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Artes Cênicas

São Paulo nova, Ato I

Teatro Municipal ajudou na modernização urbana e estética da capital paulista

Discreta ao nascer, a República logo se tomou de amores pelo espetáculo. Assim, se a monarquia deu pouca atenção ao aspecto das cidades, o novo regime, “moderno”, queria mostrar que o Brasil mudara, fazia parte da civilização, cujo sinônimo, no início do século 20, era a Paris de Haussmann, com seus bulevares, iluminação elétrica e grandes avenidas, todas desaguando na catedral dos tempos industriais, a ópera. O Rio de Janeiro adaptou-se rapidamente ao novo modelo do governo. O prefeito Pereira Passos botou abaixo a velha cidade, reconstruindo Paris no centro carioca por meio do conjunto de grandes edifícios, cuja jóia da coroa era o Teatro Municipal, inaugurado, não à toa, em 14 de julho (dia da Bastilha) de 1909.

Já São Paulo amargava uma modorra colonial, que era, para as elites paulistanas, motivo de vergonha, já que também queriam ter a sua Paris. “A vida social fechada nas fazendas e restrita às missas era substituída pela busca cada vez mais constante das ruas e praças, dos encontros na esfera pública, da vida em sociedade, referenciada pelos padrões do mundo dito civilizado”, observa a historiadora Margareth Rago, da Unicamp. No início do século, um colunista do jornal O Estado de S.Paulo externava as queixas paulistas: “Há muito retraimento das famílias e pouca sociabilidade. Falta um ponto de reunião, condigno com o bom gosto dos paulistas”. A solução, segundo ele, seria “um teatro que vai operar uma transformação radical nos hábitos da cidade, fazendo com que se inicie uma fase nova de vida noturna que não pode parar aí”. Naqueles tempos, São Paulo não podia parar. O prefeito republicano Antonio Prado (1840-1929) fazia coro: “A cidade não tem vida social e um Teatro Municipal atenderá tanto a parte material como a educativa”, declarou, tentando aplacar os ânimos dos adversários, que não viam tal obra como prioritária.

Barões do café
“O que contava era o monumento que a cidade ganharia: um símbolo tanto político e cultural quanto estético, a serviço da modernidade. Sua construção correspondia aos anseios da elite paulistana de ver a cidade equipada com um grande teatro lírico, à altura do lugar que ela ocupava no país, como representante de um centro urbano das primeiras indústrias nacionais e dos barões do café”, analisa Maria Elena Bernardes, autora da tese de doutorado, defendida na USP, O estandarte glorioso da cidade: o Teatro Municipal de São Paulo (1911-1938). Em verdade, o que se pretendia não era apenas erguer uma casa de ópera, mas iniciar um novo movimento urbano para São Paulo, fazer dela uma metrópole para as elites, com características européias e, numa dimensão nacional, assegurar a mediação entre os interesses dos cafeicultores e os do governo federal. “A concepção da cidade para Prado era uma metrópole cosmopolita internacional, que incorporava elementos do urbanismo francês e inglês, como os bulevares e parques, onde os palácios neoclássicos se tornariam referência na organização do espaço da cidade”, observa o historiador Nicolau Sevcenko. O catalisador da renovação seria o Municipal, primeiro monumento assumido pelo poder público paulista.

“A gestão da cidade se desenrolava até então sem a tutela governamental: expansão urbana, saneamento, prestação de serviços como água, energia, transporte etc. tudo se materializava graças a proposições de origem privada, sem articulação entre as ações. Antonio Prado vai ser a figura paradigmática nesse espectro desconjuntado de transformação urbana”, avalia o arquiteto Hugo Segawa, da USP. Mas, diferente do expansivo Pereira Passos, que realizava uma grande intervenção de saneamento físico-social e de embelezamento urbano, Prado optou por uma cirurgia urbana discreta do triângulo central (ruas 15 de Novembro, São Bento e Direita). O bisturi abriria o corte com a criação de um teatro nos moldes da Ópera de Garnier. As primeiras discussões sobre o Municipal iniciaram-se em 1895, mas apenas em 1903 uma lei autorizou a sua construção. As obras ficaram a cargo do arquiteto Ramos de Azevedo. O edifício levou oito anos para ser completado e custou 4.500 contos de réis, o dobro do orçamento aprovado.

