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Mudança

Tecnologia contra o aquecimento global

Brasil sai na frente com etanol, biodiesel e plantio direto

EDUARDO CESAREtanol: 325 usinas produzem 17 milhões de litros, 35% do total mundialEDUARDO CESAR

Os três relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) — a maior radiografia ambiental já realizada — divulgados nos meses de março, abril e maio não deixaram dúvidas de que a elevação da temperatura do planeta tem que ser creditada à ação do homem e que o impacto do aquecimento global sobre os ecossistemas, a economia e as sociedades poderá custar caro à humanidade. Mas também apontaram o caminho: o mundo pode reduzir as emissões de gases de efeito estufa, principalmente as de dióxido de carbono (CO2), por meio da utilização de energias renováveis, racionalização no uso de transportes, melhoria no manejo agrícola e redução do desmatamento, entre outras medidas mitigadoras. A ação, no entanto, deve ser imediata.

“Esse é um momento excelente para mudar o padrão de consumo para atender demandas da sustentabilidade e mudar a visão de utilização dos recursos naturais do planeta”, afirma Paulo Artaxo, enxergando no que poderia ser interpretado como crise uma oportunidade, sobretudo para o Brasil, que, segundo ele, tem “enormes vantagens estratégicas” em relação a todas as recomendações do IPCC.

A lista de “vantagens estratégicas” começa pelo etanol e inclui o biodiesel, as tecnologias de plantio direto e a produção de energia elétrica a partir de insumos renováveis. A tecnologia do etanol vem sendo desenvolvida há três décadas. O país tem mais de 6 milhões de hectares de cana-de-açúcar e produz 17,7 bilhões de litros de etanol, algo em torno de 35% do total mundial, em 325 usinas sucroalcooleiras. A produtividade varia de 6 mil a 8 mil litros de etanol por hectare. Cerca de 90 novas usinas estão em fase de instalação e quase 200 em estudos — metade delas com participação estrangeira —, o que deverá ampliar a área plantada em mais 1 milhão de hectares e elevar a oferta do combustível para 27,8 bilhões de litros até 2010.

O Brasil e os Estados Unidos — com uma produção de 18,5 bilhões de litros de etanol obtidos a partir do milho — respondem por 70% do mercado mundial de etanol. O mercado brasileiro já tem boas perspectivas de expansão. O consumo interno cresce com o carro flex — a expectativa é de um aumento de 50% até 2010, nos cálculos da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica) — e com a mistura obrigatória do álcool à gasolina. O mercado internacional ainda é incipiente e volátil, como costuma descrever Marcos Jank, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). Há perspectivas de um crescimento das exportações brasileiras — que no ano passado somaram 3,5 bilhões de litros — para o mercado japonês e asiático, por exemplo. A possibilidade de negócio com os Estados Unidos esbarra numa tarifa protecionista de US$ 0,14 por litro e na disposição daquele país de ir fundo no abastecimento do mercado interno: US$ 1,9 bilhão está sendo investido em pesquisa com o etanol do milho. Para os especialistas, o Brasil deveria apostar na exportação de sua tecnologia de produção de etanol para países da África, Ásia e América Latina, que produzem cana com baixa utilização de tecnologia e têm déficit de energia.

Mas, para tanto, é preciso responder a alguns desafios. Os produtores de cana, de acordo com dados da Unica, investiram US$ 40 milhões anuais na produtividade das lavouras, nas últimas duas décadas, que cresce a uma média de 4% ao ano. Na região de Ribeirão Preto, por exemplo, já é de 90 toneladas por hectare. “Mas o potencial da cana é de 180 a 200 toneladas por hectare”, diz o presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Silvio Crestana.

Etanol de celulose
Apenas um terço da biomassa da cana é aproveitado para a produção de açúcar e álcool combustível. O grande desafio é converter em etanol também a celulose, que está no bagaço e na palha descartada na colheita, por meio da hidrólise enzimática. As pesquisas estão em curso no âmbito do Projeto Bioetanol, coordenado pelo Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp (ver Pesquisa FAPESP no 133). A expectativa é de que a nova tecnologia produza um salto de produtividade, sem ampliar a área plantada de cana-de-açúcar.

É preciso resolver também o problema dos insumos para reduzir os custos de produção de cana, assim como dos demais produtos. “Somos importadores de fósforo, potássio e mesmo de nitrogênio, dependentes de acordos multilaterais e bilaterais”, lembra Crestana. No caso do nitrogênio, ele observa, já existem avanços importantes da agrobiologia. “Já conseguimos suprir até 30% das necessidades das gramíneas, como a cana, por via biológica”, diz o presidente da Embrapa. Há ainda investigações para obter o produto de rochas potássicas e fostáticas. “O problema é como fazer isso de forma economicamente viável”, diz Pedro Leite da Silva Dias, especialista em mudanças climáticas, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).

EDUARDO CESARBiodiesel: 23 usinas produzem 964 milhões de litrosEDUARDO CESAR

O manejo da cana-de-açúcar também é um problema, destaca Reynaldo Victória, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). A colheita da cana é feita depois da planta queimada. Se fosse cortada crua, sem queimar, os resíduos da planta seriam incorporados ao solo, transformando-se em matéria-prima orgânica. Nesse caso, o balanço de seqüestro de CO2 ao longo do processo de transformação da cana em álcool tem resultado ainda mais positivo. “Testes feitos em usinas já demonstraram resultados superiores em 40 toneladas por hectare num prazo médio de dez anos”, diz Victória. O desafio, nesse caso, é desenvolver tecnologia para a colheita da cana crua: as máquinas colheitadeiras operam apenas em terrenos com até 12º de inclinação e o corte manual seria impossível sem que os trabalhadores usassem equipamentos especiais. “Isso encareceria o custo da colheita”, observa Victória.

