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Teatro

O teatro e a invenção da estrela

Pesquisadora investiga como e por que a modernização do palco brasileiro a partir da década de 1940 abriu espaço para a consagração de grandes atrizes

REPRODUÇÃO BRASIL: PALCO E PAIXÃO, EDITORA APRAZÍVELCleide Yaconis como Jocasta na peça Édipo rei, de Sófocles, 1967REPRODUÇÃO BRASIL: PALCO E PAIXÃO, EDITORA APRAZÍVEL

Relembrar os maiores personagens do teatro brasileiro nos últimos 50 anos remete a, principalmente, nomes de grandes atrizes – Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Maria Della Costa, Tônia Carrero, Bibi Ferreira, Cleyde Yaconis e Marília Pêra, entre outras. Até a década de 1940, porém, o palco pertencia aos homens, que não se furtavam em usar roupas femininas para representar o sexo oposto. Até então, a mulher desempenhara um papel secundário tanto diante da platéia quanto nos bastidores. Não havia também a função de diretor e a dramaturgia nacional estava mais para os espetáculos populares de comédia, ancorados no “ponto”, que ajudava os atores a lembrar o texto.

Dois fatos aparentemente isolados se tornariam fundamentais para mudar esse contexto e, assim, levar à modernização do teatro brasileiro e a redefinir a presença da mulher na representação. Primeiro, a turnê da companhia francesa liderada por Louis Jouvet (1887-1951) pela América do Sul, em 1941. Durante sete meses, ele e mais 25 pessoas – além de 35 toneladas de equipamentos – encantaram 11 países com os mesmos luxuosos cenários parisienses. No Brasil, apresentaram-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. Jouvet ainda morou quatro meses no Rio.

Soma-se a isso o processo de “metropolização” de São Paulo nos aspectos cultural e intelectual. Ou seja, por meio da consolidação da Universidade de São Paulo (USP), com a vinda de professores europeus – entre eles, Jean Maugué, Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig e Roger Bastide -, a construção do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o movimento da revista cultural Clima, a fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e a chegada da televisão em 1950. O evento mais representativo para o palco, porém, foi a fundação, em 1948, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), considerado um marco na dramaturgia brasileira por sua profissionalização e modernização temática.

O que teriam a ver, entretanto, Louis Jouvet, o TBC e o destaque que ganharam as atrizes? A resposta está sendo investigada por Heloísa Pontes, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. “Presenças marcantes – História social e etnográfica das relações de gênero no teatro brasileiro, 1940-1968” é um trabalho de livre docência que está em sua etapa final e deve ser concluído no próximo ano, quando deverá ser publicado em livro.

Ancorada em ampla pesquisa, Heloísa está próxima de fechar um quebra-cabeça que vai nos ajudar a ter uma visão científica de tudo que aconteceu com o teatro brasileiro na segunda metade do século 20. Seu propósito é mostrar a transformação fundamental na cena nacional a partir de década de 1940 – cujo marco simbólico foi a encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), em 1943. O teatro e as classes sociais tiveram, então, uma proximidade em termos da construção de uma linguagem moderna do perfil social, intelectual e cultural de seus praticantes.

Essa história começou a ser contada com o ensaio “Louis Jouvet e o nascimento da crítica e do teatro brasileiro modernos”, publicado na revista Novos Estudos CEBRAP, em novembro de 2000. Depois a pesquisa foi ampliada para incluir o caso da atriz francesa radicada no Brasil Henriette Morineau (1908-1990), que também participou da segunda turnê do ator pela América Latina. Heloísa conta que estabeleceu como pano de fundo “o exame dos deslocamentos, das redes de sociabilidade e das relações de homens e mulheres que atravessaram fronteiras nacionais e de gênero”. Assim procurou rastrear o impacto e a presença dos dois artistas franceses na cena teatral brasileira do século passado.

Jouvet é descrito não só como um grande ator e diretor, mas um observador e ensaísta atento às experiências teatrais. Deixou vários escritos sobre dramaturgia, cenografia, direção e contribuiu decisivamente para a renovação da cena teatral francesa. Sua inusitada vinda para a América do Sul – que se prolongou por quatro anos, devido à guerra – colocou-o em conexão com o Brasil. Coube a ele trazer alguns dos espetáculos teatrais de ponta na Europa e até mesmo influenciar diretamente na montagem de Vestido de noiva, considerada marco zero do moderno teatro brasileiro.

Dirigida pelo polonês Ziembinski e encenada por Os Comediantes, a peça foi montada, segundo depoimentos de vários ex-integrantes do grupo, graças também à influência que Jouvet exerceu sobre eles no período. Em contato com jovens talentos brasileiros, o francês teria sugerido que rompessem com a tradição naturalista do teatro e adotassem a idéia de que o texto é central, fundamental, quase sagrado. Cabia ao diretor lhe dar voz, o que estabelecia sua necessidade e importância. Disse ainda que, mesmo assim, só alcançaria nível internacional quando surgisse um dramaturgo à altura. Nelson Rodrigues preencheu de imediato o posto.

