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Economia

Coma-me ou beba-me?

Os dilemas do crescimento econômico brasileiro são bem mais antigos e complexos do que supõe a nossa vã filosofia

ILUSTRAÇÕES JOHN TENNIEL / ALICE EDIÇÃO COMENTADANo início do livro de Lewis Carroll, a entrada de Alice no País das Maravilhas era, essencialmente, uma questão de crescer ou não. Diante de um frasco, com o aviso “Beba-me”, a menina toma o conteúdo e percebe que está “encolhendo como um telescópio”, o que lhe garantiria passar por uma pequena porta e chegar ao jardim encantado. Mas a situação muda e ela precisa crescer. Aparece, então, um bolo com a inscrição “Coma-me”. Ela obedece e cresce a ponto de bater com a cabeça no teto da sala. Ela se põe a chorar. Que lição os economistas brasileiros podem tirar de Alice? Bem, acima de tudo, que, infelizmente e por mais que o ex-ministro Delfim Netto acredite nisso, um bolo não faz um país crescer. Segundo, que diminuir e crescer com tanta rapidez não leva ninguém ao País das Maravilhas sem a ajuda de um coelho mágico.

“O crescimento econômico brasileiro está estagnado há 25 anos, à mercê dos humores do mercado e de possíveis situações de desequilíbrio. É uma questão complexa, porque são dois os conjuntos de políticas importantes numa economia: a macroeconômica, que lida com a estabilidade, e as de desenvolvimento, responsáveis pelo crescimento econômico de longo prazo. Não houve no Brasil modificação significativa em nenhum desses conjuntos a longo prazo”, observa o economista da Unicamp Ricardo Carneiro, organizador do recém-lançado estudo Supremacia dos mercados (Editora Unesp/FAPESP). Bem mais intrincado do que o sobe-e-desce de Alice, o crescimento do PIB nacional é igualmente errante. “O crescimento recente não fugiu ao padrão stop and go das últimas décadas, o que fica evidente na volatilidade do PIB, mas sobretudo na do investimento.” Ou, nas palavras do economista da UFRJ Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, em entrevista recente, “o máximo que o país consegue é um ‘vôo de galinha’: um ano a taxa melhora um pouquinho, a galinha dá um pulinho, mas ela não tem sustentação, então volta de novo para o chão do galinheiro”.

Vamos aos números. A economia brasileira cresce, há dez anos, a um ritmo inferior ao da média internacional. O fenômeno não é recente. O PIB nacional ampliou-se 2,3% em 2005, enquanto no resto o mundo, segundo o FMI, ampliou-se 4,3%. Por 19 vezes nos últimos 25 anos a economia brasileira cresceu menos do que a mundial. Cada centésimo importa: se o Brasil crescer, como afirma o governo, 3,5% em vez de 4,5% em 2006, significará que R$ 19,7 bilhões deixaram de ser gerados como riqueza. O país perde importância relativa na economia mundial e fica mais pobre em comparação com as outras nações. Um estudo que acaba de ser divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, o chamado Agenda para o crescimento econômico e a redução da pobreza, o país só conseguirá crescer a taxas de 5% ao ano em 2017. Ainda assim, se fizer um pesado reajuste fiscal e tributário, bem como reduzir a carga tributária e aumentar o nível dos investimentos, em especial em obras de infra-estrutura para evitar gargalos energéticos e logísticos, que impedem o crescimento.

“Beba-me” ou “Coma-me?” “A idéia do stop and go pode ser tomada a partir do seguinte sentido: há um processo, em geral de baixo crescimento, e além de ele ser baixo, é volátil. A caracterização empírica do stop and go é justamente o baixo crescimento do produto e do investimento com alta volatilidade. Isso demonstra que não temos um modelo de crescimento implementado na economia, que se move em função tanto do cenário internacional, mais ou menos favorável, quanto do manejo da política macroeconômica de juros e câmbio”, analisa Carneiro. Embora o baixo desenvolvimento brasileiro seja particularmente preocupante, segundo o estudo América Latina y el Caribe: proyecciones 2006-2007, da Cepal, que revela “uma relativa homogeneidade nas taxas de crescimento em 2006 dos países da América Latina, entre 3 e 6%, com exceção da Argentina e da Venezuela, que crescerão a taxas maiores do que 6%”. O sucesso portenho pode ser uma chave para entender o nosso “insucesso”. “O exemplo argentino é emblemático. Kirchner, mais conservador do que Lula, foi obrigado a promover mudanças, porque o quadro chegou à ruptura. Eventualmente, poderá haver uma reversão no Brasil que leve ao ponto de ruptura. Um aprofundamento do quadro pode abrir campo para que o modelo atual seja sepultado, como foi o caso da Argentina”, avalia Carneiro. Que modelo?