Não se poupou dinheiro: adornado com pinturas a ouro e um grande lustre, com 700 pingentes de cristal e 220 lâmpadas, era o prédio mais alto da São Paulo de 1911. Foram usados 4 milhões e meio de tijolos, 700 toneladas de estruturas de ferro que geraram uma construção de 3.600 metros quadrados, elevando-se de uma esplanada conjugada a jardins que ocupavam 12.600 metros quadrados. Havia lugares para 1.816 espectadores, todos presentes em 12 de setembro de 1911, quando o teatro foi inagurado, realizando, segundo a revista Ilustração Paulista, “o seu destino de mostruário de civilização”. Já em 1906, um vereador propunha “melhorias do entorno malcuidado do monumental edifício, como a transformação do vale do Anhangabaú num jardim público”. O palco começava a sair do edifício para tomar a cidade. “Ainda não era corrente em São Paulo se falar em intervenção urbana planejada. A gestão de Prado foi uma etapa preparatória para instaurar os primeiros debates de natureza urbanística em São Paulo”, conta Segawa.

O Municipal, ao lado das estações férreas (como a da Luz) , nos moldes da intervenção de Haussmann, foi a centelha que espalhou o fogo da modernização pela “vila” acanhada. Em 1910, um ano antes de sua inauguração, um grupo de figuras da sociedade propusera a construção de três grandes avenidas. “Não é quimera esperar que São Paulo possa mostrar a vontade ingente de seus filhos demolindo, e, nas ruínas, erguer uma nova cidade, digna dos progressos do século”, escreveu o autor do projeto, Alexandre de Albuquerque. As novas vias estabeleciam uma ligação reta entre o Municipal e as estações ferroviárias, a conexão com o bairro nobre dos Campos Elíseos e um caminho para a região além-rio Tietê, setor de expansão da metrópole futura. “Longos bulevares, definindo pontos de fuga monumentais, valorizariam edifícios como o Municipal e as estações de trem, solução calcada no sistema de circulação parisiense, com a Ópera de Garnier como ponto visual culminante”, analisa Segawa. Nem todos viam com bons olhos.

“Um belo dia, um grupo de bandidos se deu conta que São Paulo não tinha o aspecto de uma cidade moderna e que lhes faltava o dinheiro para prostitutas e para o jogo. Disparou, então, a moda do patriotismo. Todos os jornais gritam o hino do embelezamento. Mãos à picareta! Abaixo velhas casas. Alarguem a city. Queremos teatros como Paris, jardins como Berlim. Derrubadas as casas, tudo o que deveria ser embelezado era propriedade do bando”, denunciou o jornal operário La Battaglia, em 1912, comparando a elite paulista e o gabinete Prado a “membros da alta camorra”. São Paulo, porém, não podia mais parar de ser Paris. A ponto de arrancar de Clemenceau o estupor: “São Paulo é tão curiosamente francesa que durante a minha estadia de uma semana pela cidade não me recordo da sensação de estar no exterior”. Enfim, modernos.

Essa modernização, no entanto, trouxe incômodos. “De todos os bares da cidade, o do Municipal era o mais concorrido da sociedade e um dos mais visados pela polícia. O elogio do progresso passa a ser contrastado com o que denunciavam os seus altos custos. Embora muitos se felicitassem pela importação de costumes europeus, outros lamentavam a perda da simplicidade da vida provinciana, atentando para os males introduzidos pela modernização, como as drogas”, afirma Margareth. O Municipal também foi palco da primeira bofetada contra as elites do café, a Semana de 22. Ainda que restrita àqueles que pagassem 186 mil-réis por camarote, para ouvir odes contra o burguês, as dissonâncias de Villa-Lobos e, no hall do teatro, uma exposição com obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Rego Monteiro. Escandaloso nos anos 1920, Mário de Andrade voltou ao Municipal em 1935, dessa vez como diretor do Departamento de Cultura, realizando revoluções culturais mais substanciosas na vida do teatro do que a mera afronta.