Henriette Morineau, em vez de voltar à França com Jouvet, passou a morar no Brasil. “Ela teve uma atuação importante no teatro carioca, contribuiu diretamente na formação de vários atores e atrizes.” Como Fernanda Montenegro, considerada a maior atriz viva do país. Em 1953, na Companhia de “Madame”, como era chamada Morineau, Fernanda deu a guinada necessária para a sua profissionalização como atriz, graças à influência decisiva que dela recebera. “Ela me fez ver que eu tinha encontrado uma profissão qualificada, disciplinada, conseqüente.” Para Fernanda, Morineau mantinha sempre a distância própria de uma primeira figura do elenco, não permitia intimidades, mas forjava sempre um caráter teatral.

A chegada da missão francesa, cujos professores passaram a fazer parte da USP, contribuiu decisivamente para uma transformação capital nos hábitos intelectuais. “Eles mostraram a indissociabilidade entre teoria, método e pesquisa e insistiram que os modernos métodos de investigação das ciências humanas deveriam ser aplicados aos estudos de dimensões variadas da cultura e da sociedade brasileiras”, diz Heloísa. Enquanto isso, diretores estrangeiros – como Adolfo Celi, Gianni Ratto, Ruggero Jaccobbi – revolucionaram as artes cênicas, ao implantar novos procedimentos num sistema cultural diverso e complexo, sem precedentes na história brasileira.

Essa investigação levou-a a concluir que “havia uma clara demarcação de fronteiras simbólicas entre o trabalho dos diretores, todos eles homens, e o das atrizes”. Apesar disso, acrescenta, não se deve perder de vista que mais cedo do que em outras esferas da atividade cultural as mulheres que perseguiram a carreira no palco conquistaram o bem simbólico mais prezado nesse domínio: “nome próprio” e tudo que dele decorreu – notoriedade, prestígio e autoridade. “Exemplo vigoroso da importância das mulheres no interior de um campo de produção cultural, o caso do teatro abre pistas instigantes para adensarmos a etnografia das relações de gênero a partir de novas chaves analíticas.”

O Teatro Brasileiro de Comédia virou pólo difusor de uma nova era teatral porque, além de dar importância ao texto e à direção, viu-se a virada de papéis para as mulheres. Elas passariam a protagonizar peças, enquanto os atores viravam empresários. Como explicar isso? “Para entender as condições sociais, intelectuais, institucionais e as relações de gênero que estão na base da formação e da consolidação do teatro moderno, é preciso destacar ainda o papel central das atrizes que saem do TBC e formam suas companhias, quase sempre com seus parceiros amorosos.”

Elite
Nesse processo surgem elementos para se pensar a história social da cultura no Brasil. Um dos aspectos mais importantes é que o teatro passou a atrair um público novo e influente, que era a elite paulistana – enquanto, no Rio, continuaria com programas dirigidos para platéias mais populares. Nesse momento apareceram dois nomes renovadores – além de Nelson Rodrigues, Jorge Andrade (1922-1984). “Por serem uma atividade muito importante na agenda intelectual e cultural, as peças começam a ser discutidas, fazia-se teatro de repertório com disciplina muito grande, de preocupação autoral e presença de diretores estrangeiros.”

O esforço de Heloísa aponta alguns questionamentos e exclusões para explicar o fenômeno. “Se considerar, por exemplo, a necessidade de adotar a mulher para papéis femininos, é deixar de lado que uma das essências do teatro está em burlar convenções.” Quer dizer, durante séculos, coube aos homens representar papéis femininos com a cumplicidade e a licença das platéias. “Os antropólogos sempre mostraram que existe uma relação forte entre corpos, marcas no corpo, processo de renomeação e aquisição de prestígio. Deixando de lado essa ciência, a sociologia da cultura tem revelado correlação entre corpo, prestígio e aquisição de nome próprio.”

Assim aconteceu com as atrizes. Começaram a representar o novo teatro que surgia e que atingiria seu clímax no decorrer da década de 1960. Aliás, a beleza não era um elemento central nessa consagração do sexo feminino. Pelo contrário, podia servir como um impedimento. Que o digam Tônia Carrero e Maria Della Costa, que tiveram de provar que tinham mais talento que um rosto bonito. No caso de Tônia, o elogio da crítica só veio duas décadas depois, em 1965, quando fez o papel de uma prostituta em A navalha na carne, de Plínio Marcos. Para confirmar essa regra, Cacilda e Fernanda estavam longe do padrão de beleza vigente.

Atualmente, Heloísa desenvolve a última parte da pesquisa: dimensionar a importância da televisão na consagragação desse novo teatro que surgia. Sim, porque, na primeira década, como ter um aparelho de TV era um luxo permitido somente às famílias ricas, estabeleceu-se uma programação elitista na qual os chamados teleteatros – peças escritas para televisão e transmitidas a partir do palco – ocuparam o horário nobre da programação. Também vai comparar a trajetória das grandes estrelas, origem social e inserção na cena teatral antes e depois do TBC, presença na televisão e relação com os diretores estrangeiros.

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