Entre os anos 1930 e os anos 70, o Brasil e demais países da América Latina cresceram a taxas extraordinariamente elevadas. O modelo desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista aproveitou-se do enfraquecimento do centro para formular estratégias nacionais de desenvolvimento que implicavam a proteção à indústria nacional nascente e a promoção forçada por meio do Estado. “A nação foi capaz de usar o seu Estado como instrumento para definir e implementar uma estratégia nacional de desenvolvimento. Não se tratava de substituir o mercado pelo Estado, mas de fortalecer o último para que ele conseguisse criar condições para que as empresas pudessem investir, para que os empresários pudessem inovar”, observa Luiz Carlos Bresser-Pereira em seu mais recente artigo, “O novo desenvolvimentismo”. Segundo ele, a partir dos anos 1980, houve a chamada “crise da dívida externa”, que induziu um forte viés político na economia. Com a alta dos juros americanos, o Brasil viu-se obrigado a gerar superávits comerciais significativos para enfrentar a retração das fontes externas de financiamento e colocou como prioridades a contenção de importações e o aumento das exportações. O contexto internacional não era favorável e essas ações fracassaram, gerando a chamada “década perdida”.

ILUSTRAÇÕES JOHN TENNIEL / ALICE EDIÇÃO COMENTADAEssa frustração foi fundamental, nos anos 1990, para que a estratégia neoliberal de estabilização e desenvolvimento ganhasse o Brasil, seja sob o nome de Consenso de Washington, seja como “ortodoxia convencional”. “Fora do modelo liberal de gestão da economia nada parecia possível ou viável. Os postulados estão aí: a estabilidade econômica com controle da inflação é condição necessária e suficiente para o crescimento, a abertura ao exterior, independentemente de timing ou extensão, é sempre virtuosa, a intervenção do Estado é no mais das vezes negativa e deve ser minimizada, restringindo-se à criação de um ambiente de segurança jurídico-institucional para a operação das forças de mercado”, observa o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em seu “Bloqueios ao crescimento”. “A incapacidade dessa política em promover o crescimento sustentado é indisfarçável. A despeito disso, as propostas de mudança têm sido desqualificadas.” Derrotada a inflação, acreditava-se que a nova estratégia daria início a uma onda de intensa modernização produtiva, em especial na indústria. As empresas mais aptas sobreviveriam ao desafio da competitividade e os interesses corporativos, vistos como responsáveis pela estagnação, seriam desmontados. O Brasil poderia contar com o apoio generoso do capital estrangeiro, com aportes financeiros e tecnológicos vindos da economia globalizada.

“Foi o fim do desenvolvimentismo e a aceitação de que os Estados-nação haviam perdido relevância. Os mercados livres, inclusive os financeiros, iriam se encarregar de promover o desenvolvimento econômico de todos”, escreve Bresser-Pereira. Com um detalhe fundamental e sintomático. “Enquanto os países latino-americanos perdiam o controle da taxa de câmbio, através da abertura das contas financeiras, e viam suas taxas se apreciar ao aceitarem a estratégia do crescimento com poupança externa, proposta por Washington, os países asiáticos mantinham superávits e controle de suas taxas de câmbio.” Mais: enquanto os países latino-americanos aceitaram indiscriminadamente as reformas liberalizantes, realizando, nota Bresser, “privatizações irresponsáveis de serviços monopolistas e abrindo sua conta capital”, os asiáticos foram mais prudentes. Hoje os economistas invejam o crescimento do PIB de nações como Coréia e China. “Era fundamental promover a competitividade através dos mecanismos de mercado. A escolha a priori de setores e empresas estratégicas tornou-se anátema. No lugar de políticas setoriais, políticas horizontais que estimulassem simultaneamente todos os setores a produzir em condições de preço e qualidade do mercado mundial”, observam Mariano Laplane e Fernando Sarti, ambos da Unicamp, no seu estudo “Prometeu acorrentado”, parte de A supremacia dos mercados.

