tipos tolerantes ao vírus. Posteriormente, um programa de “vacinação” usando formas brandas do vírus para evitar a infecção das formas severas foi muito bem-sucedido e manteve os pomares sem os problemas da tristeza.

Aliás, nessa história da “pré-imunização”, o doutor Álvaro Santos Costa [um dos pais da virologia de plantas na América Latina e eminente pesquisador do IAC, falecido em 1998] teve um importante papel. Ele descobriu que, se inoculássemos na laranjeira uma cepa fraca do vírus da tristeza, a raça forte, que causava o problema, não infectaria a planta. É como se a gente tivesse um resfriadinho em vez de pegar uma gripe, porque o resfriadinho impede que o vírus da gripe se multiplique. Santos Costa foi meu pai intelectual e à sua competência, caráter e exigência devo toda minha carreira científica e profissional. Gostaria de mencionar outros cientistas que tiveram influência na minha carreira, como Adolpho Brunner Jr., que, com enorme paciência e competência, me iniciou em microscopia eletrônica no Instituto Butantan, e Wladimir Lobato Paraense, na UnB, um guia moral e intelectual.

O senhor fez três pós-doutoramentos no exterior, que, imagino, também devam ter rendido trabalhos interessantes.
Fiquei na Universidade de Chicago entre 1968 e 1969. Embora a instituição fosse fantástica, não apreciamos muito a cidade. Tivemos um ano complicado. Meus trabalhos se centravam em citoquímica no Instituto de Biologia Celular, orientados por Hewson Swift, onde nada havia sobre fitopatologia ou vírus de plantas. Por sorte, a duas horas de lá, em Urbana, na Universidade de Illinois, havia um excelente grupo de virologia vegetal dirigido por Lindsay Black. Fui até lá e fiz amizade com Dick Peters, um virologista holandês que também fazia pós-doutoramento. Ele estava trabalhando com um rabdovírus, o SYVV, mas não conseguia imagens boas de seu material. Um dia ele me pediu para examinar o material no microscópio eletrônico em Chicago e aí entrou a lei de anti-Murphy. Tirei uma das melhores fotografias da minha vida. Os resultados foram publicados na revista Virology, num artigo do qual fui co-autor. Desde então, essas imagens têm sido reproduzidas diversas vezes.

O que era exatamente esse vírus?
Trata-se de um vírus sem importância econômica, infectando a serralha, uma erva daninha, mas de interesse acadêmico. Como outros rabdovírus, o SYVV tem uma estrutura peculiar, elegante, e foi um dos primeiros a ser purificados a partir de tecido vegetal. Como conseqüência desse trabalho, eu e Dick nos tornamos amigos e continuamos nossa cooperação. Ele se tornou especialista em um grupo de vírus de planta conhecido como tospovírus, que causa em tomate, pimentão, fumo e alface uma doença chamada vira-cabeça. Fiz inclusive um pós-doutorado com seu grupo da Universidade de Wageningen, em 1989 e 1990. Foi provavelmente a fase científica mais produtiva da minha carreira, pois fui autor ou co-autor de 12 artigos em nove meses!

Que outros estudos seus o senhor destacaria?
Em 1972, com ajuda da microscopia eletrônica, vimos em tecido de laranjeiras partículas parecidas com as do vírus da leprose dos citros. Publicamos um artigo sobre isso e ajudamos a reforçar a teoria de que era realmente um vírus que causava essa doença. Esse foi, de fato, um trabalho importante, pois durante muito tempo se achava que a leprose pudesse ser causada por um fungo e, depois, por uma toxina de um ácaro. O primeiro a ter evidência de que a leprose era mesmo provocada por um vírus foi um americano através de ensaios de enxertia e nosso trabalho contribuiu para confirmar essa teoria.