Outro problema da queimada — prática também utilizada no Brasil para limpeza do solo — é que ela produz gases precursores de ozônio que, em contato com a luz, acumulam esse gás de efeito estufa na troposfera, acrescenta Silva Dias.

Seqüestro de carbono
Uma das recomendações do IPCC para a redução do aquecimento global é a adoção do plantio direto nas lavouras, que, por eliminar o uso de arado, não revolve o solo, mantendo acumulado nele a palha e, conseqüentemente, o carbono imobilizado no tecido vegetal. “Essa é uma técnica utilizada em latitudes altas, que a agricultura brasileira adaptou”, observa Silva Dias.

O Brasil tem 24 milhões de hectares cultivados na forma de plantio direto que representam 30% da área total de lavouras no país. É a segunda maior área cultivada sob esta tecnologia, perdendo apenas para os Estados Unidos, com 26 milhões de hectares. “O plantio direto foi adotado para reduzir a erosão do solo”, explica Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, do Departamento de Solos da Esalq. Sabe-se agora que ele tem a qualidade de “seqüestrar” o carbono no solo. Estudos têm mostrado que 0,5 tonelada de CO2 por hectare é anualmente incorporada ao solo por meio da prática de plantio direto. “Se multiplicarmos pela área plantada, de 24 milhões de hectares, o resultado somaria 12 milhões de toneladas de carbono por ano”, calcula Cerri.

Essa prática, num país de dimensões tropicais, resultaria no armazenamento monumental desse gás de efeito estufa. O grande desafio a ser desvendado pela ciência é reduzir o armazenamento no solo também de óxido nitroso (N2O), um dos gases de efeito estufa com enorme potencial de aquecimento global, presente nos resíduos de fertilizantes nitrogenados, que também é incorporado ao solo. As pesquisas têm revelado que esse efeito negativo pode ser atenuado com o fracionamento das aplicações de fertilizantes.

“O carbono seqüestrado no solo poderia transformar-se numa fonte de receita para o produtor se comercializado no âmbito do mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL)”, sugere Cerri. O MDL é um instrumento criado no âmbito do Protocolo de Kyoto que permite que os países desenvolvidos — que têm metas de redução de emissões a cumprir até 2012 — adquiram créditos de carbono gerados em projetos de redução de emissões de gases de efeito estufa implementados nos países em desenvolvimento. Em todo o mundo, mais de 50 países desenvolvem projetos de MDL. O Brasil ocupa hoje o terceiro lugar, com 210 projetos, atrás da China, com 299 projetos, e da Índia, com 557. O carbono seqüestrado no solo não está credenciado para esse mercado. “Isso dependerá de negociações de governos para ser validado a partir de 2012, no período conhecido como pós-Kyoto.”

Combustível de futuro
O Brasil também desenvolve pesquisa sobre o biodiesel desde 1975. Atualmente estão em funcionamento 23 usinas de processamento do biocombustível com capacidade de produção de 964 milhões de litros, destinados à mistura de 2% em todo o óleo diesel no país, que será obrigatória a partir de 2008.

Mas ainda há um longo caminho a percorrer no desenvolvimento dessa tecnologia, já que quase todo o biodiesel produzido no Brasil é feito a partir do metanol, que não é considerado propriamente renovável (ver Pesquisa FAPESP nº 134).

“Temos que fazer a transição para o biocombustível. Essa é uma tecnologia que não dominamos totalmente”, sublinha Silva Dias. Com uma produtividade entre 1,5 mil e 3 mil litros por hectare, o biodiesel é muito menos eficiente que o etanol — entre 6 mil e 8 mil por hectare — e inferior ao de países como a Indonésia, que produz o combustível a partir do dendê, obtendo resultados surpreendentes: 5 mil litros por hectare.

É preciso dar um “salto na pesquisa e na tecnologia”, ele recomenda, e testar, entre outras investigações, o desempenho de palmáceas em grandes áreas, analisando sua real contribuição para a redução de gases de efeito estufa.

Insumos renováveis
Em matéria de insumos renováveis para a produção de energia elétrica, o Brasil também tem posição de vantagem. Artaxo lembra que o Brasil tem enormes perspectivas na exploração da geração de energia eólica e solar. “Isso não tem preço”, enfatiza.

Na avaliação de José Goldemberg, do Instituto de Energia Elétrica, da USP, a grande opção  brasileira segue sendo a energia hidrelétrica. “O potencial energético utilizado no país é só de 30%”, diz. Ele reconhece que as grandes fontes hidrelétricas se concentram hoje na Região Norte. É o caso das duas hidrelétricas do rio Madeira — Santo Antônio e Jirau — cuja construção aguarda autorização do Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mas , na sua avaliação, o país deveria investir na construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCH), com capacidade de até 1.000 MW, hoje restritas ao Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (ProInfa). “Temos tecnologia para isso”, sublinha.

O Proinfa, no entanto, caminha a passos lentos e seus resultados estão aquém do desejado. O programa foi criado em 2002 com o objetivo de apoiar investimentos em fontes eólicas e PCH, além da biomassa. A meta era atingir uma capacidade instalada de 3,3 mil MW, mas os resultados não ultrapassaram os 860 MW. As eólicas instalaram 208,3 MW e as PCHs, 186,4 MW. O país já tem tecnologia, mas o grande desafio, segundo Artaxo, é  conferir escala a essa produção. “O Estado não tem condições financeiras nem logísticas de implementar esse novo mercado de energia. A sua tarefa deve ser a de fomentar investimentos e deixar o negócio para a iniciativa privada.”

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