“Acorrentado, como Prometeu, na peça de Ésquilo, pela própria incapacidade de retomar o desenvolvimento industrial, o Brasil desperdiçou e desperdiça oportunidades disponíveis num contexto internacional favorável”, avaliam. Para intensificar, a crise fiscal dos anos 1980, que era um subproduto da crise externa, fez com que, no imaginário do cidadão, a distorção se associasse diretamente à ineficiência do Estado, transformado em vilão. “As elites locais deixam de pensar com a própria cabeça, aceitam os conselhos e as pressões vindas do Norte, e os países, sem estratégia nacional de desenvolvimento, vêem seu desenvolvimento estancar. Era uma proposta negativa, que supunha a possibilidade de os mercados coordenarem tudo automaticamente e o Estado deixasse de realizar o papel econômico que sempre teve nos países desenvolvidos: complementar a coordenação do mercado para promover o desenvolvimento e a eqüidade”, nota Bresser-Pereira. O resultado neoliberal não foi melhor do que a “década perdida”.

Fracasso
“Se o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento deve ser a redução da distância que nos separa de outros países em desenvolvimento, que têm aproveitado as oportunidades, a estratégia neoliberal deve ser avaliada como um fracasso estrondoso”, observam Laplane e Sarti. Desde fins dos anos 1980, as empresas brasileiras reorientaram seu crescimento para o mercado externo, realizando investimentos localizados e defensivos (racionalização e modernização da capacidade existente), em detrimento dos investimentos em expansão ou instalação de novas unidades de produção. O ajuste dos anos 1990 piorou o quadro. As empresas reagiram à abertura externa aumentando a especialização e racionalização, com forte redução do emprego. Tudo ocorreu com baixo investimento e pela busca de parceiros estrangeiros, num intenso processo de desnacionalização. “Os produtores ficaram restritos aos avanços anteriores feitos no exterior e não houve esforços internos inovadores. Era a adoção da tecnologia incorporada, o que levou ao aumento da importação, visto como caminho mais barato e curto para se ter acesso às inovações externas e ganhar competitividade”, observam os pesquisadores.

A opção foi pelo “beba-me”, que levou, notam, a uma “especialização regressiva” da produção industrial brasileira e, como conseqüência, a expansão industrial só se deu com aumento na demanda de divisas. Os autores rejeitam a batida tese dos fatores “exógenos” (crises do México, Ásia, Rússia etc.) como atenuantes explicativas do fracasso do modelo. “Os resultados insatisfatórios foram conseqüência das próprias transformações produtivas ocorridas, independentemente dos choques externos”, avisam. Afinal, por mais que exportássemos, importávamos bem mais. A chamada obsessão pela estabilidade inflacionária, marco do modelo neoliberal, observam Bresser e Carneiro, tornou-se objetivo central da política macroeconômica, obtido por meio da gestão cambial, monetária e fiscal. “A tão louvada estabilidade de preços, a custo de um crescimento pífio, ao assentar-se num primeiro momento na sobreutilização da âncora cambial e, num segundo, numa precária política de metas de inflação, demandantes de taxas reais de juros elevadas, terminou por produzir a instabilidade macroeconômica ao ampliar a dívida pública interna e impulsionar a um novo ciclo de endividamente externo, em parte pela atração de capitais externos de curto prazo”, avalia Belluzzo. O dinheiro externo chegava, mas ficava pouco tempo no Brasil.

ILUSTRAÇÕES JOHN TENNIEL / ALICE EDIÇÃO COMENTADAChina
Enquanto isso, na Ásia, países como a China investiam num programa de reformas que combinava uma estratégia exportadora agressiva, a atração de investimentos diretos estrangeiros nas zonas liberadas, tudo isso regulado com forte intervenção do Estado. Assim, os chineses, com competitividade crescente (embora já se possa temer um freio nesse crescimento de 10% anual, visto como insustentável pelos economistas), tornam-se o maior receptor do investimento direto americano, ao mesmo tempo ganhando participação crescente no mercado dos Estados Unidos. A via de mão dupla não adotada pelo Brasil (que só se preocupava com a entrada de capitais externos) foi fatal para o nosso modelo de crescimento. Ainda, a “desconcentração concentrada” do PIB mundial beneficiou a China e os asiáticos em desenvolvimento. Pegamos outro caminho e continuamos nele. “Diante de uma forte ampliação da liquidez e do comércio internacional, em 2003, a opção escolhida foi a de alargar os ganhos imediatos por meio da apreciação da moeda nacional. Se isso manteve as taxas de inflação baixas e permitiu o consumo no exterior, sacrificou o aumento das reservas internacionais, obtido com a melhora das exportações, e uma maior competitividade das exportações de manufaturados”, nota Belluzzo.