Quais são os desafios para o Brasil na área de fitossanidade?
Certamente há vários, como formar equipes competentes e preparadas para resolver os problemas existentes e enfrentar futuros desafios. Há necessidade de técnicos em todas as frentes, desde pesquisas básicas, algumas de fronteira, até pessoal do campo. Temos um contingente razoável de pesquisadores, mas há áreas deficientes. As instituições de pesquisa como a Embrapa e similares em nível estadual têm dado contribuições importantes, em cooperação com universidades, em especial as oficiais, mas poderiam ter sido mais eficientes. Sente-se falta de um planejamento estratégico, um grupo pensante que possa ajudar a estabelecer as ações do ministério e das secretarias estaduais de Agricultura, das agências financiadoras, das associações de produtores e das instituições de pesquisa.

Outro ponto importante é contribuir não só para melhorar a produtividade, mas fazer isso sem agredir o meio ambiente. Temos de lutar contra o desmatamento indiscriminado e o uso abusivo de agrotóxicos. Desenvolver tecnologias de controle biológico, voltadas às nossas necessidades, me parece um excelente caminho. De órgãos como Ibama espera-se maior rigor, mas também bom senso. As dificuldades interpostas por essa agência, por exemplo, no caso da febre maculosa, devido à existência no campus da Esalq de capivaras com o carrapato que transmite a doença, estão atrasando a tomada de medidas óbvias de controle, como o manejo desses roedores. Essa postura coloca em risco toda a comunidade do campus e da cidade.

Falando especificamente de fitopatógenos, existem vírus, bactérias ou fungos emergentes que podem representar grandes ameaças às culturas agrícolas?
Há uma doença de coqueiro, amarelo letal, causada por um fitoplasma, que está provocando sérios problemas no Caribe, na América Central, e que pode chegar até nós. Nos bananais do Brasil, há agora o perigo do fungo Mycosphaerella fijiensis, que provoca a sigatoca-negra. A ferrugem asiática vem causando danos ao cultivo da soja e sua presença na lavoura vai aumentar o custo de produção. Seu controle é fácil, mas caro. Há outros exemplos. A ameixeira terá de enfrentar uma virose chamada em inglês plum pox que já chegou ao Chile e à Argentina, procedente da Europa, e provavelmente virá para cá. Há uma nova doença, de provável etiologia viral, atacando o melão no Rio Grande do Norte, o amarelão. As plantas atacadas produzem frutos impróprios para exportação. Recentemente detectou-se nos nossos pomares de citros o greening, doença causada por uma bactéria. Potencialmente, ela pode provocar enormes perdas em nossa indústria citrícola. Viroses em tomateiro, transmitidos por mosca-branca, os chamados begomovírus, também estão causando preocupação.

A globalização, que encurtou as distâncias entre as pessoas, não favorece a disseminação de novas doenças para as culturas agrícolas de todos os cantos do mundo?
Certamente. Muitas das doenças que temos hoje são trazidas pelos próprios produtores, que viajam para o exterior, e trazem escondidos em sua bagagem sementes ou materiais vegetativos, muitas vezes com os patógenos. Embora haja legislação e alguma fiscalização, raramente há uma vigilância rigorosa no Brasil. Mesmo nos Estados Unidos, com todo o receio de bioterrorismo, nunca fui revistado. Além disso, com o enorme número de viajantes é praticamente impossível fazer uma fiscalização individualizada. Mesmo em materiais fiscalizados as deficiências nos métodos de detecção e a falta crônica de pessoal e recursos deixam enormes brechas para a entrada de pragas e patógenos em nosso território. Some-se isso à ganância e a tradicional “lei de Gérson” e temos todos os ingredientes para a importação de problemas.

Que doença entrou no país assim, por exemplo?
O cancro cítrico, na década de 1960, foi trazido do Oriente em material introduzido ilegalmente. Entre as orquídeas, há uma doença, causada pelo vírus do orchid fleck, que está distribuída no mundo inteiro. E é fácil entender por que isso ocorreu: os colecionadores e comerciantes mantêm um intenso intercâmbio de material vivo, legal ou ilegalmente, e terminam por disseminar o vírus e o vetor. Felizmente é um patógeno sem muita importância. Seus danos são cosméticos, ele provoca manchas na folha das plantas. Mas serve bem para ilustrar como patógenos e pragas podem rapidamente se disseminar em todas as partes do  mundo nos dias de hoje.

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