“Mário possibilitou à população o acesso ao equipamento mais suntuoso da cidade, estabelecendo a obrigatoriedade de uma récita gratuita de ópera, além de outras a preços populares”, conta Maria Elena. “O público que vai ao Municipal? Mas esse não representa absolutamente o povo da cidade que elegeu os donos da prefeitura para que ela subvencionasse uma empresa para que esta, por preços exorbitantes, satisfizesse uma moda de elite”, esbravejou o autor de Macunaíma. Apesar dos esforços de Mário, ao sair, em 1938, tudo voltou ao mesmo, situação que parece se manter até hoje. “Enquanto as estruturas jurídicas dos teatros municipais do Rio e de São Paulo estiverem condicionadas ao paternalismo estatal e sujeitas às intempéries de mudanças políticas, não existem soluções viáveis para um trabalho de aprimoramento artístico a longo prazo”, avisa o maestro Isaac Karabtchevsky, que já foi diretor artístico dos dois teatros.

“A inevitável e obrigatória mudança das direções artísticas enseja todo o tipo de amadorismo, de cancelamento de temporadas a mudanças abruptas de orientação musical. Fala-se na transformação desses teatros em fundações, mas isso esbarra nos problemas que atingiram recentemente a Itália, onde, por falta de respaldo comunitário, o governo reduziu os recursos para pagamento de pessoal e artistas convidados”, conta. “Nossa tradição não é comunitária, mas deveríamos achar um jeito de preservar, à frente dos teatros, profissionais que contribuam para o resgate e evolução dos corpos estáveis”. Afinal, no caso do Municipal de São Paulo, há um passado de glória, com a passagem, pelo seu palco, de estrelas como Isadora Duncan, Caruso, Gigli, Toscanini, Callas, Tebaldi etc. O que restou dessa glória toda? Não foram sons ou gestos, mas roupas, trajes de cena de grande beleza e valor histórico. “O acervo de hoje, que remonta à década de 1940, conta com cerca de 50 mil peças, quantia digna da Ópera de Paris ou do Metropolitan de Nova York. Mas ele foi negligenciado, atacado por pragas ou simplesmente descartado”, revela Fausto Viana, pesquisador da USP e coordenador do projeto Traje em Cena: Catalogação dos Figurinos Teatrais do Theatro Municipal de São Paulo, financiado pela Fundação Vitae, que realizou a catalogação e a higienização de figurinos de mais de 60 óperas.

Há raridades como os trajes de uma Aída feitos todos à mão, o figurino usado por Renata Tebaldi em sua passagem por São Paulo, os costumes criados por Denner para a ópera Lakmé, de Delibes, e, tesouro, todas as roupas do Balé do IV Centenário, idealizadas por Portinari, Di Cavalcanti, Burle Marx, Lasar Segall, entre outros. “É importante que figurinos de valor histórico ou estético sejam preservados para pesquisas e não sejam reutilizados em montagens do teatro”, afirma Viana, que ressalta não ser sua intenção “engessar” o acervo do teatro, apenas proteger os trajes mais antigos (com mais de 30 anos) ou cujo design ou designer tenham importância museológica. Contando com uma equipe de 75 voluntários, sem onerar os cofres públicos, o grupo já organizou 3.800 figurinos, separados por ópera, época e figurinista. Todo esse trabalho, no entanto, está em risco de ser perdido. O Municipal está transferindo os figurinos catalogados para um galpão aberto do Metrô e ainda não se decidiu a doar a parte museológica do acervo para o Museu do Teatro Municipal (que, pasmem, não pertence ao teatro, mas à Divisão de Iconografia e Museus).

“Seria fundamental preservar esse legado para que ele possa servir como material de pesquisa para a posteridade. Mais importante ainda seria a criação de um museu de teatro, não apenas com os trajes do Municipal, mas reunindo os muitos acervos de figurinos teatrais espalhados pelo país, fundamentais para se poder guardar a história da nossa cena”, diz. Não parece difícil avaliar as consequências danosas de reutilizar (e com certeza no processo, inutilizar) trajes antológicos apenas para vestir um figurante numa montagem atual. Afinal, do teatro que foi criado para “civilizar” São Paulo não restou grande coisa, além de sua história, dos fantasmas que, dizem, habitam o teatro e, concretamente, esses figurinos. A cidade os merece.

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