O pesquisador coloca como atenuante, num primeiro momento, o desejo de construção de uma esfera de credibilidade pelo atual governo. “A inflexibilidade do regime brasileiro ante a característica da formação de preços tem implicado um uso abusivo da taxa de juros e sacrifício do crescimento do produto e do emprego para lograr as metas”, avisa. Para Carneiro, a situação é ainda mais precária. “A manutenção de políticas passadas gerou uma vulnerabilidade externa. Os ganhos vieram das exportações e, assim, o crescimento não se deu por causa de uma política específica praticada pelo governo. Ao contrário. A valorização do real vai contra a corrente do aumento de exportações, e logo chegaremos a um dilema para sustentar esse crescimento, bem como estimula importações.” Logo, pode-se crescer 4% num ano e, em outro, nada. “O governo não delineou um horizonte de longo prazo para o desenvolvimento. O Estado precisa ter uma atuação mais decisiva, sinalizar quais os setores prioritários, criar incentivos de crédito, tarifários e fiscais. Precisa também manter políticas de desenvolvimento social. Se não houver política de crescimento acelerado, a política social, individualmente, não se sustenta.” Os juros, elevados, tampouco ajudam.

“Taxas de juro em patamares elevados são poderoso desestímulo ao crescimento. Basta destacar a noção de custo de oportunidade presente na taxa. No caso brasileiro, oferecem-se taxas de juro elevadas, em títulos de alta liquidez e baixo risco, que oferecem uma alternativa ao investimento produtivo”, analisa Belluzzo. Além disso, é preciso ampliar a infra-estrutura do país. “Dificilmente a ampliação de investimentos será realizada sem uma decisiva participação do setor público, o que é contraditório com a atual magnitude do saldo primário.” Bresser-Pereira propõe a adoção do novo-desenvolvimentismo, que rejeita a idéia de que países de desenvolvimento médio necessitem de poupança externa para crescer, como prega a ortodoxia liberal. “A história ensina que os países se desenvolvem quase exclusivamente com recursos internos. Os asiáticos têm recorrido muito parcimoniosamente à poupança externa, em geral, crescendo com superávit em conta corrente.” O novo-desenvolvimentismo, continua, acredita na administração da taxa cambial, o que implica uma taxa de juros moderada, que permita a compra de reservas quando os influxos de capitais são muito elevados.

“Para assegurar a continuidade do crescimento, em particular a retomada do crescimento, seria necessário contrapor, ao Estado regulador, o Estado desenvolvimentista. Sua missão central seria viabilizar a elevação da taxa de investimento, mas não necessária nem prioritariamente por meio da minimização do risco jurisdicional (como no caso da Lei de Falências, as Agências ou a independência do Banco Central)”, ponderam Belluzzo e Carneiro. “O papel crucial do Estado seria a criação de mecanismos de coordenação e apoio que permitissem ao investimento privado uma menor insegurança quanto à trajetória de longo prazo da economia. A superação desse constrangimento é mais um desafio para a superação da insustentável leveza do crescimento.” Será possível? Para Laplane e Sarti, se “o desperdício de oportunidades para o crescimento é resultado do viés anticrescimento da política macroeconômica e da ausência de estratégia industrial da era FHC, o governo Lula não foi capaz de reverter esse quadro.” Ou, segundo o economista Eduardo Gianetti, do Ibmec, “não é a golpe de política monetária e cambial que retomaremos o crescimento sustentado; vamos ter de mexer em coisas estruturais que até agora não foram objeto de atenção do governo”.

“Não farei mágicas na economia”, afirmou o presidente recém-eleito. Certamente não chegaremos ao País das Maravilhas com poções ou bolos encantados. “Mesmo com o vendaval a favor, só um simpósio de magia negra será capaz de produzir um crescimento sustentado de 5% ao ano com os preços-chave da economia, câmbio e juros, completamente fora do lugar”, escreveu Belluzzo na revista Carta Capital. Infelizmente, há mais chapeleiros malucos do que coelhos mágicos na nossa economia.

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